Têm dias tristes, outros ainda mais.
Ver crianças sendo tratadas como coisas, descartáveis, na mira das balas certeiras que caem dos helicópteros surpreendendo-as nas saídas das escolas é algo muito duro. É um recado dado e confirmado com os cortes na educação: Não frequentem as escolas.
As escolas não são espaços mágicos, não poderiam ser. E são. Ainda que existam instituições muito mais poderosas dizendo e vendendo o contrário disso. As escolas enfrentam uma luta diária, professores são convencidos e vencidos pela desvalorização social, e financeira de que não podem e não devem se envolver com alunos – casos perdidos, ou de saúde ou de segurança. A mídia, a polícia, a sociedade diz isso, a justiça, o governo, as universidades, as famílias, as igrejas e religiões produzem números, cenas, estatísticas, fracassos, narrativas, teorias.
E as crianças, jovens e adolescentes vão perdendo as feições de gente. Tornam-se números, coisas sem importância, objetos que podem ser substituídos, e a intenção é a pior de todas. Apagar a possibilidade de transformação. De repente os colegas professores vão se perdendo nos detalhes, e deixando alunos e alunas não apenas para trás, mas de importar, de existir. Educação meritocrática e falaciosa.
Acostumamo-nos a violência como algo natural, como próprio de um tempo, e esquecemo-nos de oferecer outras possibilidades: literatura, arte, música, dança, felicidade, cultura e história, censuradas, no lugar delas a oferta de um atalho para a mediocridade. Títulos e bens valem mais do que o humano, é a síntese.
Deixamos de nos esforçar com aquele menino que não sabe ler, tentar outra possibilidade, ainda uma vez. De repente, a gente finge que não vê o menino que vítima de racismo deixa de ir para a escola, aquela menina insegura e tímida que sofre abusos, aquele outro que não leva sequer o que comer, o que os pais nunca vão à reunião porque trabalham mais do que deveriam, aquele outro que aos 10 anos já tem histórico de depressão, os que apresentam ansiedade com distúrbio alimentar e crises de choro, ou o outro que é negligenciado em casa mesmo tendo tudo, os projetos de ditadorezinhos, a criança agressiva com seus colegas. Tem para todo gosto e freguesia, redes públicas e privadas. Um universo brasileiro todo ali, já apontava Raul Pompeia, em seu Ateneu.
Não é sua culpa, professor. Nisto temos acordo, mas daí vem o Paulo Freire com a coisa da transformação do sujeito, a pedagogia da esperança: – É humanização demais, assim os professores vão enlouquecer!
É preciso dizer o contrário sem dizer, realçar o fracasso da escola, os casos de violência, o adoecimento dos professores. Ainda assim, é insuficiente. Então que se calem os professores, que os seus discursos sejam invalidados, contestados, desvalorizados. Tirem sua capacidade de reflexão, de acreditar na transformação que experimentam cotidianamente. É preciso que não se acredite na humanização das pessoas. Então, aqueles que estão nas salas de aula não teriam um futuro pela frente, não são pessoas, não são gente?
Usamos humanização para dizer o que ?
Todas as vezes que me proponho escrever sobre educação visito meus fantasmas. Muito embora nesse texto específico, a ordem dos fatores não seja a usual, pois são os fantasmas que têm me visitado com frequência.
No texto da semana passada, já esboçava um pouco do que queria dizer e direi no de hoje. Brinquei com coisa séria, e a conjuntura não está para brincadeiras. Então não venham procurar Cury quando sobra Paulo Freire. É como propor humanizar as escolas. Entende?
Há algum tempo as escolas, todas elas: confessionais, laicas, públicas, privadas, militares e técnicas, promovem uma educação em que esses sujeitos educandos, sejam cada vez menos sujeitos. Ainda pior se pobres e negros, mas dado a crescente do processo, ele já atinge outros grupos. Desumanizam as escolas e seus profissionais e demonizam as crianças e jovens que se tornam assim aptas a morrer, sem manifestação ou contestação as práticas genocidas, no bom e popular português: defuntos sem choro.
Não têm pais? Não têm famílias?
É uma política, dada em pequenas doses, continuamente, de forma que as pessoas não percebam. Um exemplo bem atual é a negativa de festas de datas como dia das mães, dia dos pais, enfim, em datas em que se poderia ter acesso as famílias em suas mais diversas configurações, a negação dessas datas, assim como o dia da consciência negra, ou dia da mulher. Surge o não diálogo, o não dia disfarçado de inclusão ou respeito aos que não têm um ou outro membro da família. Parece bom, parece legal. Exatamente assim.
Até que se saia do conforto habitual, e se perceba que tem muito mais de onde sai essas coisas, não há espaço na escola para contemplar a diferença, mas para escondê-la dos olhos intolerantes, ao tempo em que apaga a fraternidade e o sentimento de pertencimento aquele grupo. Afinal, diante da sociedade de consumo como não sentir a ausência ou mesmo o luto nas propagandas, no comércio, e em todos os dias? Como não dizer da falta que o afeto faz?
Afastam-se as comemorações da escola porque é preciso dizer da escola sem frequentá-la, sem ver que as diferenças podem conviver harmoniosamente, sem ver nos demais integrantes da comunidade escolar um rosto amigo, parceiro. Humano.
Ir nas festinhas da escola, comemorar e aprender é ver que diferentes famílias se abraçam, amam, exatamente como as nossas. Ver que quando um professor é agredido ou mesmo ofendido toda uma sociedade é. É imaginar em cada criança morta um pouco dos nossos filhos. Como e quando deixamos de ver que a humanidade morre em cada negação de afeto, sonho e futuro.
– Nossos filhos não são aqueles. Os que morrem não teriam chance mesmo.
Sem perceber nos tornamos cúmplices das mãos que atiram em crianças e jovens, e do silêncio que deixamos na sociedade quando cada um morre. É perceber que quando não se investe em educação, ou quando se cortam “gastos” na educação básica ou superior, deixa-se de investir na inteligência, na humanidade. Deixa-se de acreditar no futuro, na paz, na vida.
Não há atalhos, não há culpa, isso seria simples demais. A verdade é que tal qual o dilema no surgimento do ovo e da galinha, a desumanização da educação está colocada, se seria causa ou efeito, pouco ou nada importa, o que vivemos hoje é um processo que não se sabe o começo, mas a violência parece ser o fim.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
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