Domingo: um poema de Jacques Prévert

Café Pingado

É terrível 

o barulhinho do ovo cozido quebrado contra o balcão de zinco

terrível esta barulho

quando ele se agita na memória do homem faminto

terrível também a cabeça do homem

quando se vê às seis da manhã

no espelho da grande loja

uma cabeça cor de poeira

mas não é a sua a cabeça que ele vê

na vitrine da casa Fauchon

pouco lhe importa essa sua cabeça de homem

não pensa nela

sonha

imagina uma outra cabeça

cabeça de vitela por exemplo

com molho de vinagre

ou cabeça de qualquer coisa que se come

e mexe lentamente o maxilar

lentamente

e trinca os dentes lentamente

pois o mundo se diverte à custa da sua cabeça

e ele nada pode contra o mundo

e conta com os dedos um dois três

um dois três

três dias que não come

e já está cansado de repetir por três dias

As coisas não podem continuar assim

mas continuam

três dias

três noites

sem comer

e por detrás do vidro

patês garrafas conservas

peixes mortos protegidos pelas latas

latas protegidas pelo vidro

vidro protegido pelos tiras

tiras protegidos pelo medo

quantas barricadas por seis sardinhas infelizes…

Mais adiante o bar e restaurante

café com leite e pãezinhos quentes

o homem titubeia

e lá dentro da sua cabeça

um nevoeiro de palavras

um nevoeiro de palavras

sardinhas para comer

ovo cozido café com leite

café pingado rum

café com leite

café com leite

café com crime npingado de sangue”…

Um homem muito estimado no bairro

cortaram a gargante dele em pleno dia

o assassino o vagabundo lhe roubou

dois francos

ou seja um café pingado

zero franco setenta centavos

dois pãezinhos com manteiga

e vinte e cinco centavos de troco a gorjeto do garçom

É terrível

o barulhinho do ovo cozido quabrado contra o balcão de zinco

terrível este barulho

quando se agita na memória do homem faminto.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.