EU, um outro de Imre Kertész

É difícil registrar a leitura deste livro: composto por reflexões esparsas e só aparentemente instantâneas; por autênticas crônicas de um cotidiano vivido e observado; por remessas à história da Europa, particularmente à história do povo judeu; por referências à história da Hungria anterior ao regime soviético e posterior a libertação; pelas inúmeras remessas à literatura e à filosofia, e ainda pelas narrativas de suas próprias andanças pela Europa em sessões de leituras de suas obras e as impressões/sensações que estas andanças criam para o escritor.
No entanto, o livro merece uma atenção redobrada, sobretudo pelas perguntas fundamentais que se faz o autor e cujas respostas somente podem ser provisórias, às vezes tão provisórias que duram alguns minutos. São perguntas como “quem sou?”; “que significa ser judeu?”; “que significa ser húngaro?”; “quem enxerga através de nós?”; “O que temes se sabes que és mortal?”; “com quem estou solidário?”. Ou ainda retomando perguntas: de Valéry: “Devemos formular todas as perguntas?”; de Beckett: “Que droga é que Deus estava fazendo antes da Criação?”.
Só pelas perguntas e pelos entrecruzamentos das referências ao passado, ao presente e aos autores com I.K conviveu e convive, dá para aquilatar a qualidade das reflexões que realiza neste Eu, um outro e a que convida o leitor a realizar por sua conta.
Ao chegar ao final, também restringi o mundo deste livro a três conceitos-chave: o nada que cada um é cujas identidades mutantes recobrem de um todo querendo apagar a insignificância do eu (ele é um estrangeiro em seu país, é um judeu na Hungria, e fora dela um estrangeiro em outros países, o que lhe permitiria encontrar então uma pátria de referência, pois o estrangeiro em algum lugar vem de um outro lugar. “Ser estigmatizado é a minha desgraça e ao mesmo tempo o meu capital e agora já é preciso temer que se torne indispensável, embora suportá-lo também fique cada vez mais difícil.”).
O segundo conceito é Auschwitz que não pode significar apenas um lugar, um campo de concentração, mas um modo de ser do humano ‘empoderado’ que conheceu a barbárie que o habita e do humano ‘vitimado’ que conheceu a força do outro e a resistência da vida que olha para além dos portões de Auschwitz sonhando liberdade, um mundo para além, outro mundo imaginado mas sequer sonhado. Acontece que Auschwitz é sinônimo de morte.
Por fim e paradoxalmente a esperança, porque este livro magoado, triste, perquiridor, desconstrutor do estabelecido continua a apontar para o encontro do homem consigo mesmo, com sua humanidade e sua insignificância no concerto da história, no entanto vivente, no entanto agente. Vida e morte; a primeira presente; a segunda horizonte: “minha vida é uma luta árdua pela minha morte e nessa luta – obviamente – não poupo nem a mim, nem aos outros. O resto é detalhe sem importância e posso começar onde quiser; basta eu fazer anotações para as a notações de um futuro romance; lembrete para uma memória exclusiva – a minha -, a qual ainda não está pronta para se abrir para a memória petrificada, universal: a forma.”  E daí o princípio que orienta a vida? “Se sua existência não for inacreditável, então não é digna de ser notada”. Mas todos somos “notados”, ainda que sejamos ‘ninguéns’, há alguém que posso nem conhecer que tornará inacreditável o que vivi. Foi disso que tirei a categoria da esperança para, fechado o livro, relê-lo mentalmente.
Imre Kertész faz suas reflexões dialogarem com o que está vivendo, como se aquelas fossem anotações a que as descrições da visão imediata do espaço, os deslocamentos e os encontros com outros escritores dariam um contexto. Há, portanto, muito de biográfico neste livro. E um diálogo constante entre o eu-atual que escreve, e um eu-outro que o atual imagina e às vezes idealiza como aquele que foi “criador” já que no momento toda criação parece afastada por uma chegada ao nada que o eu-atual seria. Cansaço e certeza de que o futuro que a esperança aponta somente não será repetição do mesmo passado se a memória de Auschwitz permanecer como presente, quando se sabe que duas forças distintas se cotovelam, rivalizam neste final do século XX e nestes começos do século XXI:

Daqui a alguns anos tudo isso vai desaparecer, tudo, tudo vai mudar; as pessoas, as casas, as ruas; as memórias serão emparedadas, as feridas urbanizadas, o homem moderno, com sua característica flexibilidade, vai esquecer tudo, vai filtrar da sua vida o sedimento sombrio de seu passado, como faz com a borra do sue café. Sinto certa satisfação de ainda ver tudo isso (e não apenas vejo, mas também compreendo), talvez pela última vez, como um naturalista se sentiria se de repente avistasse um exemplar de uma espécie que acaba de ser extinta, vivendo tranquilamente sua vida anacrônica.
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Jovens embrulhados em bandeiras como em um lençol, com cocares gigantescos, com olhares que brilham cheios de ódio, como quem está à cata de suspeitos. Surge a pergunta de passagem, se vale a pena analisar o fenômeno; acredito que não. O que, porém, surpreende é a falta de mudança. Como se esses homens, frequentemente jovens, desconsiderando o que é possível desconsiderar, ou seja, a pessoa, fossem os mesmos que eu vi nos anos quarenta, os mesmos rostos, a mesma voz, o mesmo gesto etc., e isso, por sua vez, indica uma certa realidade constante. É conspícua a falta total de capacidade de se adaptar, de qualquer flexibilidade – sempre repetem a mesma coisa, da mesma maneira –, e isso mostra graves problemas que residem nas raízes vitais.

Viver nos anos 1990 este paradoxo numa humanidade que está cindida entre aqueles que lutam e sonham com um mundo sem totalitarismos (de direita ou de esquerda) e aqueles que apostam no que no passado já falhou: a prática fascista de toda espécie de criadores de Auschwitz:
Os detentores do dinheiro e do poder concordarão novamente em fazer a sociedade decair completamente, só para salvar o que podem e, por fim, só poderão fugir à custa de um novo totalitarismo, de novas catástrofes sociais; mas que espécie de fuga, que espécie de totalitarismo serão esses? Quem poderá dizer se essas ideologias ameaçadoras dispõem de qualquer tipo de visão que não tenha sido experimentada e que não tenha falhado?
Eis algumas passagens que sublinhei:

“Uma coisa é semear ideias, outra, colhê-las. “ (Wittgenstein, Vermischte Bemerkunge)
“Toda “convicção” é a máscara de um tipo de pessoa e não importa com qual convicção ela se disfarce, acaba permanecendo sempre a mesma, sempre agindo da mesma forma.”
“Março luminoso. É de manhã. Cores duras, nítidas, o brilho ofuscante do céu.”
“O escritor deve evitar tornar-se espirituoso quando não achar mais o que dizer.”
“… Frankfurt. A feita de livros; fui devidamente carimbado como mercadoria à venda; leituras públicas de minhas obras, das quais eu mesmo não entendo palavra alguma, enquanto sempre espero o pano cair.”
“Todo consolo carrega consigo uma intensa sensação de mentira.”
“Com base no público que lê os meus livros, posso tirar conclusões sobre os próprios livros?”
“… é difícil permanecer sensato dentro do campo de gravitação da loucura.”
“… ele, o verdadeiro criador, está morto. Gostava e ainda gosto deste meu “eu” anterior, sofredor e estilizado em quem habitei por tanto tempo, este grande morto que agora vou enterrar na minha peça. Fico repetindo as palavras de Ibsen: escrever quer dizer fazer julgamentos sobre nós mesmos.”
“Hoje em dia não tenho mais os grandes sonhos que mostravam o caminho. Não adianta dormir, e acordar é inútil.”
“E sei que o suplício do meu saber nunca vai me abandonar.”

O último capítulo se inicia com um enunciado de Wittgenstein: “Um só dia é suficiente para conhecer os horrores do inferno; dá e sobre tempo para isso.” É quase uma epígrafe: neste capítulo virão as reflexões finais que se dão quando I. K. conhece “em meia hora” o inferno: a notícia da doença fatal de A., sua mulher. O que leva ao final  do livro:
Neste momento, porém, não sei de nada, não entendo nada, estou, por assim dizer, no limiar da vida e da morte, com o corpo inclinado para a frente, em direção à morte, com a cabeça ainda voltada para trás, em direção à vida, com o pé que se levanta, hesitante, para dar um passo. Em que direção irá? Não importa, porque aquele que dará o passo, não será mais eu, será um outro…
 
Referência. Imre Kertész. Eu, um outro. São Paulo : Ediotra Planeta do Brasil, 2007. (original de 1997)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.