Com a importância política assumida pelo judiciário, vamos aprendendo muitas coisas úteis. Elas mudam um pouco o dicionário dos mortais comuns. Mas isso é bom: vamos ficando mais sabidos. Penso que a expressão “fato” seja uma das mais frequentes e das mais “eruditas” no mundo do judiciário quando os “fatos interessam” às convicções. Se não os há, cria-se o “de fato”.
Comecemos pelo “domínio do fato”, teoria utilizada pelo relator Joaquim Barbosa no famoso processo que a imprensa denominou de “mensalão do PT” (antes, o mensalão do PSDB não se chamava mensalão!). Trata-se de uma aplicação no direito brasileiro de um princípio elaborado no pós-guerra, nos processos em que eram julgados os feitos bárbaros dos nazistas. Aqueles da baixa hierarquia alegavam que estavam cumprindo ordens revestidas de legalidade no estado nazi. Aqueles da alta hierarquia alegavam que desconheciam os fatos… Como a ideologia do extermínio de judeus (apresentados como os inimigos do povo alemão e da humanidade toda), dos deficientes, dos homossexuais, dos ciganos, dos comunistas era uma política do Estado Nazista, e como os promotores encontraram documentos comprovando “ordens dadas”, a elaboração da teoria do “domínio do fato” permitiu a condenação de figurões do Partido Nazista e da hierarquia do Estado. O criador da teoria sempre defendeu que não bastava ser superior para automaticamente ter “domínio do fato”. Mas por aqui, a teoria foi aplicada sem que os liames entre os fatos e a autoridade fossem estabelecidos. Bastava ser superior: havia domínio do fato… Engraçado, naquela época Joaquim Barbosa não teve coragem de “enquadrar” no domínio do fato o então presidente da república… Mas ficou para sempre em nosso vocabulário o “domínio do fato”. Se fosse aplicada na forma em que a jurisprudência do STF criou, qualquer governador poderia ser condenado pelas chacinas praticadas por suas polícias estaduais.
Depois o fato voltou como conceito jurídico. Na famosa e mal falada – no mundo jurídico, obviamente, porque na imprensa é elogiada – sentença do juiz Sérgio Moro. É preciso fazer uma ressalva: o presidente do Tribunal de Recursos Federais de Porto Alegre saiu a público elogiando a sentença, numa forma nada sutil de pressionar os desembargadores de seu Tribunal a referendarem absurdos jurídicos.
Lula, segundo a sentença, é “proprietário de fato” do tríplex de Guarujá… Até mesmo a polícia federal de São Paulo havia encerrado a investigação afirmando o contrário: nenhuma prova foi encontrada de que Lula fosse o proprietário do imóvel. E foi mais longe o Altíssimo Juiz Ségio, aquele que no fim do mundo, já que se tem como deus, julgará a todos do alto de sua sabedoria: para mostrar que esta propriedade de fato resultava de propinas e que o “indiciado” – porque na lição de Dallagnol, resultado de má leitura de Charles Pierce, bastam indícios – teria beneficiado o “doador”, no caso a OAS, em diferentes momentos e em diferentes atos “não especificados”… E eis que junto ao fato, surgem atos não especificados suficientes para formar o juízo do ajuizado juiz: condene-se porque desde o “domínio do fato” ele já deveria ter sido condenado.
Pois agora surge para o público mais um fato. A se crer no Merval Pereira, aquele mesmo que incitou tanto ódio a Lula e à toda esquerda, agora cronista da justiça social, ficamos sabendo que o prodígio intelectual chamado Dallagnol, o procurador do power point, inscreveu-se no concurso para procurador do Ministério Público Federal sem cumprir uma das condições necessárias para se inscrever: o exercício da advocacia durante 3 antes do concurso. Mas como ele é filho de procurador, e como no país das capitanias hereditárias, os filhos tudo podem, a inscrição foi aceita. Mas houve recurso!!! E pasmem: o processo foi arquivado e o juiz o despachou para o arquivo alegando “fato consumado”. Este novo conceito jurídico, esqueceu o próprio juiz que o criou, dispensa todo o judiciário. Afinal, quando se julga um crime de morte, a morte já não está consumada??? Para que condenação de criminoso??? Quando alguém furta algo, torna-se “proprietário de fato” do que furtou e trata-se então de um “fato consumado” de modo que o prejudicado nada pode fazer, sobretudo não pode recorrer aos ajuizados juízes do proprietário de fato e do fato consumado!
É preciso avisar com urgência nosso presidente de fato, Henrique Meirelles, que no orçamento do próximo ano não precisa incluir qualquer verba para o poder judiciário. Basta fazer isso e terá um fato consumado e talvez, então, a justiça retorne às terras brasileiras na forma de julgamentos de fato.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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