Ensino de gramática x reflexão sobre a língua

Na escola em que nos formamos e à qual retornamos por opção profissional, há uma arraigada tradição de ensino dos chamados conteúdos gramaticais, já que caberia à escola, supostamente, sistematizar o conhecimento resultante da reflexão assistemática, circunstancial e fortemente marcada pela intuição de todo falante da língua, propondo-se esta sistematização como um suporte necessário a um melhor desempenho linguístico dos estudantes.

Sabe-se, no entanto, que tal sistematização não se dá, na prática de sala de aula, de forma tão sistemática. O simples manuseio de alguns livros didáticos, ou de materiais alternativos produzidos para substituí-los, nos mostra que a sequência em que são trabalhados tais conteúdos gramaticais dificilmente permitirá, ao final de oito anos de estudos, que o aluno tenha um quadro sinóptico de ao menos uma proposta gramatical. O conteúdo é distribuído, nas diferentes séries, de uma forma tão irracional que a uma lição sobre o plural de substantivos compostos pode-se seguir uma lição de análise sintática. Qual é, então, a sistematização que se oferece à reflexão prévia do estudante? Tratar-se-ia de uma sistematização a cada vez local? Por conta de quem ficaria, então, a construção de uma visão geral da teoria gramatical estudada? Por conta do estudante?

Acrescente-se a estas questões um problema que subjaz a toda esta prática escolar: ela se dá como se a escola estivesse sistematizando uma reflexão que lhe fosse prévia. É bem verdade que todo falante realiza, em suas atividades linguísticas, atividades epilinguísticas, em que avalia os recursos expressivos que utiliza: se são apropriados para a ocasião, se exprimem oque se deseja, o que é preciso silenciar e o que é preciso dizer, quais os conhecimentos que é preciso tomar como compartilhados etc. No entanto, as atividades de ensino dos conceitos gramaticais não constituem, na prática escolar, a desejável continuidade destas reflexões epilinguísticas, mas se apresentam, ao contrário, como a verdadeira e única reflexão sobre os recursos expressivos de uma língua. E, ainda pior, as análises resultantes das teorias gramaticais que inspiram os conteúdos de ensinados são respostas dadas a perguntas que os alunos (enquanto falantes da língua) sequer formularam. Em consequência, tais respostas nada lhes dizem e os estudos gramaticais passam a ser “o que se tem para estudar”, sem saber bem para que aprendê-los.

Assim, apesar da distância temporal que nos separa de Rui Barbosa, ainda permanecem atuais algumas de suas observações sobre o ensino:

Na escola atual, o ensino começa pela síntese, pelas definições, pelas generalizações, pelas regras abstratas. […] O fruto desse processo irracional é digno do método, que sistematiza assim a mecanização da palavra, descendo-a da sua natural dignidade, para a converter numa idolatria automática do fraseado. […] é de definições, de classificações, de preceitos dogmáticos que se entretece todo esse ensino. Em todo esse longo e penoso curso de trabalhos que nos consomem o melhor do tempo nos primeiros anos de estudo regular, não se sente, não há, não passa o mais leve movimento de vida. (Rui Barbosa. “Métodos e programa escolar” in. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. RJ, Ministério da Educação e Saúde, 1946 (Obras completas de Rui Barbosa, 1883, vol. X, tomo II)

Em estudo anterior (Portos de Passagem, SP, Martins Fontes, 1991) defendi o ponto de vista de que na correlação entre o trabalho de ensino e o resultada da reflexão científica processa-se a fetichização da ciência e seus produtos. Interessava-me, naquele momento, contrapor à prática tradicional do ensino de conteúdos gramaticais uma prática baseada em textos enquanto uma alternativa cujas preocupações fundamentais fossem as operações de construção de textos. Neste texto, pretendo avançar tal estudo, especificando, através de exemplos, como poderia se dar um estudo, inspirado na mesma concepção de linguagem e de seu ensino, de micro-operações (nível da palavra e da frase) de construção de textos.

Exemplo 1: estudo de uma questão ortográfica

Como se sabe, o fonema /s (ch)/ pode ser grafado, em português, ora com x, ora com ch. São clássicos os exemplos de palavras homófonas xá/chá; xeque/cheque, xarada/charada [neste caso, homófonas e sinônimas]. Todos nós professores já convivemos com as dificuldades de alunos, às vezes de séries avançadas do 1º. grau, em relação à grafia correta de palavras como enxergar/enchegar? enxame/enchame? enxoval/enchoval? enxente/enchente? enxarcado/encharcado? Registro aqui uma experiência de sala de aula em que os alunos, passo a passo, foram tentando construir uma regra prática para resolver suas dúvidas.

(a)    Face à ocorrência, em textos dos alunos, de uma ambiguidade ortográfica em palavras como enxergar/enchergar, enxada/enchada, enxame/enchame, foi lhes feita a proposta de estabelecer, diante de tais exemplos, quando deveria ser ch ou x. (1) A primeira resposta dos alunos foi o estabelecimento da seguinte regra geral:  Sempre que há um n antes, usa-se x.

(b)    Diante de tal regra, a professora acrescentou à lista de palavras problemáticas mais alguns itens lexicais, como gancho, rancho, inchume. Face aos novos dados, os alunos reformularam sua regra para: Sempre que há en antes, usa-se x.

(c)     Novamente a professora somou aos dados novos itens lexicais, como enchente, encharcado, encheção. Surpreendentemente, os alunos estabeleceram a seguinte regra, face aos novos dados: Sempre que há en antes, usa-se x, menos quando já existia a palavra, antes, escrita com ch.

Solicitados a explicarem a regra, os alunos disseram que enchente vem de cheio; encharcado vem de charco; e encheção vem de encher que quer dizer “deixar cheio”.    

Mais do que a aplicabilidade geral da regra formulada (há no mínimo uma exceção, enchova aliás a única que conheço), importa considerar o processo de trabalho, em que os alunos, a partir de uma dificuldade real, foram postos diante de dados para com eles elaborarem uma reflexão sobre uma questão, muito específica, da língua portuguesa. Obviamente, esta primeira reflexão ofereceu a oportunidade para o estudo de processos de formação de palavras, já que os alunos fizeram uso de seu conhecimento implícito a propósito, fazendo menção à derivação na regra que formularam.

Exemplo 2: estudo a propósito de uma classe gramatical

Longo tempo se gasta na escola para estudar as classes gramaticais, sem que o aluno consiga, a partir dos exercícios que lhe são propostos, entender que, tomando os próprios recursos da língua, está fazendo o mesmo raciocínio classificatório, tão comum em seu cotidiano, ao separar objetos, ao guardar roupas no armário, ao selecionar seus brinquedos etc. E não consegue entender porque, nas ações cotidianas, ele faz toda separação com base em critérios fornecidos pela sua experiência, pelos seus objetivos etc. Ora, as classes gramaticais lhes são apresentadas a partir de definições, sem que os critérios de classificação sejam explicitados e sem que os objetivos da própria classificação sejam considerados. Aprende nomes de classes, definições, faz exercícios, mas não consegue entender a razão de tais classificações. Obviamente, a teoria gramatical tradicional que embasa os estudos escolares não tem critérios muito precisos – ora os critérios são morfológicos, ora semânticos, ora sintáticos. Além disso, toda classificação responde a algum objetivo teórico (em língua não há classes naturais e aquelas que construímos respondem a alguma necessidade do estudo teórico que as produziu), e este objetivo nunca é explicitado no ensino da gramática (a classificação parece ter um valor em si).

Registro aqui a experiência de discussão com minha filha, quando aluna de 5ª. série. Em aula, a professora havida dado uma definição tradicional e escolar de verbo (palavra que exprime ação, estado ou fenômeno da natureza). A lição de casa, é claro, foi identificar os verbos de um texto (um uso comum e pobre de textos na escola).

Diante da tarefa a realizar e com base na “definição” estudada, o texto ficou bordado de “sublinhados”, traços que ela fez em diferentes cores (encontrando ao menos alguma coisa de lúdico na tarefa). Mas desconfiou: eram muitos verbos! Entre eles: felizes, ontem, doente, plantação etc. Pediu-me que olhasse a lição. Explicou-me a razão de cada palavra sublinhada não entendia porque eu insistia que devia sublinhar é e estão, recursos muito frequentes no texto. Sugeri-lhe um outro critério: sublinhar somente as palavras que lhe permitissem, quando estivesse falando, dizer nós + …mos (nós comemos, nós trabalhamos, *nós felizemos).

O número de palavras diminuiu sensivelmente, mas permaneceu um problema: os substantivos deverbais e alguns adjetivos permanceram sublinhados (no caso, trabalho, engano, alegre). Como dar conta destes casos, face à ‘regra’ que havia dado? Percebi que não bastava ter um critério morfológico para garantir uma correta identificação de verbos num texto. Era preciso considerar também o contexto de cada frase, para excluir casos como

… O trabalho foi difícil…

… o engano foi de Pedro…

…a moça ficou alegre…

Sugeri-lhe, então, que colocasse no lugar da própria palavra sublinhada “a fórmula” que havíamos combinado, para ver se resultava em algo que ela diria:

…O nós trabalhamos foi difícil…

A reação foi imediata: é claro que não vou dizer isso! mas também não vou dizer … “eu nós encontramos os colegas… e aqui [eu encontrei os colegas] você disse que eu acertei!

Embasbacado pela reação, tentei explicar que, na verdade, para identificar os verbos, era preciso imaginar uma outra fase, onde aparecess “nós + …mos. Ela aceitou a explicação, mas eu fiquei com um problema até hoje: como, na lógica que estava propondo, encontrar uma saída para alegre já que qualquer outra frase que ela tivesse imaginado no momento poderia conter nós alegramos (Nós alegramos a festa).

O resultado de todo o trabalho foi que ela achou muito difícil identificar verbos e não sabe para que fazê-lo; eu fiquei com uma questão para resolver. Nos novos exercícios, ela foi ‘quebrando o galho’, acertando aqui, errando acolá. Infelizmente, até hoje, não entendeu para que classificar as palavras… (e nem eu entendo para que ela deve saber fazer isso…).

Exemplo 3: estudo de uma questão pragmática

Em encontro com professores, tenho usado, com certa frequência, o exemplo que vou expor a seguir. Ao construí-lo e usá-lo, dois são meus objetivos: a) mostrar que se os alunos conseguirem (por algum meio que me escapa…) identificar classes gramaticais, o estudo não pode parar neste patamar; b) mostrar que a gramática que vimos manuseando não responde a todas as nossas questões e que, portanto, há assuntos ainda por pesquisar. O estudo é construído nos seguintes passos:

(a)    Dada seguinte sequência

(a’) Ontem comprei um livro. O livro é ótimo e você deveria lê-lo.

Tratando-se do mesmo livro, como explicar a ocorrência de “o livro” e a impossibilidade da ocorrência de

(a’’) Ontem comprei um livro. Um livro é ótimo e você deveria lê-lo.

A resposta imediata tem sido expressa na seguinte regra intuitiva:

R1: Sempre que se trata de um mesmo objeto de que já se falou, na segunda vez usa-se o artigo definido.

(b)    Face a esta regra, contraponho:

(b’) Ontem comprei um livro. Um livro ótimo que você deveria ler.

A reação imediata dos professores tem sido:

1)      Indicar o fato de que em (a’) há uma frase (o livro é ótimo).

2)      Indicar que a razão para o uso de um em (b’) pela ausência de pronome oblíquo.

3)      Mais raramente, justificar o emprego de um com base no fato de haver uma oração relativa em (b’).

(c)     Ontem comprei um livro. O livro que você me indicou.

(d)    Ontem comprei um livro. Um livro que você me indicou.

(e)    Ontem comprei um livro. Um livro que você me indicou e minha mulher pretende começar a lê-lo logo.

A verdade é que a R1 precisa ser reformulada, embora ela nos forneça uma pista fundamental para o emprego do par o/um.

Apesar dos conhecimentos gramaticais, os constantes exercícios de análise sintática, a distinção das modalidades oral/escrita, diante de dados simples como estes, dificilmente os professores manuseiam seus conhecimentos para tentar obter uma regra mais especificada do que aquela já formulada. Este fato me mostra que também os professores que justificam o ensino gramatical com base na necessária (?) sistematização, quando confrontados com dados linguísticos, não percebem correlações entre um tópico da gramática com outros tópicos da mesma teoria gramatical.

Deixo para os leitores a construção de uma solução para o exemplo 3 porque, repito-o, mais do que encontrar um resposta, o que vale na reflexão sobre a língua é o processo de toma-la como objeto. As tentativas, os acertos e os erros ensinam muito mais sobre a língua do que o estudo do produto de uma reflexão que se estuda. Com os três exemplos, penso ter mostrado a distinção fundamental na atitude de ensino/aprendizagem de língua na escola, o que permitiu o próprio título deste texto, colocando em contraponto o ensino gramatical e a reflexão sobre a língua.

 

Nota

A revista Dois Pontos. Teoria e prática em educação, vinculada ao Sistema Pitágoras, encomendou-me um texto sobre o ensino de gramática. O texto foi publicado no Vol. 2, n. 15, primavera de 1993. Posteriormente fui convidado a participar do II Congresso Qualidade em Educação, realizado em Belo Horizonte, 28 de julho a 1º. de agosto de 1993, sob os auspícios do Sistema Pitágoras. Estava em terreno minado! O Sistema Pitágoras tinha um projeto pedagógico próprio: Qualidade Total em Educação. Lembro que iniciei minha fala dizendo que não há qualidade em si, mas qualidade em relação a algo: a um projeto de educação que não pode estar desvinculado de um projeto de sociedade. Qualidade não se mede pela quantidade de conhecimentos já dados e “adquiridos” na escola. A qualidade deveria ter no horizonte os dois projetos e ser considerada em função dos sujeitos sociais que ajuda a formar para construir e concretizar o projeto social. E desviei minha fala para questões sobre estes sujeitos sociais que estão sempre em formação. No vol. II, n. 16 da revista saiu uma reportagem sobre a mesa-redonda de que participei – Leitura e escrita: um processo sempre em desenvolvimento. Nenhuma palavra sobre o fato de que “qualidade” é uma expressão semanticamente relacional. Mas foram fieis ao pequeno texto que escrevi e lhes entreguei: transcreveram-no no corpo da reportagem. É um texto que recorta outros e que apenas serviu para sustentar uma fala: por isso não o considero um texto que tenha publicado. Transcrevo aqui o texto publicado no número anterior da revista.

(1)    Obviamente, a professora poderia ter incluído nesta reflexão também pares como deixar/deixar; caixa/caicha/cacha/caxa ampliando os dados para além daqueles que tiveram ocorrência nos textos dos alunos.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.