ENEM: O CONHECIMENTO SOB ATAQUE

Não pretendia comentar a prova do ENEM. Não porque não concordasse com as perguntas agora criticadas por pessoas que não enxergam o mundo a não ser de modo enviesado por sua própria ideologia que lhes fornece óculos absolutamente inadequados para compreender o mundo de hoje.

O mundo não é uniforme. O mundo descobre sua diversidade e percebe que é ela quem o enriquece. Passou-se o tempo missionário que sobreviveu ao fim da Idade Média e chegou aos começos da modernidade. O amálgama social da Idade Média era a fé. A modernidade deslocou este amálgama para o conhecimento. E a modernidade não deixou de defender a liberdade religiosa, agora de “religiões” e não mais de uma só religião”! Os missionários tiveram livre curso e continuam a ter, mas convivem com a diversidade de interpretações, mesmo quando a palavra de base é a mesma. O sonho medieval de um único credo sobre o mundo desapareceu.

O conhecimento produzido em suas diferentes áreas contribuiu e continua a contribuir para que as percepções medievais sejam deixadas de lado. E para que o convívio com as diferenças seja objeto de reflexão, de estudo, de compreensão. Não uma compreensão piegas, mas uma compreensão fundada no conhecimento.

Vamos pois ao exame do ENEM. Comecemos pela razão principal por que não queria comentá-lo: sou contra avaliações de larga escala que sirvam para “classificações” dos sujeitos e das instituições no mundo da educação. Avaliações de larga escala deveriam servir somente para diagnósticos que embasariam programas de melhorias. E quando estas avaliações incidem sobre retenção de conhecimentos, é preciso ainda ter presente que os resultados são o retrato de um momento: o fato de um estudante não saber responder uma questão durante uma prova não significa necessariamente 1) que ele não saiba a resposta, porque a situação de exame sempre produz seus efeitos corrosivos e momentâneos; 2) que o tema não tenha sido tratado adequadamente ao longo de sua escolaridade; 3) que é culpa do sistema de ensino os baixos escores obtidos pelos estudantes nas provas. Há razões de outra ordem que uma avaliação de retenção de conhecimentos não considera, desde as diferenças sociais que influenciam cada escola em particular e cada estudante concretamente até problemas das formas linguísticas com que se elaboram questões de provas.

O exame deste ano está sendo criticado pelo pensamento de viseiras fundamentalmente por dois motivos, o atualíssimo tema da redação, levando a refletir sobre a manipulação dos sujeitos pelas redes sociais [como obviamente aconteceu durante as eleições presidenciais, com o apelo massivo a mentiras] e pela pergunta sobre um jargão muito específico, aquele utilizado em comunidades LGBTQ.

Se perguntas de uma prova elaborada com base em critérios técnicos e científicos estão sendo motivo de censura, com o presidente eleito afirmando que “isso tem que mudar” e que o governo lerá as questões desta prova (antes de sua impressão e distribuição nacional, supostamente e por isso mesmo criando problemas para o sigilo das provas), então o ataque é o mesmo que pretende o projeto de imbecilização do país chamado Escola Sem Partido. E estes ataques estão sendo feitos por um pensamento: o pensamento medieval teocrático!!! A censura não é política, mas religiosa!!!

Foi a entrevista de Maria Inês Fini, presidente do INEP, órgão responsável pela prova do ENEM que me levou a escrever: ela deu a resposta correta ao ataque, numa entrevista ao El País. Nunca comunguei as mesmas perspectivas com minha colega da Unicamp. Mas enfim um quadro técnico do PSDB vem a público, sai do muro e se manifesta de forma corajosa contra a onda medieval teocracia que nos assola. Como seu nome era uma indicação das Forças Armadas para o Ministério de Educação, esta sua entrevista encerrará sua carreira como gestora educacional e demonstra, de sobejo, mais coragem, algo tão ausente nas hostes do PSDB.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.