Dispensem-se provas técnicas. A fé na culpa basta.

Desde a retórica clássica se faz a distinção que a moderna retórica de Perelman retomou e conceituou de forma esclarecedora: toda argumentação busca a adesão de seus ouvintes às teses que defende. Esta adesão pode resultar da convicção ou da persuasão. A retórica trabalha, essencialmente, com a persuasão, mas inclui e vai além, sempre que possível, obtendo o convencimento de seu auditório (que pode ser apenas uma pessoa, como no caso de um juiz singular) através do que se chamam provas técnicas.

Como se sabe, diante de fatos, não há argumentos. A argumentação só aparece quando duas ou mais teses podem ser adequadas. Mas o sonho do bom argumentador é dispor de provas técnicas capazes de derrubar as teses contrárias, porque diante de provas técnicas, narrativas dos fatos por testemunhas perdem seu valor de prova!

Obviamente uma “prova técnica” pode ser posta sob suspeição, em geral apelando-se para outras análises técnicas. Tomemos um exemplo (a exemplificação é sempre argumentação, já o sabia claramente o Pe. Jacobo Verese, que escreveu a Legenda Áurea, com vidas de santos para serem usadas como exemplos nos sermões dos curas em suas capelas e paróquias): uma assinatura sob suspeição pode merecer análises técnicas e dois técnicos concluírem de forma distinta, o que demandaria buscar um terceiro técnico para desempatar… quando se quer chegar a alguma verdade, obviamente.

No judiciário, as provas técnicas têm livre curso. E sempre que possíveis, são utilizadas, quando se quer um julgamento imparcial. Por exemplo, nosso atual diretor geral da Polícia Federal informou a todos: uma mala de dinheiro não é prova de nada. Em si não é mesmo. Mas uma mala de dinheiro sendo passada de uma mão conhecida para outra mão indicada numa gravação também conhecida em que a entrega foi combinada, uma mala e o filme de sua entrega é uma prova, e uma prova de fato, técnica, difícil de descartar. Exceto quando não se quer julgamento e investigação séria, nem se quer imparcialidade.

Pois estamos começando a nos habituar com a parcialidade no Judiciário, o que leva ao Estado de Exceção. E quando a parcialidade se impõe, as provas técnicas são descartadas porque são fortes em exagero para o exercício da parcialidade.

Assim, a mala será descartada, junto com a combinação gravada de sua entrega… Também já foi descartada uma escritura pública, registrada em Cartório – antigamente os cartórios e os tabeliões tinham fé pública, agora a perderam por decisão local de um juiz parcial. E ao documento técnico de propriedade – escritura e registro em cartório – se sobrepôs uma narrativa em que a testemunha diz “disseram que era do Lula”. Este “me disseram” virou prova de uma “propriedade de fato”, descartada a prova técnica.

Mas para criar um imbróglio jurídico, a juíza Luciana Correa Torres de Oliveira aceitou a prova técnica, e penhorou o mesmo apartamento cuja propriedade foi atribuída a Lula pelo juiz angélico Dr. Moro, com base no “me disseram que era do Lula” de uma testemunha e com base na “prova”: uma reportagem de um jornal!!!

Temos duas decisões, uma com base na “prova técnica”, outra com base nas narrativas “testemunhais”. Uma convence, a outra persuade. Quando um juiz prefere a persuasão porque ele próprio convencido do que quer que o fato seja, ignorando provas técnicas, já não temos julgamento, mas perseguição.

Agora, em novo processo, em que aparecem recibos de aluguel assinados por um delator que varia sua narrativa segundo os ventos e os recados que recebe de delegados e procuradores, houve uma perícia técnica apresentada por uma das partes. A outra parte, representada por procuradores-acusadores, todos chefiados por Dallagnol, escreve descaradamente que nem precisa “prova técnica” que se contraponha a existente na investigação, porque o juiz angélico pode formar sua convicção com base nas provas testemunhais eternamente modificadas segundo as necessidades da acusação! O delator não se desmoraliza porque muda a narrativa: sua narrativa é tomada como “fato” e diante do fato não precisa de argumentos nem de provas técnicas: o apartamento usado pela família de Lula em São Bernardo é de propriedade de Lula. Ponto. E foi adquirido com dinheiro de propina obtida em “tempos inespecíficos” por “ações indeterminadas” como gosta de sentenciar o juiz angélico.

Infelizmente, o grande trabalho de Perelman já não faz mais sentido nas Varas brasileiras. E certamente seria muito bom que o pregador Danton Dallagnol lesse a Legenda Áurea para retirar de lá exemplos a usar em suas argumentações para “salvar a pátria” e impor seu credo a todos e a todas.

Diremos amém?

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.