E VIVA O REINADO DO PRÍNCIPE ELETRÔNICO, por José Kuiava

  Como podemos olhar o mundo em que vivemos – o mundo do qual fazemos parte? Como podemos compartilhar o ângulo de visão com os outros? Começamos pelo ponto de vista local – o posto, a torre de observação é o horizonte da planície extensa ou o pico da montanha mais alta do nosso horizonte – e projetamos o olhar para além do nosso horizonte? E que imagens do mundo vemos em nossas mentes? Imagens de nós mesmos quando nos vemos refletidos no espelho? Imagens quebradas? Imagens líquidas?  Ou imagens de outros? E o mundo que vemos é real, ou mitológico, ou utópico ou ficcional? Somos indivíduos monológicos ou sujeitos dialógicos? E quando olhamos o futuro, é o futuro “desejado” ou o “assustador”?

Certo dia, ao visitar uma exposição de arte na cidade de Pato Branco, estado do Paraná, me deparei diante de três obras do mesmo artista. As obras não chamavam atenção pela plasticidade artística. Porém, me excitaram a curiosidade e logo me intrigaram profundamente pelo seu significado. Iniciei a observá-las aleatoriamente de traz para frente. No último quadro havia a inscrição como título: “Como eu me vejo”. O quadro era uma superfície branca e quase vazia, apenas no centro encontrava-se uma composição quadrada de cacos de espelho de vários tamanhos e formas, colados assimetricamente. O espectador via na composição o seu rosto fraturado. Uma imagem quebrada, deformada, descontínua, refletida nos fragmentos de espelho. No segundo quadro, nos mesmos moldes do anterior, estava escrito: “Como você me vê”. No centro do quadro, a composição era em formato de uma câmera de filmagem/fotografia, de tamanho igual à composição do quadro anterior. Dentro da   câmera – como se fosse a lente – uma colagem de cacos de espelho, bem minúsculos, refletindo a imagem do rosto do espectador totalmente ofuscada, suja. A diferença estava no formato da câmera e no tamanho dos cacos de espelho, que refletia uma imagem irreconhecível. Monstruosa. O último quadro, na ordem do artista o primeiro, trazia a seguinte inscrição: “Como o mundo TV”. Na tela, uma composição bem maior do que as anteriores, várias colunas de espelhos, empilhados com extrema regularidade simétrica, pois todos de um único tamanho e padrão. Desta maneira, a imagem do espectador era rigorosamente a mesma em cada espelho e em cada pilha de espelhos. Embora, pelo tamanho do espelho, não era possível ver o rosto refletido por inteiro no mesmo espelho.

Das três obras de arte, a que mais me intrigou e perturba até hoje é a composição do “mundo TV”. E aqui me vem à memória uma outra imagem, a do “Príncipe Eletrônico”, na acepção de Octavio Ianni, que simultaneamente subordina, recria e absorve ou simplesmente ultrapassa o Príncipe de Maquiavel – o líder político, o condottiero – e o Moderno Príncipe de Gramsci – um organismo de vontade coletiva, o partido político – o Moderno Príncipe. No palco da história dos nossos dias quem monta os cenários, escreve os roteiros, as cenas e os enredos, projeta os protagonistas, atores e personagens, compõe os bastidores e idealiza o comportamento das massas de telespectadores dos espetáculos é o “mundo TV”. Assim, lemos e vemos o mundo sob a luz dos holofotes, um mundo produzido pelas câmeras e revelado e montado em laboratórios sofisticados de imagens e sons. É o nosso mundo real encenado nas telas do “mundo TV”. O Príncipe Eletrônico não é nem condottiero nem partido político. “É entidade nebulosa e ativa, presente e invisível, predominante e ubíqua…” O príncipe eletrônico é a nova versão da ideologia dominante exercer seu poder mágico – a virtù fetichizando e fantasmagorizando a fortuna – feito o “intelectual coletivo e orgânico das estruturas e blocos de poder presentes, predominantes e atuantes em escala nacional, regional e mundial, sempre em conformidade com os diferentes contextos sócio-culturais e político-econômicos desenhados no novo mapa do mundo” (Octávio Ianni, O Príncipe Eletrônico). É a civilização das tecnologias eletrônicas, informáticas e cibernéticas a exercerem o fascínio, o encanto sedutor, o assédio irresistível, com imagens, sons, movimentos e uma “estranha novilíngua” – “ nova vulgata planetária” – nominada por Pierre Bourdieu e Loïc Wasquant, em nova bíblia do Tio Sam. 

Realmente, a novissimalíngua do WatsApp – é kkkkkkk, eeeeeebaaaa, xxiii, vixi, e outras sonoridades. Ler mensagens mais longas e bem estruturadas em E-mail, já era. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.