Em tempos amenos, amemos um ao outro

Naquele tempo foi dito:

Vós dois, que sois descendentes da Caim, que rezam juntos o mesmo Credo professando a mesma fé na minha Autoridade de que sois espelho onde vos estabeleci, hão de ser como irmãos siameses, mas terão os dois um cuidado para que o veneno que lhes doei  não prejudique um ao outro. Cada qual há de ocupar um dos espaços que minha alta Sapiência no mundo dispôs. 

– Quais espaços, Senhor? – perguntam juntos os filhos de Caim.

– Para um destinei os holofotes e os brilhos próprios das grandes telas e grandes écrans; para outro, uma rede infinita de pequenos écrans por onde fará circular o que não pensa, em doses homeopáticas, mas incluindo também imagens surreais com discursos exaltados. Que nenhum ocupe o espaço do outro.

– Como saberemos, Senhor, qual espaço cada um deve ocupar?

– Vós sabereis, porque a cada um dei uma linguagem distinta. Um somente saberá falar grosso e em curtas palavras porque não lhe foram dadas as oportunidades de grande formação que ao outro foram dadas; este somente saberá falar destilando parágrafos e parágrafos, em qualquer modalidade, falando ou escrevendo.

– Então, Senhor, sabemos já nossos lugares!

– Assim ungidos, filhos diletos, ide pelo mundo esparramar suas vontades e autoridades, um invocando meu nome; o outro, sábio e sabido, invocará suas próprias convicções e verdades que lhe foram reveladas e continuarão a ser por inquirições delativas.

– Oh! Senhor, nós Vos agradecemos pelos caminhos que nos dais!

– Tudo lhes será dado, como lhes mostrei do alto desta montanha, se permanecerdes fiéis ao credo que preguei nos tempos em que pela terra andei, matando judeus; encerrando deficientes e mentecaptos em hospitais que não curavam, mas eliminavam o desperdício e erro da santa natureza; metralhando sem qualquer comiseração estes que repetiam Sodoma e Gomorra num sexo desviado de seus caminhos; impondo lágrimas de sangue e morte aqueles que professavam projetos mirabolantes e antinaturais à soberba e egoísmo com que dotei os maus homens do meu Reino.

– Nós o compreendemos perfeitamente! Seremos fiéis ao Credo que nos deixaste como herança, querido Führer! Deixai conosco. Completaremos juntos a sua obra.    

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.