Do auto de Natal de João Cabral de Melo Neto

Compadre José, compadre,

que na relva estais deitado:

conversais e não sabeis

que vosso filho é chegado?

Estais aí conversando

em vossa prosa entredita:

não sabeis que vosso filho

saltou para dentro da vida?

Salto para dentro da vida

no dar seu primeiro grito;

e estais aí conversando;

pois sabei que ele é nascido.

[…]

– Todo o céu e a terra

lhe cantam louvor.

Foi por ele que a maré

esta noite não baixou.

– Foi por ele que a maré

fez parar o seu motor:

a lama ficou coberta

e o mau-cheiro não voou.

– E a alfazema do sargaço,

Ácida, desinfetante,

veio varrer nossas ruas

enviada do mar distante.

– E a língua seca de esponja

que tem o vento terral

veio enxugar a umidade

do encharcado lamaçal.

 

– Todo céu e a terra

lhe cantam louvor

e cada casa se torna

num mocambo sedutor.

– Cada casebre se torna

um mocambo modelar

que tanto celebram os

sociólogos do lugar.

– E a banda de maruins

que toda noite se ouvia

por causa dele, esta noite,

creio que não irradia.

– E este rio de água cega,

ou baça, de comer terra,

que jamais espelha o céu,

hoje enfeitou-se de estrelas.

(João Cabral de Melo Neto. Morte e Vida Severina e outros poemas em voz alta-extrato)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.