DE MALAS (Sem dinheiro e sem cuias)

Saí de casa para esconder malas cheias de dinheiro e acabei na cadeia. Assim deve ter pensado e sentido o ex-ministro Geddel ao ser preso. Aí eu, indignado e ingênuo, fico me perguntando: será que algum dia no Brasil todos os políticos e os brasileiros seremos integralmente leais, honestos, sinceros, fieis aos princípios éticos e morais, preparados e cumpridores das nossas obrigações e dos nossos compromissos sociais e políticos? Declaro que me sinto imbecil e incapaz de responder a pergunta que formulei, perplexo diante das coisas terríveis que estão acontecendo no Brasil nos últimos dias.

Aliás, nestes últimos dias, quando vejo e ouço a toda hora políticos, empresários, advogados e juízes falando na televisão ao vivo e quando leio nos jornais e nas revistas o que eles falaram e disseram nos acordos e acertos das delações premiadas da Lava Jato e em conversas sigilosas gravadas, me vem ao pensamento as conversas dialogadas dos mortos que Dostoiévski escutou no subsolo do cemitério. Uso aqui a forma analógica do “diálogo dos mortos” no subsolo do cemitério para entender melhor e desmascarar, talvez, as conversas e falas dos vivos do Planalto e da Lava Jato. A história contada – narrada em linguagem literária em Bobók – por Dostoiévski é fascinante e instigadora para os leitores. O narrador – “uma pessoa” – saiu para se divertir  e acabou num enterro. No cemitério, exausto, “…sentei-me numa sepultura e passei a meditar de verdade”,  de repente o narrador começa ouvir vozes do subsolo no fundo dos túmulos. A princípio fica assustado ao ouvir os mortos falando. Mas, logo acha a conversa muito interessante e dá ouvido aos mortos faladores. Passa a escutar atentamente. Percebe que as conversas constituíam um diálogo polemizador, onde havia o tempo e o lugar da fala e o tempo e o lugar da escuta de muitos mortos, há poucos dias enterrados. Assim, vislumbrei a imagem, os lugares e os tempos dos acusados, dos delatores, dos advogados de defesa, dos juízes daqui de cima – os vivos nos tribunais. No subsolo não há hierarquia social nem voz de autoridade, embora haja sepulturas de classes sociais. Há uma nova ordem no subsolo: todos os mortos são iguais, não há autoridade e não há superioridade da fala do general, da mulher grã-fina, do barão,  do conselheiro da corte, do engenheiro civil, do filósofo… A conversa deles é em tom igual à conversa do vendeiro, do jovem, da mocinha, do velho…

Nas conversas dos mortos há revelações muito idênticas às da Lava Jato. Vejamos o que diz o morto filósofo: “Faz três ou quatro dias que morreu, e podeis imaginar que deixou um desfalque de quatrocentos mil rubros em dinheiro público? A quantia estava em nome das viúvas e dos órfãos, mas não se sabe porque ele a administrava sozinho, de sorte que acabou ficando oito anos livre de fiscalização”. Até parece que não há nenhuma semelhança com os nossos vivos de hoje. E essa outra fala: “ Passa-me vinte e cinco mil, senão amanhã a fiscalização estará aqui”. Não foi assim – e é – que se falava e se fala no Congresso para comprar votos dos deputados e senadores, para comprar depoimentos dos delatores? Isso também não tem nada a ver com os corruptos e corruptores de hoje. E tem uma conversa de morto que é uma lição para os nossos delatores. “Aliás, o diabo os tenha, porque tão logo se reúna a nossa turma, tudo entre nós se organizará naturalmente. Mas por enquanto eu quero que não se minta. É só o que eu quero, porque isto é o essencial. Na terra é impossível viver e não mentir, pois vida e mentira são sinônimos; mas com o intuito de rir, aqui não vamos mentir…Todos nós vamos contar em voz alta as nossas histórias já sem nos envergonharmos de nada”. E aí? Acho que no nosso caso é: aqui não vamos dizer a verdade. E há lições até para quem julga, para quem absolve ou condena: “Circulo em outras classes, escuto em toda parte. O problema é que preciso escutar em toda parte e não só de um lado para fazer uma ideia”. E pode se escutar somente alguns para os acusados selecionados por forças ideológicas em vez de à luz de princípios jurisdicionais? E os mortos decidiram de comum acordo: “Abaixo as cordas, e vivamos estes dois meses na mais desavergonhada verdade! Tiremos a roupa, dispamo-nos!”. Dizer a verdade, sempre! Mas tirar a roupa…que atentado ao pudor! E Dostoiévski adverte: “…Ao trancar o outro numa casa de loucos você ainda não está provando sua própria inteligência”.

Quantas lições! Que lições da literatura de ontem para a vida real de hoje!

Dinheiro roubado em malas, guardado sigilosamente em apartamento, não traz benefícios materiais reais a ninguém, nem aos próprios ladrões.

José Kuiava Contributor

Professor, pesquisador, escritor
José Kuiava é Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2012). Atualmente é professor efetivo- professor sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: autobiografias.inventário da produção acadêmica., corporeidade. ética e estética, seriedade, linguagem, literatura e ciências e riso.