Começarei pelo começo, os que ainda lembram de minhas escritas sabem que este não é meu feitio, aos desavisados pode parecer redundante. Não é, embora em geral meus textos sempre sejam circulares, vão e voltam numa cadência sem muitas explicações formais, avançamos.
Então vejam que me perco sempre tentando me fazer entender, como se compreender o tempo atual fosse questão de leituras, e explicações. Não é.
Fato é que começo desse jeito porque não é possível outro. O fim não está dado, mas pode vir a ser a qualquer momento: tal qual a esperança. Começo pela ausência e pela lembrança de um texto que desde que li pela primeira vez, marcou-me profundamente, danadamente.
Talvez já o tenha citado em outros textos que escrevo, e ainda o vá fazer sempre. Este é um dos truques do texto literário: provoca-nos até que façamos cada linha, cada espaço, cada palavra e significado, um experimento para momentos vários em que precisamos dele. O texto a que me refiro é de Clarice Lispector, Felicidade Clandestina.
Durante muito tempo eu não entendia como tal conto podia me tocar tão fundo.
Um enredo simples até. A história de uma menina apaixonada por livros e leituras que tem como oponente uma outra menina, que é filha de “dono de livraria”. A trama se dá no fato de que a menina possui um livro: As reinações de Narizinho de Monteiro Lobato e promete-o para a narradora. Essa pequena personagem, que é Clarice, adolescente, cabelos lisos, alta, magra, loirinha e sem posses em tudo se opõe a outra. O que me iguala a Clarice é a classe social e a sede de leitura e conhecimento. As questões étnicas e estéticas talvez me exigissem o contrário, mas deu que a classe que nos orienta fizesse o contrário possível.
A outra menina tem cabelos crespos e arruivados, bustos enormes, gorda e baixa… São descrições do conto que vão construindo as diferenças. Clarice é judia, nessa época morava no Recife e ela nos diz do que é ser uma menina excluída, e do outro lado a sua rival ganha contornos e características próprias de uma adolescente moura. Mas o cerne do conto nada tem de étnico. O cerne é o que sempre é. Como os pobres devem ser castigados e torturados por ousar querer acesso a pequenas coisas.
A menina sequer gostava de ler. Ainda assim usa de toda sua maldade para punir a narradora:
Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa.
Esse é o começo.
Não vou dizer sobre o que este texto nos fala. Não mesmo. Para mim este tempo passou. Agora é preciso que as pessoas sejam provocadas pela sua própria dor. Embora no fundo, no fundo, a gente saiba quando lê este conto que a maldade de uma classe social sobre os pobres não tem limites, e bom que se entenda.
Vejamos ainda esse trecho
O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
O texto é indicado para jovens leitores, é importante porque fala que mesmo diante da adversidade não podemos cair, e precisamos ter alegria em nosso caminhar. Os dias não tem sido fáceis: – Eles venceram e o sinal está fechado para nós.
Embora as pessoas que sempre estiveram às margens não saibam muito bem sobre os sinais fechados, pois sempre inventam novos caminhos. Também agora será preciso aprendizagem e amadurecimento, não será mais possível fingir que não vê, pois será cada um de nós em pé ao portão: mulheres, negros, LGBTI, estudantes, professores, alunos… sobretudo pobres.
Espero que cada um aproveite essa leitura, e finalizo deixando meus sentimentos de pesar a família do presidente Lula da Silva e a cada um dos brasileiros que perdeu um ente seu no crime de Brumadinho.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Gostei muito do texto. O sinal fechou para nós, mulheres negras, professoras, pobres. Não podemos “largar as mãos”.
Que texto cheio de sensibilidade!
Só posso dizer: é isso.
Nos basta sentir.
Valeu, Wanderley. Costumo ler esse conto da Clarice com meus alunos. Também ouço Belchior. Vou ler diferente a partit de agora. Também vou ouvir outros tons do Belchior. Forte abraço.