Nos últimos anos, dificilmente aceito convite para participar de eventos. Penso que já dei minha contribuição possível, sempre abaixo do desejável, e que a partir da idade em que estou somente conseguiria me repetir, me repetir.
Mas como sou cidadão honorário de Petrolina, no sertão pernambucano, não pude deixar de aceitar o convite da Universidade de Pernambuco, na pessoa do Prof. Genivaldo Nascimento, criador do Clisertão, para participar de sua quarta edição. Preparei meu texto, A literatura e a esclerose da sensibilidade, já publicado neste blog (11.05.18). E lá me fui para Petrolina mais uma vez.
E as surpresas foram chegando… já no trânsito do aeroporto para o hotel, vou com um pai e filha que chegavam de Roraima. Venezuelanos. Ele tocando arpa, ela tocando tricordino, se não me falha a memória. Vinham para atividades culturais nas escolas públicas de Petrolina que eram parte da programação do Clisertão.
Cheguei de madrugada, e no dia seguinte me encontro com Eric Nepumoceno! Vinha falar sobre “Escrever na América Latina, escrever a América Latina”, uma fantástica conferência proferida na tarde de quarta-feira (9.5.18). Falar da América Latina é impossível sem tocar também em sua realidade política. Como o Memória de Todos Nós (Record, 2015) narra várias episódios de torturas, houve uma pergunta do coordenador da mesa: por que não relatos de torturas no Brasil, e a resposta foi espantosa: porque Eric Nepumoceno diz que os torturados do Brasil não foram respeitados, com a anistia aos torturadores… e que enquanto não se fizer justiça aos torturados, não incluiria estes relatos embora conhecesse muitas destas histórias e era amigo de muitos dos torturados.
E já que falo de torturas, tive longa conversa com o escritor e poeta paraibano, Políbio Alves. E me emocionei muito. Políbio veio para o Rio em busca de emprego. Tornou-se professor no Calabouço… e estava lá quando assassinaram Edson Luís em 1968. Lutou para ficarem com o corpo de Edson Luís que queriam ocultar. Participou da passeata. E obviamente foi preso… e torturado com consequências físicas que carrega até hoje!!!
Depois tive o prazer de conhecer a escritora Maria Valéria Rezende, uma freira da Teologia da Libertação, com experiência de trabalho social pelo país inteiro. Hoje autora de livros de contos, de literatura infantil. E sempre engajada e lutadora.
Com Carlos Barros conheci seu “Buffet de Poesias”: uma exposição de poemas impressos em folhas soltas, de vários poetas populares, que você lê e escolhe aqueles que desejar ter, organizando uma antologia própria, cuja capa também é fornecida na hora: você sai do encontro com um livro que compôs junto com o poeta. Uma ideia brilhante.
Conheci também a escritora e poeta Zita Alves da Silva. Sua história de vida é exemplo de luta. Moradora da “vila de papelão”, espaço em que flagelados da seca se estabeleceram, depois tornada o bairro José e Maria de Petrolina, escrevia muito. Um agente social alemão a conheceu na Vila de Papelão e lhe deu uma máquina de escrever. Aprendeu datilografia, e tudo o que escreveu foi datilografado e tornado “livro” manuscrito, encadernado com capa dura, com recursos que conseguia indo a programas de rádio pedindo ajuda… Foram expostos vários destes livros no encontro, trazidos por seu filho. Hoje Zita Alves mora no assentamento Ouro Verde, do MST pernambucano. Embora em cadeiras de rodas, venho ao encontro para ler alguns de seus poemas…
Manuseando seu “As Vizinhas”, datilografado e encadernado, copiei a poesia que aqui transcrevo:
A Matemática
O vaqueiro inventou a chibata
O mecânico inventou o trator
mas o cão da matemática
não sei quem inventou.
Contar eu não sei nada
pois nunca fui contador
não conto nem as passadas
que na cozinha eu dou.
Somar e Multiplicar
Só entendo em português,
mas é ruim p’ra eu decifrar
a tabuada de vocês.
Somar é imaginar
Multiplicar é crescer,
Dividir é separar
Diminuir é emagrecer.
Aqui está a minha conta
– Seu moço, que eu sei fazer,
essas outras me desaponta
tento e não posso entender.
Seu Professor me perdoe
mas a sua Matemática
até parece que foi
tirada de uma matraca
(Zita Alves da Silva, As Vizinhas)
Um encontro universitário que dá voz à cultura popular e que faz o conhecimento científico da pesquisa universitária, o mundo da cultura, dialogar com o mundo da vida onde se produz e onde se gera a cultura que a universidade sistematiza, é um encontro memorável, não poderá deixar de existir. Que venha a 5ª. edição do Clisertão daqui a dois anos!!!
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Wanderley, acompanho sua trajetória desde os idos de 1986, quando estive na UNICAMP, para conversar com você, acompanhada de uma turma de professores que encheu uma Kombi (?). Adorei saber desse encontro da cultura universitária com a popular.
Você diz que tem evitado participar de eventos, mas gostaria de ouvi-lo, ainda, algumas vezes.
Abraços.
Que lindo, Geraldi, obrigada por compartilhar essa experiência!
beijos,
Anacris
É preciso urgentemente inventar essa universidade aberta à vida. É um alento conhecer essas histórias. Elas nos lembram que a história continua, sempre… apesar dos Temeres…