Fascismo cotidiano: nenhuma comiseração

Abala todos nós sabermos que um cliente de restaurante num shopping da Bahia foi praticamente impedido de realizar um gesto humano. Tratava-se simplesmente de uma refeição para uma criança de no máximo 10 anos. Os seguranças não quiseram permitir que a criança comesse!!! O dinheiro não sairia do bolso deles nem do dono do restaurante e muito menos dos donos do shopping.

Parece ser uma questão de princípio: pobre não deve comer em lugares destinados aos “clientes-compradores”! E os seguranças, provenientes que são de classes não abastadas, ganhando salários miseráveis para as funções que executam porque vivem correndo riscos de vida, agem como cães de guarda do capital que sequer os sustenta com dignidade! Trata-se de vassalagem, pura e simples? Infelizmente se fosse apenas isso, intolerável, representaria apenas falsa consciência. Mas não: o que está por trás das atitudes dos seguranças é algo muito pior: é o fascismo cotidiano que conduz as ações de muitos brasileiros nestes tempos de infelicidade, em que sequer uma Copa do Mundo é capaz de criar qualquer entusiasmo.

E este fascismo dos gestos cotidianos se revela em toda parte. Ontem, véspera de viagem, caminhava apressado para ir ao banco e agendar o pagamento do e-social referente ao mês de junho… e eis que assisto atônito a algo semelhante à atitude dos seguranças do shopping.

Carregando uma armação em canos galvanizados, formando uma espécie de carrinho de mão não empurrado, mas puxado na frente, vinha um catador de lixo reciclável. Moro numa cidade de montanhas de universidades, orgulhosa de si própria, mas que não tem coleta seletiva de lixo! E dela vivem muitas pessoas, diariamente fuçando nas lixeiras em busca do que possa ser reaproveitado.

O senhor – mais ou menos uns 60 anos – vinha puxando seu “carro” como um cavalo!!! O peso era evidente, e na descida ele quase não o controlava. Sofria, era óbvio. Fazia força. Ele falava, defendia um trabalhador que todos sabem preso em Curitiba, e reclamava da corrupção da quadrilha que nos governa.

O sinal para pedestres fechou. Paramos todos. E ele queria dobrar à esquerda e pede licença a duas raparigas (no sentido português do termo) que sequer lhe dão atenção e não saem do lugar, de modo que o catador de lixo teve que fazer um esforço tremendo para não atropelá-las. Ajudei a segurar o carro. E recebemos, ele e eu, os olhares ameaçadores, de xingamento, das duas meninas-moças…

Não resisti! E respondi. “Poderiam ter dado licença! Vocês gostariam de ver seu pai catando lixo para sobreviver? Lembrem-se que isso é uma possibilidade para qualquer um de nós”.

O ódio que enxerguei nos olhos destas raparigas (sempre no sentido português do termo) revela a que ponto chegou o fascismo cotidiano: ele é sem qualquer comiseração! Recordei imediatamente o vídeo de O mundo segundo Ana Roxo que trata dos pobres de direita. A gente deveria voltar a ele sempre que os fatos o confirmam (https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=bL72gZ_EXRM )

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.