Estamos em tempos de implementação da Reforma do Ensino Médio, vendida ao Congresso como algo inadiável: foi encaminhada como Medida Provisória, dada a urgência. Mas o próprio texto, agora lei, prevê que teremos cinco anos para realizá-la. E mesmo assim, não serão atingidos os objetivos a que se propôs, pois os prazos de algumas alterações previstas são mais largos do que estes cinco anos. São as urgências deste governo que precisa mostrar serviço de uma ou de outra forma, ainda que as verdadeiras urgências, que o assolam, sejam as negociatas para arquivar processos de investigação que envolvem o presidente usurpador e seus auxiliares mais próximos.
Já em outubro de 2016 o MEC cria e normatiza o Programa de Fomento à Implementação da Escola de Tempo Integral (Portaria 1.145, de 10.10.2016), para ir agilizando a concretização da reforma, então ainda uma Medida Provisória. O programa – EMTI – recebe nova regulamentação através da Portaria 727, de 13.06.2017.
Como sabemos pela propaganda maciça, o chamado “novo ensino médio” permitirá ao aluno que escolha seu “itinerário de formação”, elencando a lei os seguintes caminhos: 1. Linguagens e suas tecnologias; 2. Matemática e suas tecnologias; 3. Ciências da natureza e suas tecnologias; 4. Ciências humanas e sociais aplicadas; 5. Formação técnino-profissional. Como as escolas não são obrigadas a oferecerem todos os itinerários, na verdade o estudante optará por um deles dentre os oferecidos por sua escola.
Considerando que a formação técnico-profissional demanda recursos inexistentes e jamais aplicados na educação, para a instalação de laboratórios e oficinas, e considerando que os sistemas de ensino não dispõem nem de material físico nem de professores especializados, já se sabe que as ofertas excluíram, por razões óbvias, precisamente a formação profissional tão cantada no marketing do MEC nas televisões brasileiras.
A tentativa de tornar o ensino médio profissionalizante, no Brasil, não é nenhuma novidade: esteve no ideário da primeira república; reapareceu no Estado Novo (Reforma Capanema); foi imposta na ditadura militar pela lei 5692/71 e retorna agora à ordem do dia. A inspiração e as constantes retomadas destas ideias se devem particularmente ao fato de que inúmeros países têm um sistema dual: os estudantes são encaminhados pelo próprio sistema ora para a formação propedêutica visando o ensino superior, ora para a formação profissional. Em alguns países o sistema é tão dual que estudantes que foram encaminhados para a formação técnico-profissional, terminado o curso, não podem acessar ao ensino superior. Nestas sociedades, no entanto, há duas diferenças essenciais: a educação é realmente uma prioridade e há recursos para uma boa formação profissional e, em segundo lugar, o técnico é bem pago no mercado de trabalho, com salários muito próximos daqueles dos profissionais com curso superior. As diferenças não são escandalosas como as existentes no Brasil. Mas mudar esta cultura de desvalorização do trabalho manual, em benefício do trabalho intelectual de controle e comando, está a anos-luz dos interesses do sistema econômico. Por isso, o faz de conta da formação ajuda: como não são bons técnicos (porque a escola não tem infraestrutura para formá-los), não precisam receber bons salários.
As tentativas anteriores falharam e há duas razões fundamentais para isso: 1. Inexistência de recursos para equipar as escolas e estas poderem oferecer efetivamente uma formação técnica de alto valor ou ao menos em valor equivalente às escolas do Sistema S e às antigas escolas técnicas federais; 2. A desvalorização do técnico no nosso mercado de trabalho.
Mantidas estas condições – de infraestrutura e de desvalorização salarial – a nova tentativa introduzida como novidade (como disse Cazuza, “um museu de grandes novidades”) fracassará. Enquanto a consciência do fracasso não vier, muito tempo será gasto discutindo a implantação da “novidade”.
Todos somos a favor de uma escola de Tempo Integral que vise a formação integral das crianças, dos adolescentes e dos jovens brasileiros. A reforma, no entanto, quer implantar o tempo integral não visando a formação integral (até os temas transversais que poderiam integrar disciplinas desapareceram da BNCC do ensino fundamental e não reaparecerão no ensino médio). Trata-se de proporcionar uma formação focada num dos itinerários. Afastada a “ideologia da formação integral” que tem por objetivo último a formação da cidadania (aliás, o projeto de uma Escola Sem Partido está aí na ordem do dia para realizar tamanha tarefa), restarão os estreitos limites impostos por cada um dos itinerários!!! Uma especialização antes da hora. Ou pelos limites da formação profissional: a lei prevê inclusive que as disciplinas que compõem o ensino básico no nível médio tem um limite máximo de carga horária total de 1.800 horas. Não especificando o mínimo exigido, um curso profissional poderá ter uma carga qualquer nas diferentes áreas do conhecimento científico, para centrar a atenção na especialidade profissional: há que aprender a apertar parafusos… É preciso ter claro que há uma distância enorme entre tempo integral e formação integral (esta pode até ser dada sem que haja regime de tempo integral, embora este fosse desejável)
Pois graças ao programa de fomento do tempo integral, eis que os Estados estão implantando o regime em suas escolas, pois o canto de sereia de recursos a mãos cheias encanta as Secretarias Estaduais de Educação. Esquecem que na Portaria 727, de 13.06.2017, o segundo parágrafo do artigo 28 diz: “Os repasses às SEE será calculado anualmente, segundo disponibilidade orçamentária”. Ora, com o congelamento de gastos em educação para os próximos 20 anos, feito pelo governo, permitirá folga orçamentária para financiar o tempo integral das escolas de ensino médio?
A SEE de Sergipe está lutando com unhas e dentes para impor o tempo integral mesmo quando a comunidade escolar – estudantes, professores e pais – se manifestam contrários ao regime! E faz mais esta Secretaria: seleciona professores para o regime de tempo integral, oferece-lhe vantagens – uma gratificação de 100% sobre o salário ou a unificação numa mesma escola de seu duplo vínculo (uma excrecência história do Estado, que permite a professores terem duplo contrato de 40 horas semanais, que obviamente não podem ser cumpridas, pois ninguém cumpre uma carga horária (que não precisa ser de horas-aula) de 80 horas por semana!). E vai mais longe: como a implantação está sendo no primeiro ano de algumas escolas, estabeleceram-se diferenças dentro de uma mesma unidade escolar: os professores do regime de tempo integral tem tempo integral na escola, mas tem pouquíssimas aulas para ministrar porque somente dão aulas aos alunos do primeiro ano. Uma cisão interna na categoria dos professores. Mas vai além: há salas de professores distintas, uma para os “integrais” e outra para os outros, os “desnatados” (estes apelidos são correntes entre os professores da rede estadual de Sergipe) e, pasmem!, até a alimentação escolar é diferente para uns e para outros!!! Trata-se, simplesmente, de um escândalo!
No entanto, as escolas não preenchem as condições de infraestrutura exigidas pelas normas para sua inclusão no programa EMTI. Mas isso pouco importa a esta – e provavelmente a outras secretarias estaduais. Estão de olhos gordos nas verbas… que provavelmente não virão. Quando a MP da reforma indicou um valor a ser gasto para torná-la – 1.500 bi de reais – esqueceu de dizer de onde sairão estes recursos, já que a correção do orçamento do MEC será apenas aquela da inflação, e estes recursos não davam conta do que existia antes das escolas de tempo integral!!! Sabe-se, no entanto, que o governo está correndo atrás de um empréstimo de 250 milhões para fazer frente a estas despesas. Se obtiver o empréstimo, Henrique Meirelles estaria disposto a aplicar tanto dinheiro na educação, tendo um rombo para cobrir??? Se fosse outro o governo, diriam que é irresponsabilidade fiscal!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Em suma: a reforma do ensino médio é um engodo e só a engole quem quer engolir. Acham que os pais que pagam um rio de dinheiro nas escolas particulares vão aceitar que seus filhos façam uma formação “focada” num dos itinerários e fiquem despreparados para enfrentar as exigências dos cursos superiores? Nem brincando!!! Mas a lei é para todos e a classe média ainda não descobriu que está elogiando o sapo que seus filhos terão de engolir!
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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