Escrever sem amarras

Não perdi a vontade de escrever.

Quero, e preciso dizer, enquanto posso que tenho em mim todas as cores do mundo, e por minhas palavras falam pessoas várias. Umas precisam mais do que outras das minhas escrituras, embora nenhuma delas me leia ou sequer saibam da minha existência, e não é por isso que escrevo.

Escrever para registrar que teremos muito para ser desconstruído e construído, porque o caos já está entre nós, e Lula não. Esse texto é sobre o momento que a gente vive.  Poderia ser sobre qualquer assunto, afinal, dada à conjuntura, todos os assuntos convergem para o mesmo.

O assunto não é o medo, poderia, porque vivemos acompanhados deste sentimento que há anos tem sido alimentado: – é preciso ter medo – sussura o fascismo.  O medo geralmente nos imobiliza, eu que lido com crianças já vi muito isso, um grito, um soco na mesa, violência então aterroriza. Quando percebemos já estamos andando cabisbaixos, buscando andar sempre com roupas neutras, com aparência limpinha, “esbranquiçada” até.

Existem homens que não.  Lula é um desses homens.

Não bastou prendê-lo, é preciso calá-lo.   Sem imagens que alimentem nossa esperança.  Apenas a nossa saudade, de ouvi-lo dizendo que venceremos no final porque o amor é maior, porque ele confia no nosso povo. Quero dizer que tenho saudades do Lula. Não do que construíram na mídia, mas do que passeia em meio ao seu povo, que emerge do seio de sua gente, que abraça mulheres e homens demoradamente, do que acolhe crianças, do que sonha um país melhor sem falar de morte, sem pregar o ódio, do que sabe a ordem das coisas pela sua experiência de vida.

Aconteça o que acontecer: tenho saudade do Lula.

Alguém que ousou sonhar jovens negros na universidade, destemidos, empoderados. Afastando o pesadelo de meninas do nordeste, de trajetória certa que seria servidão, como empregadas ou semi-escravas destinadas a servir de todas as formas aos patrões e patrõezinhos.

É sobre saudade, mas é sobre tristeza também, antes digo que só reconhecemos  que ela chegou porque em algum outro momento a gente foi diferente,  talvez feliz seja um adjetivo muito forte, mas quero usá-lo antes que seja tarde demais.  Lembrar que a gente, nossa gente, era um povo diferente que se orgulhava de comemorar, de ser muitos, de rir de si, de ter respeito e tolerância, ser amigo, comer uma carninha com o vizinho que nem torce pro mesmo time que o seu.  E estava tudo certo.

Algumas coisas aconteceram e a gente deixou de ser aquele povo

E esse novo é que me assusta, mas não me calará.  Um novo tão velho que a gente até se esquece de quão triste é esse período que pretendem retomar.  Alguns  esquecem,  outros desconhecem sem empatia pelas dores alheias,  mas eles existiram e eles não deixarão de existir se a gente fingir que não vê.

A tristeza revela-se em lágrimas e choros, muitos amigos começam a se preocupar com o futuro,  não de um jeito que sempre fez: organizar reservinhas de dinheiro, comprar passagens, esperar a restituição do imposto, torcer para entrar uma graninha extra que possibilite uma agradinho para si no final do mês. As preocupações agora são outras, miram na intolerância, no racismo, assassinatos, espancamentos, vandalismos,  atos de violência.

A violência se espalha rapidamente e ganha espaços em ambientes antes hostis a essas práticas, universidades recebem pichações, pessoas sofrem agressões como se dissessem:

– É preciso dar um basta, é hora voltar a ter exclusividade e acessos restritos.

Lembro-me de um filme chamado A Outra História Americana. No filme tem uma passagem em que o protagonista se revela fascista aos olhos do irmão mais novo, ele explica que estava defendendo as condições empregatícias e salariais dos seus iguais (homens brancos). Dada à juventude de seu irmão ele entende aquilo como possível, e faz todo sentido a sua compreensão limitada afinal a crise estava instalada e era preciso assegurar o bem-estar primeiro aos seus, como fazê-lo? Matando ou enviando para seus países ticanos, latinos e negros. Esses grupos extremistas vão avançando e dando um sentimento de grupo, e pertencimento de algo maior oque para quem não tem nada é fascinante. Imaginem: participar de algo grande. Até que o protagonista mata um homem negro, por espancamento.  Um filme que vale a pena ser assistido e recomendado para as pessoas que quer apenas se proteger.

A tristeza é pela cegueira, e pela saudade. Em breve resolveremos as duas coisas, diria uma das minhas vozes que esta presa.

-Pelo povo, por nossa alegria, por nosso jeito, pela vida. Venceremos todos!

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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