Para Maria, neta por
adoção, de coração
O sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar sobre o objeto. Não há um ‘penso’ e mas um ‘pensamos’. É o ‘pensamos’ que estabelece o ‘penso’ e não o contrário. (Paulo Freire. Extensão ou Comunicação?)
Retornar a Paulo Freire é reencontrar o pensamento da esperança, sejam os tempos que forem, mesmo quando eles são de desilusões tantas, para tecer com outras palavras o já tecido, bordando sobre os mesmos traços outros desenhos, com outras tonalidades porque outros são os tempos e outras são as realidades.
Talvez devêssemos perguntar: que compulsão é esta de dizer novamente e sempre, repetindo o já dito, tornando-o outro dizer? Que apostas podem estar contidas nos enunciados para que eles retornem em novas enunciações, em outras situações e como significados sempre outros? Certamente há boas razões para este quefazer continuado. E cada um que retorna traz suas contrapalavras que desvelam algumas de suas razões. Confesso de imediato as minhas: primeiro, porque o mestre, como o poeta, ensinou que não há caminhos prontos e que pensar não é seguir uma trilha de corrimãos dados; em segundo lugar, porque nos ensinou perguntas que, por serem fundamentais, permanecerão não respondidas e a elas sempre retornaremos já que as respostas construídas vem marcadas pelas épocas vividas e são sempre já história. O homem está permanentemente convidado a construir suas outras respostas. Não pode haver convite maior do que esse; não pode haver desafio maior do que pensar sem corrimãos.
Que perguntas trago, aqui, para este diálogo cujo produto não quer ser “um pensamento sobre”, mas um pensamento com Paulo Freire, a partir de Paulo Freire? Escolher ‘essencialidades’ pode parecer um desejo de construir permanências, estabilizar os enunciados fixando-lhes um valor e um sentido. É o contrário que me move: gostaria de defender que em Paulo Freire não há essencialidades pré-dadas exceto um paradoxal princípio fundador: tudo está sendo, tudo é movimento e historicidade; as respostas são provisoriedades.
Conhecer, na dimensão humana, que aqui nos interessa, qualquer que seja o nível em que se dê, não é o ato através do qual um sujeito , transformado em objeto, recebe dócil e passivamente, os conteúdos que outro lhe dá ou impõe.
O conhecimento, ao contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato. (Freire, 1977:27)
A propósito do “ser”
Uma das primeiras essencialidades de que somos acusados diz respeito precisamente à noção de sujeito que subjaz aos princípios pedagógicos que abraçamos, e que Paulo Freire sintetiza em Pedagogia da Autonomia como ‘saberes’ enunciados na forma de afirmações sem fugir à responsabilidade e responsividade que a afirmação pressupõe. Responsabilidade porque não se nega a assumir posições; responsividade porque sabe que seus ditos respondem a outros ditos e provocarão novos ditos.
Por nos assumirmos como “pedagogia crítica”, situamo-nos no campo crítico. E o pensamento crítico deste final e início de século tem ramificações de toda ordem, ora apontando para as tensões dialéticas que falam sobre a modernidade ocidental (Boaventura de Sousa Santos, por exemplo, e sua trilogia de tensões: entre regulação social e emancipação social; entre o Estado e a sociedade civil e entre o Estado-nação e o que designamos por globalização); ora apontando para as crises dos paradigmas científicos, reintroduzindo o tempo, o acontecimento e o acaso onde a modernidade apostava na previsibilidade inscrita nas “leis da natureza” (Ilya Prigogine, por exemplo, e a reintrodução da seta do tempo e sua irreversibilidade que demanda o reencantamento do mundo); ora apontando para a construção de subjetividades autônomas, pra o exercício da cidadania e para a construção de uma ação contra hegemônica (conceitos tão presentes nos textos da pedagogia crítica quanto nos movimentos sociais contra hegemônicos).
Todas essas direções remetem a concepções de sujeito, de forma explícita ou implícita, concepções nem sempre partilhadas, mas todas elas com um denominador comum: compartilham crenças e certezas nas possibilidades de ação dos sujeitos sociais, que se definem de formas distintas relativamente aos condicionamentos históricos [escapando portanto aos dispositivos de regulação que definem desde sempre a ação prevista]. Essas direções podem tomar diferentes fundamentos para o sujeito – uma vocação para a eternidade? uma vocação à solidariedade? uma vocação à racionalidade? Uma vocação à subjetividade eticamente fundada, razão convertida em paixão pelo humano de cada um e de todos? – mas nenhuma dessas direções dispensa ou se dispensa de uma tomada de posição.
A essas concepções e a compartilha de crenças de outros possíveis (para usar uma clave paulofreireana, outros inéditos possíveis), opõem-se não somente discursos pragmaticistas, com interesses a defender, em que a noção de “adaptação aos tempos” é o condão mágico do pensamento sobre a constituição das subjetividades, como se os tempos não fossem “regíveis”, mas regentes. Esses discursos podem ser encontrados na imprensa, na política, nos acordos de uma economia planejada para a liberdade dos mercados, nos planejamentos educacionais: o discurso hegemônico sempre encontrou porta-vozes eficientes.
Mas também no campo crítico essas concepções e sua compartilha básica de possibilidades de construção de um outro futuro são postos sob suspeita. As críticas endereçadas ao pensamento crítico pelas análises foucaultianas, pelas desconstruções derridianas ou pelas reflexões deleuzianas, necessariamente devem ser postas sob escrutínio, porque elas não representam mais uma diferença de opção entre campos de luta, mas resultam de um refinamento necessário às concepções para não cairmos no engodo da inovação que repete e reproduz os mecanismos mesmos que quer destruir.
Para exemplificar essas posições críticas, gostaria de retomar aqui uma passagem de Deleuze. A citação será longa, mas necessária para retomarmos a força propulsora da conscientização a partir de novas concepções sobre o sujeito, sem perder com isso o entendimento de que o futuro se constrói como possibilidade do que há de vir e não como produto constante de uma mutação contínua e sem rumos.
Se hoje em dia o pensamento anda mal é porque, sob o nome de modernismo, há um retorno às abstrações, reencontra-se o problema das origens, tudo isso […]. De pronto são bloqueadas todas as análises em termos de movimentos, de vetores. É um período bem fraco, de reação. No entanto, a filosofia acreditava ter acabado com o problema das origens. Não se tratava mais de partir nem de chegar. A questão era antes o que se passa ‘entre’. E é exatamente a mesma coisa para os movimentos físicos.
Os movimentos mudam, no nível dos esportes e dos costumes. Por muito tempo viveu-se baseado numa concepção energética do movimento: há um ponto de apoio ou então se é fonte de um movimento. Correr, lançar um peso, etc.: é esforço, resistência, com um ponto de origem, uma alavanca. Ora, hoje se vê que o movimento se define cada vez menos a partir de um ponto de alavanca. Todos os novos esportes – surfe, windsurfe, asa delta – são do tipo: inserção numa onda preexistente. Já não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, ‘chegar entre’ em vez de ser origem de um esforço.
E no entanto, em filosofia se volta aos valores eternos, à ideia do intelectual guardião dos valores eternos. É o que Benda já criticava em Bergson: ser traidor da sua própria classe, a classe dos clérigos, ao tentar pensar o movimento. Hoje são os direitos humanos que exercem a função de valores eternos. É o estado de direito e outras noções, que, todos sabem, são muito abstratas. E é em nome disso que se breca todo pensamento, que todas as análises em termos de movimento são bloqueadas. Contudo, se as opressões são tão terríveis é porque impedem os movimentos, e não porque ofendem o eterno. Sempre que se está numa época pobre, a filosofia se refugia na reflexão “sobre” […]. Se ela mesma nada cria, o que poderia fazer, senão refletir sobre? Então reflete sobre o eterno, ou sobre o histórico, mas já não consegue ela própria fazer o movimento. (Deleuze, 1992:151-152)
Se a noção paulofreireana de conscientização demanda um compromisso histórico e se a inserção crítica na história implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo, que criam sua existência com o material que a vida lhes oferece (Freire, 1979), então encontramos aqui uma oposição entre os pontos de vista defendidos pela pedagogia crítica e pela crítica deleuziana (e de outros pensadores contemporâneos). Isso porque a concepção de sujeito que nos atribuem é a de sujeitos livres, racionais e fontes de construção deste fazer e refazer o mundo. No entanto, nada me parece mais distante do pensamento de Paulo Freire do que a admissão de uma ‘origem’ humana acabada e dada antes de o homem se fazer homem. Isso porque, nas
[…] nas relações com o mundo, através de sua ação sobre ele, o homem se encontra marcado pelos resultados de sua própria ação.
Atuando, transforma; transformando, cria uma realidade que, por sua vez, ‘envolvendo-o’, condiciona sua forma de atuar.
Não há, por isso mesmo, possibilidade de dicotomizar o homem do mundo, pois que não existe um sem o outro. (Freire, 1977:28).
Em outra passagem e sob outro ângulo, mais uma vez este ser que se faz na história – portanto no movimento – e por isso não nasce já pronto e jamais encontrará seu ponto final, afirma:
Aqui chegamos ao ponto de que talvez devêssemos ter partido. O do inacabamento do ser humano. Na verdade, o inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há inacabamento. (2.1. Ensinar exige consciência do inacabamento). (Freire, 1996:55)
Creio que Paulo Freire consegue escapar à concepção cartesiana de sujeito, um sujeito fonte de seu próprio fazer, mas também não o reduz, como fez o estruturalismo, a produto maleável pelas determinações e pelas constrições de seu tempo. E consegue isso porque encontra um outro posto de observação a partir do qual constrói pontes entre o fazer e o deixar-se levar, entre criar a existência e o se fazer aceitar pelo movimento de uma grande onda.
Parece-me que, precisamente no percurso de busca de respostas a perguntas que não se deixam apagar, porque são perguntas constantes de respostas provisórias, Paulo Freire encontra categorias com que constrói outra noção de sujeito. Sem defender qualquer perenidade a não ser o movimento permanente – e neste sentido os direitos do homem não são valores eternos, mas valores a que outros se acrescentam no movimento da história, (re)configurando cada um deles – Freire encontra no “modelo” não estruturalista de funcionamento da linguagem os elementos para pensar um sujeito que se insere no movimento, sem perder sua energia, material e social, de transformar o que encontra e no que se faz o que é e como é.
A propósito do falar
Um dos processos mais notáveis da linguagem é sua vocação constante à repetição e à mudança. Se não houvesse repetição, a cada nova enunciação teríamos que construir os recursos expressivos mobilizáveis para sua realização: isso impediria qualquer possibilidade de partilha de sentidos. Se não houvesse mudança, toda enunciação seria citação constante dos mesmos enunciados. A linguagem não funciona nem sobre a permanência dos recursos expressivos, nem sobre a criação ininterrupta que não produz história. Por isso a linguagem é uma atividade constitutiva de si mesma, uma sistematização em aberto, produto do passado e projeção do futuro.
Desse modo de funcionamento Freire extrai uma primeira lição: nenhuma sociedade é uma estrutura em cujo movimento temos que nos inserir, mas uma arquitetura que demanda enunciações singulares a cada momento histórico em que o que se repte muda de sentidos e o que se altera adquire sentidos no que se repete. Indeterminação com história, movimento com futuro. Explicitamente, em Paulo Freire (1977:70) na
[…] comunicação, que se faz por meio de palavras, não pode ser rompida a relação pensamento-linguagem-contexto ou realidade.
Não há pensamento que não esteja referido à realidade, direta ou indiretamente marcado por ela, do que resulta que a linguagem que o exprime não pode estar isenta destas marcas.
Em consequência, por aceitar a linguagem como atividade constitutiva, Paulo Freire reconhece que a relação entre o mundo da cultura, onde os sentidos circulam, e o mundo da vida, onde os atos são executados – incluindo entre eles os atos discursivos – é também uma relação constitutiva, em que um mundo somente existe porque constituído pelo outro. Um muda o outro permanentemente. Reencontro aqui o movimento, mas agora com história, que funda raízes não para garantir o futuro, como se dele fosse a origem, mas para tornar possível o próprio movimento como criação e não repetição do já dado. Tal como os recursos expressivos permitem a enunciação sem, no entanto, fixar-lhe os limites de seus enunciados nunca antes ditos e jamais repetíveis em sua singularidade, também as constrições sociais se oferecem como recursos da ação transformadora em que necessariamente o homem está engajado pelo simples fato de agir, já que não é dada a ninguém a possibilidade de enunciar responsável e responsivamente “eu não estou aqui”. Não há álibi para a existência (Bakhtin, 1926).
Em estudo anterior (Geraldi, 2003) aproximei teses co-enunciáveis por Paulo Freire de Mikhail Bakhtin e aqui retomaria apenas um dos momentos desses encontros possíveis – aquele em que os autores tratam da constituição da consciência, ambos colocando esse processo na história:
[…] el mundo de la conciencia no es creación sino elaboración humana. Ese mundo no se constituye em la contemplación sino en el trabajo (p. 19).
Humanización e deshumanización, dentro de la historia, en un contexto real, concreto, objetivo, son posibilidades de los hombres como seres inconclusos e concientes de sua inconclusión (p. 38).
[…] la situación concreta en que se encuentram los hombres condiciona sua conciencia del mundo condicionando a la vez sus actitudes e su enfrentamento. ( Freire, 1974: 169)
…
A consciência individual não só nada pode explicar, mas, ao contrário, deve ela própria ser explicada a partir do meio ideológico e social (p.35).
A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobre nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc. constituem seu único abrigo. Fora deste material, há apenas o simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido de sentido que os signos lhe conferem. (Bakhtin /Volochinov), 1929:35-36)
Se a consciência é sígnica, está repela de signos nunca neutros porque produtos da história; e se a referência ao mundo com a linguagem não supõe algo que, existindo, “fotografamos” com palavras, mas sim construímos com palavras porque nelas ficam as marcas da relações homem-mundo daquele que fala, então nós, homens e mulheres, somos todos produtos da história: mutáveis, múltiplos e singulares. Irrepetibilidades e responsividade irreversíveis. E estar aqui é uma resposta a si mesmo e ao outro, com o qual necessariamente estamos e a quem dizemos “estou aqui”. Conscientizar-se é ser uma resposta à alteridade? Do outro que se foi, eco e memória na herança cultural: do outro com que se compartilha o tempo presente; do outro que virá necessariamente distinto do que se é porque trará suas novas lições.
A propósito do conhecer
Reconhecer a unicidade de cada sujeito, a singularidade de cada momento, o desprezado cotidiano em que os enunciados circulam nas enunciações cada vez únicas, e onde se praticam ações ora conducentes, ora não, à memória de futuro imaginado, até porque a própria memória de futuro não é perene e imutável, implica construir novos caminhos do olhar perscrutador que deseja captar nas “grandezas do ínfimo” os movimentos diminutos em direções cada vez múltiplas e desiguais.
Por não esquecer que o singular não sobrevive sem compartilhas, sem as estruturas que nele estão e por ele são vagarosamente corroídas, não é por acaso que Paulo Freire escolhe sempre a narrativa para, da experiência vivida, extrair ensinamentos. Seus livros estão carregados de casos, acasos, histórias curtas. Conhecer é uma ação gnosiológica inseparável das situações concretas.
O que se pretende com o diálogo, em qualquer hipótese (seja em torno de um conhecimento científico e técnico, seja de um conhecimento ‘experencial’, é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível reação com a realidade concreta na qual se gera o sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la […]
Tudo pode ser problematizado (Freire, 1977:52-54)
Só há história onde há tempo problematizado e não pré-dado. A inexorabilidade do futuro é a negação da História {…] (Freire, 1996:81)
Creio que estes elementos apenas abrem o caminho de uma construção paulofreireana: ser, falar e conhecer são ações e por serem ações se cruzam com outras ações. Não há princípio nem há um fim. Há processo. Por isso as ‘essencialidades’ paulofreireanas não são ontologizadas. Suas estabilidades são aquelas dos processos, transformação sem porto de chegada.
Ainda não sabemos costurar uns casos aos outros, uns acasos aos outros, umas histórias a outras histórias sem perder o vigor de sua singeleza, sem perder as cores próprias da sua singularidade. Talvez hoje tenhamos aprendido que hão há como compor uma cor outra, produto da abstração, porque os futuros já definidos estão para sempre problematizados. Talvez este seja um momento necessário para nos sentirmos dentro da floresta, examinando minúcias, pra depois retornarmos ao promontório de que saímos e cuja existência não esquecemos. E uma vez lá, recuperarmos nossas utopias. Mas a viagem de retorno ao promontório nunca mais será uma volta, será sempre outra viagem.
Dispúnhamos e dispomos de certas técnicas de escuta, mas não sabemos com precisão que toque, que palavra, que gesto produziu o encontro com outro toque, outra palavras, outro gesto, e na faísca deste encontrou escreveu e sulcos no ar uma outra imagem, uma terceira palavra capaz de criar uma compreensão, exigir um investimento intelectual e desencadear este encanto que é o pensamento. Pensar exige liberdade. Pensar exige silêncios e vazios. Inacabamentos. As palavras de Paulo Freire contracenam com as palavras de Mikhail Bakhtin e ambos ressoam nas palavras do poeta, porque eles – e também nós – escolheram – e escolhemos – no ínfimo, nas periferias, as raízes de que brotarão, sempre renováveis, outros tempos e outras existências.
As coisas jogadas fora por motivo de traste
são algo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo do que as ideias.
Porque as ideias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas modo um caminhão de areia.
E as ideias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Ideias são a luz do espírito – a gente sabe.
Há ideias luminosas – a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm …………………………….
……………………………………. Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.
(Manoel de Barros, Teologia do Traste)
Nas palavras ainda do mesmo poeta, encontraremos a esperança nas escolhas das coisas desimportantes que ensinarão que a vida se tece também com o canto dos pássaros, o perfume das flores e o sorriso das crianças:
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo. Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática: eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios
(Manoel de Barros, O apanhador de desperdícios)
Nota
- Texto escrito para minha participação no V Colóquio Internacional Paulo Freire: desafios à sociedade multicultural, realizado em Recife, na Universidade Federal de Pernambuco, pelo Centro Paulo Freire de Estudos e Pesquisas, de 19 a 22.09.2005. Inicialmente o título deste texto, que apareceu no programa do Colóquio, era Subjetividade, linguagem e conhecimento. Depois de ouvir uma das palestras do Colóquio que fez referência ao fato de Paulo Freire gostar mais dos verbos do que dos substantivos, porque aqueles remetem ao agir, ao fazer, ao ser, estes remetem às coisas e têm certa característica estática, de fixidez, fechando os sentidos dos objetos, das coisas e das gentes; ao contrário, os verbos levam ao movimento mesmo quando servem apenas para ligar a algo uma qualidade, porque esta é mutável ou quando falam de um estado, também mutável. Assim, quando o Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo me pediu um texto para sua revista, alterei o título do texto nesta publicação que foi minha homenagem ao grande mestre e amigo Paulo Freire. No entanto, fui infeliz na escolha, ainda que tenha posto entre aspas o “essencialidades”. Talvez mais adequado fosse pensar em “pontos de partida” ou “postos de observação”. Fiel à publicação, mantenho aqui o título. Publicado nos Cadernos de Pesquisa em Educação – PPGE – UFES. 2007, número 25, p. 9-23. Este texto foi incluído na coletânea organizada por Jean Mac Cole Tavares Santos (org) Pauo Freire. Teorias e práticas em educação popular. Escola pública, inclusão, humanização. Fortaleza : Edições UFC, 2011, p. 21-33.
Referências
Bakhtin, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 1929-1979
_____________ Para uma filosofia do ato. Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tesse, para uso didático e acadêmico, de Towards a Philosphy of the Act. Austin : Texas University Press, 1916-1993.
Barros, Manoel. “O apanhador de desperdícios” in. ______ Memórias Inventadas: a infância. São Paulo : Planeta, 2003.
____________ “Teologia do traste” in. ______ Poemas Rupestres. Rio de janeiro : Record, 2004.
Deleuze, Gilles. “Os intercessores”. L’autre jornal n. 8, out. 1985. Entrevista concedida a Antoine Dulaure e Clare Parnet. In. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro : Editora 34, 1992.
Freire, Paulo. Pedagogía del oprimido, 7ª. ed.. Buenos Aires : Siglo Veintiuno, 1974.
__________ Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1996.
__________ Extensão ou comunicação? 12ª. ed., Rio de Janeiro : Paz e Terra, 2002.
Geraldi, João Wanderley “Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. O encontro que não houve in. Norma Sandra de Almeida Ferreira (org) Leitura: um cons/certo. São Paulo : Cia. Editora Nacional, 2003.
___________________ “Problematizar o futuro não perder a memória do quehá de vir”. Comunicação apresentado no IV Encontro Internacional do Fórum Paulo Freire, Porto, setembro de 2004.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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