ENEM 2017: UM TRAÇO FORA DA CURVA?

Acostumados a outros “escândalos” relativamente às provas do ENEM (acusações de vazamento, sumiço de provas, erros em questões e outras pequenas falhas que faziam o gosto da mídia interessada em produzir escândalos), desta vez tivemos outras instituições e os fatores interferindo neste Exame Nacional, porta de entrada para a Universidade para grande parte dos jovens brasileiros.

Comecemos pelas inscrições (6,1 milhões de inscritos). Apesar do número astronômico, ele representa 65% do número de inscritos no ano passado! Uma redução de 35% no número de candidatos ao ensino superior deveria ser motivo de grande preocupação e debate entre educadores, entre os elaboradores das políticas públicas de educação e entre os responsáveis pela condução da economia nacional. A sensibilidade para perceber o rombo nos sonhos dos jovens, no entanto, está embotada pela crise econômica, encoberta diariamente com o bombardeio midiático supostamente “contra a corrupção”.

Enquanto o público se enoja pelo que ouve, o projeto de sociedade vai sendo delineado e implantando: enquanto nos governos anteriores houve aumento significativo de oportunidades, com elevação do número de vagas e a criação de novas universidades públicas, além dos programas PROUNI e FIES, agora determina o MEC a redução de vagas nas universidades federais, por simples portarias… Mas isso não é notícia que valha a pena para a mídia brasileira. São poucas vagas, mas são vagas a menos! Junte-se a isso o fim do FIES, a redução de verbas para a educação, e está traçada a “nova” geografia de acesso ao ensino superior. Trata-se do “novo” que o retrocesso traz: o acesso ao ensino superior voltará a ser privilégio da elite e da classe média. Logo, muito logo, não haverá mais ensino superior gratuito, porque o estrangulamento orçamentário das universidades vai exigir alguma forma de financiamento para que não chegue ao patamar em que as universidades públicas foram deixadas pelo governo de FHC.

O segundo problema: o editorial do ENEM torna público um critério de correção das redações. Trata-se da exigência de respeito aos direitos humanos nas respostas dos estudantes. O discurso do ódio, do racismo, do nazi-fascismo que está no ambiente político e policial do país seria motivo de reprovação na prova de redação. O MBL ficou tiririca… e MBL braba põe medo, muito medo, no Judiciário brasileiro. Então um juiz, em primeira instância, suspende a proibição do desrespeito ao que é lei no país! E a Dona Carmen Lúcia o secunda apressada, num despacho que é um primor: o defeito era expor o critério de exclusão, se fosse um critério de correção, não explicitado, tudo bem… Ora, explicitar o motivo único que levaria à nota zero na redação, um exercício de democracia, coisa rara no Brasil de hoje, foi o crime do INEP!!! Um crime que imediatamente o Judiciário veio “corrigir” para salvaguardar o sagrado direito de ofender sem ser incomodado! O Judiciário está aí para garantir o discurso fascista que vem ele próprio proferindo sem qualquer respeito à sua própria jurisprudência, neste estado de exceção em que estamos vivendo: julga-se segundo a cara do freguês. E se o freguês é “bom”, ‘isto não vem ao caso’!

E aí veio a prova. E o tema da redação pôs milhões de jovens a descobrir que existe uma minoria, a ter que pensar sobre esta minoria, a ter que engolir que esta minoria tem direito à educação. Quando se pergunta pelos “desafios da educação de surdos”, pressupõe-se e afirma-se que eles têm direito à educação. Este o quadro de partida para o autor da redação, dado pela forma de expressão do tema. Não aceitar um pressuposto é recusar o ponto de partida do outro (no caso, o da prova). Certamente deve ter havido algum militante do MBL, daqueles mais afoitos, que recusou o pressuposto. Afinal, nos tempos do líder histórico máximo do movimento, Hitler determinou que na Alemanha não haveria surdos, não haveria deficientes físicos ou mentais. Mandou todos para sanatórios, e a mídia de então, como faria a mídia de hoje, apregoava a existência de um tratamento milagroso – todos seriam curados. Alguns meses mais tarde, os pais recebiam individualmente a cartinha do governo informando que o “paciente” não resistiu ao tratamento. Foi assassinado, mas ‘isso não vem ao caso’. Estes que recusaram o pressuposto estão garantidos pela lei: Dona Carmen Lúcia disse que podem dizer o que quiserem…

O mais importante do tema desta redação foi obrigar a pensar! E pensar num problema que não frequenta as escolas. Não está no currículo. Não é previsto pela BNCC. Aliás, as perguntas de cultura geral que apareceram na prova de Humanidades estão totalmente em desacordo com a BNCC em tramitação… Tudo para mostrar que o básico é insuficiente para ser aprovado para ingresso no ensino superior!

Esta prova está fora da curva: fez o MBL engolir um tema que envolve direitos humanos de uma minoria; fez Dona Carmen Lúcia engolir seu despacho (uma boa ideia era encomendar um despacho para vários ministros do STF); fez os ‘examinandos’ pelo ENEM terem que pensar e escrever sobre o que a maioria não quer ver – a existência de diferenças num sociedade. E traz para os professores inúmeros ensinamentos, o pior deles, infelizmente, é que a Justiça não gosta de direitos humanos!!! 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.