Do desejo, de Hilda Hist

Quem és? Perguntei ao desejo.

Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.

I

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.

Antes, o cotidiano era um pensar alturas

Buscando Aquele Outro decantado

Surdo à minha humana ladradora.

Visgo e suor, pois nunca se faziam.

Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo

Tomas-me o corpo. E que descanso me dás

Depois das lidas. Sonhei penhascos

Quando havia o jardim aqui ao lado.

Pensei subidas onde não havia rastros.

Extasiada, fodo contigo

Ao invés de ganir diante do Nada.

II

Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.

Que desenhos e rictus na tua cara

Como os frisos veementes dos tapetes antigos.

Que sombrio te tornas se repito

O sinuoso caminho que persigo: um desejo

Sem dono, um adorar-te vivido mas livre.

E que escura me faço se abocanhas de mim

Palavras e resíduos. Me vêm fomes

Agonias de grandes espessuras, embaçadas luas

Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.

Cordura.

Crueldade.

III

Colada à tua boca a minha desordem.

O meu vasto querer.

O incompossível se fazendo ordem

Colada à tua boca, mas descomedida

Árdua

Construtor de ilusões examino-te sôfrega

Como se fosses morrer colado à minha boca.

Como se fosse nascer

E tu fosses o dia magnânimo

Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

IV

Se eu disser que vi um pássaro

Sobre o teu sexo, deverias crer?

E se não for verdade, em nada mudará o Universo.

Se eu disser que o desejo é Eternidade

Porque o instante arde interminável

Deverias crer? E se não for verdade

Tantos o disseram que talvez possa ser.

No desejo nos vêm sofomanias, adornos

Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro

Voando sobre o Tejo. Por que não posso

Pontilhar de inocência e poesia

Ossos, sangue, carne, o agora

E tudo isso em nós que se fará disforme?

V

Existe a noite, e existe o breu.

Noite é o velado coração de Deus

Esse que por pudor não mais procuro.

Breu é quando tu te afastas ou dizes

Que viajas, e um sol de gelo

Petrifica-me a cara e desobrigam-me

De fidelidade e de conjura. O desejo

Este da carne, a mim não me faz medo.

Assim como não veio, também não me avassala.

Saber por quê? Lutei com Aquele

E dele também não fui lacaia.

VI

Aquele Outro não via minha muita amplidão.

Nada LHE bastava. Nem ígneas cantigas.

E agora vá, te pareço soberba, magnífica

E fodes como quem morre a última conquista

E ardes como desejei arder de santidade.

(E há luz na tua carne e tu palpitas.)

Ah, por que me vejo vasta e inflexível

Desejando um desejo vizinhante

De uma Fome irada e obsessiva?

VII

Lembra-te que há um querer doloroso

E de fastio a que chama de amor.

E outro de tulipas e de espelhos

Licencioso, indigno, a que chamam desejo.

Há o caminhar um descaminho, um arrastar-se

Em direção aos ventos, aos açoites

E um único extraordinário turbilhão.

Por que me queres sempre nos espelhos

Naquele descaminhar, no pó dos impossíveis

Se só me quero viva nas tuas veias?

VIII

Se te ausentas há paredes em mim.

Friez de ruas duras

E um desvanecimento trêmulo de avencas.

Então me amas? te pões a perguntar.

E eu repito que há paredes, friez

Há molimentos, e nem por isso há chama

DESEJO é um Todo lustroso de carícias

Uma boca sem forma, um Caracol de Fogo.

DESEJO é uma palavra com a vivez do sangue

E outra com a ferocidade de Um só Amante.

DESEJO é Outro. Voragem que me habita.

IX

E por que haverias de querer minha alma

Na tua cama?

Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas

Obscenas, porque era assim que gostávamos.

Mas não menti gozo prazer lascívia

Nem omiti que a alma está além, buscando

Aquele Outro. E te repito: por que haverias

De querer minha alma na tua cama?

Jubila-te da memória de coitos e de acertos.

Ou tenta-me de novo. Obriga-me.

X

Pulsas como se fossem de carne as borboletas.

E o que vem a ser isso? perguntas.

Digo que assim há de começar o meu poema.

Então te queixas que nunca estou contigo

Que de improviso lanço versos ao ar

Ou falo de pinheiros escoceses, aqueles

Que apetecia a Talleyrand cuidar.

Ou ainda quando grito ou desfaleço

Adivinhas sorrisos, códigos, conluios

Dizes que os devo ter nos meus avessos.

Pois pode ser.

Para pensar o Outro, eu deliro ou versejo.

Pensá-LO é gozo. Então não sabes? INCORPÓREO É O

DESEJO.

(Hilda Hist. Do desejo. Campinas : Pontes, 1992)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.