Domingo com Pablo Neruda

De uma viagem

De uma viagem volto ao mesmo ponto

por quê? 

Por que não volto aonde antes vivi,

mas, países,continentes, ilhas,

onde tive e estive?

Por que será este lugar a fronteira

que me elegeu,que tem este recindo

senão um látego de ar vertical

sobre meu rosto, e umas flores negras

que o longo inverno morde e despedaça?

Ai, que me assinalam:

– este é o preguiçoso,

o senhor enferrujado,

daqui não se moveu,

deste duro recinto

foi ficando imóvel

até que endureceram seus olhos

e cresceu-lhe uma hera no olhar.

 

 

Foi sangrenta

Foi sangrenta toda terra do homem.

TEmpo, edificações, rotas, chuva,

apagam as constelações do crime,

o certo é que um planeta tão pequeno

foi mil vezes coberto de sangue,

guerra ou vingança, armadilha ou batalha,

caíram homens, foram devorados,

depois o esquecimento foi limpando

cada metro quadrado alguma vez

um vago monumento mentiroso,

às vezes uma clásula de bronze,

depois conversações, nascimentos,

municipalidades, e o esquecimento.

Que artes temos para extermínio

e que ciência para extirpar lembranças!

Está florido o que foi sangrento.

Preparar-se, rapazes,

para outra vez matar, morrer de novo,

e cobrir com flores o sangue.

(Últimos poemas (O Mar e os Sinos). Porto Alegre : L&PM Pocket, 2002)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.