ROMBO NO NACIONAL CHEGA A R$ 7,5 BI
(Manchete da FSP de 06.07.96)
PC ESCONDEU US$ 400 MI PELO MUNDO
(Manchete do ESP de 07.07.96)
Para uma sociedade escandalizada com o esquema PC, que movimento US$ 1,2 bilhão, cuja elite, no entanto, justifica R$ 7,5 bilhões para apenas um dos grupos de banqueiros, não há ciência e reflexão capazes de apontar caminhos, se a indignação ética contra as elites dominantes não ocupar grande espaço de nossas paixões.
O título desta exposição, ao apontar para duas das principais tarefas que a Linguística se propõe, é suficientemente amplo para a defesa do ponto de vista que pretendo discutir e que pode ser resumido no seguinte enunciado: “no mundo letrado brasileiro, a linguística foi chamada a justificar-se para ter direito à existência”. Duas podem ser as perguntas a conduzirem a reflexão: Que práticas sociais de reflexão sobre a linguagem eram predominantes para poderem impor que uma ciência se justificasse (e se justifique) para existir? Que respostas aqueles que praticaram a praticam a pesquisa linguística têm dado a esta exigência externa que lhes impuseram as práticas letradas brasileiras?
Obviamente, meu objetivo não é responder a estas duas questões, já que elas demandariam um estudo de sociologia da cultura brasileira e, ao mesmo tempo, um verdadeiro balanço da pesquisa e reflexão dos últimos trinta anos. Como se sabe, embora recente em termos históricos, a inclusão dos estudos linguísticos nos cursos de Letras do Brasil, tal como os entendemos, ocorre na década de 60, e desde então os linguistas não só sustentaram polêmicas internas (no embate entre diferentes teorias e correntes) e externas (com o “mundo das letras” e com o espírito normativo do ensino da língua), mas também produziram um considerável conjunto de informações, descrições e explicações a propósito da língua portuguesa falada e escrita no Brasil. Bem mais restrito é o objetivo: tentar trazer alguns elementos de reflexão para possíveis respostas à primeira pergunta e apresentar alguns dados a propósito da segunda.
- Admitindo com Foucault (1970) que “a disciplina é um princípio de controle da produção de discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”, “aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados”, impossível não recuperar polêmicas do final do século passado e início deste para traçar os laços que sustentaram (e ainda sustentam) a produção de enunciados a propósito da língua no mundo letrado brasileiro. Inúmeros intelectuais brasileiros envolveram-se na discussão a respeito da colocação correta do pronome oblíquo deste enunciado – afinal, “envolveram-se” ou “se envolveram” parecia ser uma questão crucial. São conhecidas as polêmicas a respeito do dialeto brasileiro ou brasilianismos (Macedo Soares, João Ribeiro) ou da redação do Código Civil (João Ribeiro, Rui Barbosa, Ernesto Carneiro, Clóvis Bevilácqua), ou ainda a polêmica sobre a questão da colocação de pronomes entre Paulino de Brito (gramático paraense) e Cândido de Figueiredo (gramático português). Mas não esqueçamos que a Constituição de 1988 foi revisada por gramáticos contemporâneos e que a imprensa continua a espinafrar estudantes e vestibulandos sempre que a ocasião se oferecer. Parece existir em nossa cultura uma regra fundante daquilo “que é requerido para a construção de novos enunciados” sobre a língua: qualquer enunciado deve proferir um juízo de valor (certo/errado) segundo uma regra gramatical específica.
A conquista humana do domínio da técnica da escrita, alargando incomensuravelmente, no tempo e no espaço, os horizontes de nossas possibilidades interativas, e por isso mesmo da constituição de nossas consciências, deflagrou também todo um projeto de gramatização (Auroux, 1991). Foi necessário fixar uma ordem à desordem resultante do alargamento possível. E a escritura erigiu-se historicamente como o espaço da ordem e do limite dos sentidos.
Ao labirinto das produções fluidas da oralidade sobrepõe-se com a escrita o esforço de decifração da ordem, da construção do imutável. E antes mesmo que a escrita se torne tecnicamente acessível àqueles que habitam as periferias das cidades e do poder, a escritura construiria uma cidade letrada, o “anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais” (Rama, 1984:43).
Como realizar semelhante proeza, se a escrita trabalha com a linguagem, objeto essencialmente mutável, sujeito às precariedades singulares dos acontecimentos interativos? Somente o exercício do poder, reservando a uma minoria estrita o acesso ao mundo da escrita, permitiu a façanha da seleção, da distribuição e do controle do discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado, impenetrável pra o não convidado. E de dentro destes muros, uma função outra agrega-se à escrita, como se lhe fosse própria e não atribuída pelo poder que emana de seus privilegiados construtores e constritores: submeter a oralidade à sua ordem, função jurídica por excelência, capaz de dizer o certo e o errado, ditar a gramática da expressão, regrar os processos de negociação de sentidos e orientar, através de suas mensagens uníssonas e uniformes, os bons caminhos a serem trilhados.
A sociedade só pôde ser assim construída, sob o império de uma separação radical, a partir de uma estrutura de exclusão. Sob qualquer das formas com que se organizaram politicamente o Estado e o Poder, soube a cidade letrada estar próxima, adequar-se às circunstâncias (Rama, 1984). Observando sempre sob o ângulo da produção da escritura, Rama aponta, ao longo desta história de convício com o poder, uma cidade que foi ordenada, foi escriturária, foi modernizada. Politizou-se e pode ser revolucionária. A cada momento, diferentes feitos históricos, mas sempre uma constante: a capacidade paradoxal de, ao mesmo tempo, expandir-se para as periferias supostamente acolhendo novos convivas e manter a distância das distinções: erudito x popular; culto x não culto; alfabetizado x analfabeto. Pelo prisma letrado, ao outro sempre se atribui uma falta.
Mas a escrita populariza-se e em se popularizando, torna-se heterogênea e outros artefatos verbais somam-se às clássicas bibliotecas. Manifestos, panfletos, poemas, páginas soltas, graffitis, orações, agendas, almanaques, cópias, paródias, paráfrases: o universo de discursos escritos expande-se, vulgariza-se, circula e faz circular sentidos.
Imagine-se, portanto, o escândalo para o mundo letrado quando a Linguística inicia seus discursos sobre as variedades linguísticas, inclui entre as manifestações linguísticas dignas de estudo a oralidade, eleva panfletos e textos de somenos importância a categoria de “gêneros” e, sobretudo, quando define que “aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados” exclui qualquer julgamento entre o certo e o errado.
- No que concerne à segunda questão, relativamente às respostas que vem oferecendo a Linguística àqueles que lhe impõem justificar-se para existir, é na área do ensino de língua materna que vamos encontrar a maior contribuição dos linguistas. Em estudo anterior manuseando um conjunto de 52 teses e dissertações, do período de 1980 a 1996, a propósito do ensino/aprendizagem de língua materna (Geraldi, 1996), constatei três grandes tendências da pesquisa: (1) uma tendência migratória do tema para a área de Letras, especialmente para a Linguística e a Linguística Aplicada; (2) há sensível redução dos trabalhos que, inspirando-se em teorias linguísticas e/ou educacionais, apresentam propostas definindo como o ensino deve ser ou que se dedicam ao estudo de produtos para a escola e da escola (livros didáticos, redações, livros paradidáticos, programas de ensino); (3) há uma predominância de trabalhos que analisam experiências de modo que hoje o que se encontra sob escrutínio é a prática escolar de ensino da língua.
Referências bibliográficas
Auroux, Sylvain (1992). A revolução tecnológica da gramatização. Campinas : Ed. da Unicamp.
Figueiredo, Cândido (1928). O problema da colocação de pronomes. Lisboa : Livraria Clássica Editora, 5ª. edição.
Foucault, Michel (1970). A ordem do discurso. São Paulo : Edições Loyola, 1996.
Geraldi, João W. (1994) “Políticas de inclusão em estruturas de exclusão. In. Simpósio Internacional sobre a Leitura e a Escrita na sociedade e na escola. Brasília, Anais, Belo Horizonte, Fundação AMAE, P. 65-78.
_______________ (1996) “A prática escolar sob escrutínio”. Texto apresentado em mesa-redonda do VIII ENDIPE, Florianópolis, maio de 1996.
Rama, Angel. (1984) A cidade das letras. São Paulo : Brasiliense.
Nota
- Estando na presidência da ABRALIN a colega Maria Denilda Moura, da Universidade Federal de Alagoas, convidou-me para participar do encontro nacional da Associação, que ocorreu no contexto da 48ª. Reunião Anual da SBPC. Foi minha primeira e única participação em evento da ABRALIN. Tratava-se de fazer uma conferência, de curta duração. O texto dela foi publicado no Boletim da Associação, n. 19, dezembro de 1996.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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