ESCOLA SEM PARTIDO, PARTIDARIZADA PELO PENSAMENTO CONSERVADOR

Depois de escrever a crônica de ontem sobre a escola desejada pela direita com o projeto da “escola sem partido”, recebi gratos comentários. Um deles me faz voltar ao tema. Assinado pela amiga Tati Fadel:

Eu e a Klara Schenkel, porém, planejamos um contragolpe: assim que alguém falar “Meu Deus”, ou “Nossa Senhora” ou “Feliz Natal ou Páscoa”, a gente também denuncia, porque está indo contra a formação não cristã que pretendemos. Ou denunciaremos quem falar de empreendedorismo, por contrariar nossos princípios comunistas. Plano: inundar o MP de denúncias diárias até chegar ao limite do intolerável, hahahaha

Tati Fadel

Ela mesma me dizia que em algumas escolas particulares já está a acontecer a censura. Pais evangélicos proíbem “contos de fada” por serem coisas do demônio! Já imaginava que, se aprovado o projeto, muita censura viria precisamente dos fundamentalismos evangélicos, católicos, muçulmanos ou que qualquer outra natureza, além dos ideológico-partidários. Não sabia que já estavam presentes no chão da escola particular. E talvez da pública sem que a gente saiba. Na minha experiência de orientação de professores, algumas vezes tivemos problemas com alguns livros de literatura. Érico Veríssimo foi censurado por um pai, que reclamou da professora de português porque sua filha estava lendo, acho, “Um certo capitão Rodrigo” (que é parte de O Tempo e o Vento).

Parece que agora o clamor fundamentalista chega ao Parlamento, num momento muito oportuno para a direita brasileira. Se o projeto for endossado por Michel Temer (e ele endossa qualquer coisa que lhe dê algum apoio, seja o que for), será aprovado. Embora obscurantista, sairá pela rua a grande plumagem tucana defendendo as ideias de um filhote de seus ninhos… Não será o caso de usar chumbo-grosso, dando a tarefa ao sociólogo que acreditou que era “o príncipe dos sociólogos”. Mas se necessário, vai ele mesmo defender o obscurantismo, porque afinal ele já disse que era para esquecermos o que escreveu no passado, embora nada tenha dito sobre o que escreve hoje. Neste caso, penso que devemos ignorar simplesmente, para não ter de esquecer depois.

Todo movimento da renovação pedagógica de nossas escolas, particularmente aquele iniciado com a redemocratização do país, terá um refluxo enorme! Como já há livros de pós-modernos elogiando a escola do século XVIII, nada mais oportuno do que um projeto de lei que assume partidariamente uma posição – as concepções sociais de direita – para pedir uma “escola sem partido”. É engraçado isso: é partido quando faz críticas à situação político-social, quando faz alertas para o esgotamento da exploração do planeta. É sem partido quando aceita piamente o status quo, quando ensina baixar a cabeça, quando enche a cabeça de todos com conhecimentos alienados e sem sentido, quando não ultrapassados.

Fico feliz por estar aposentado. Certamente estaria entre os professores denunciados por “partidarismo”, pois afinal li com meus alunos muitas obras do Círculo de Bakhtin. O próprio título da obra assinada por Volochinov, “Marxismo e Filosofia da Linguagem” me condenaria… Na verdade, quando o li pela primeira vez, evitei citá-lo não pelo título mas pelo conteúdo (li a versão editada pela Siglo XXI que lhe deu o título de “La filosofia del Lenguaje y el Signo Ideologico”). Os tempos ainda eram da ditadura militar e já tínhamos aprendido a nos cuidarmos, coisa que a geração atual terá que aprender a duras penas com a ditadura civil que se apresenta prendendo até ex-senadores (Eduardo Suplicy, preso ontem pela truculenta polícia de São Paulo apadrinhada, aliás, pelo mesmo partido que apresenta o projeto da “escola sem partido”).

Nossa história, é bom recordar, é cheia destes momentos de aprendizagem para conviver com a democracia e com a falta dela: a república começa com marechais, tem um fôlego de democracia parcial e formal na primeira república (28 anos), segue-se uma ditadura de 15 anos (período do Estado Novo de Vargas), novamente uma democracia formal sob a égide da Constituição de 1946 durante 20 anos, e vêm os militares impondo uma ditadura truculenta por outros 20 anos. A nova república começa claudicante em 1985 e dura até 2016, “exagerados” 31 anos!!! Era muito tempo de democracia para as elites brasileiras, tacanhas, egoístas, retrógradas e escravocratas. Estamos amargando o começo de um novo período neste ciclo que precisamos romper na história do país: um golpe a cada 20 e tantos anos em média!!! E a história ensina: o tempo da ditadura é longo psicologicamente, mesmo quando breve cronologicamente.

A resistência da escola será fundamental, como já foi fundamental no passado. Espero que não cheguemos às listas de palavras que não podíamos usar em nossas salas de aula sempre frequentadas por informantes do SNI (talvez inexistentes apenas nos primeiros anos do ensino fundamental). Expressões como “consciência”, “questão social”, “realidade social”, “miséria”, “estrutura fundiária”, entre outras, eram já motivos de suspeita sobre nós!!! Comecei minha carreira universitária aprendendo imediatamente a evitar estas expressões… Mas aprendemos a usar outras. Foucault nos forneceu a Ordem do Discurso; Bourdieu e Passeron, A Reprodução.  

Resta sempre a pergunta: que obras encontrarão Tati Fadel e Klara Schenkel para dar suas aulas de literatura no ensino médio? Nem Nélson Rodrigues poderão ler por questões morais! Talvez Plínio Salgado? Poderão ler Tiago de Melo, porque agora é golpista?

A tática das denúncias proposta pelas colegas é interessante! Se seguida por muitos professores, ao menos ocuparão os olhos de promotores e lhes mostrarão que as denúncias “fundamentalistas” são tão ridículas quanto aquelas que podemos inventar. A tática, como ensinou Michel de Certeau, é a tábua de salvação dos vencidos. Que estratégia arrumarão os vencedores e golpistas para soçobrar as táticas dos vencidos? Criarão cadeias clandestinas para torturas e desaparecimentos como no passado que já vivemos? A fraudulenta Folha de S. Paula emprestará seus veículos à repressão?  

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.