Da produção do texto escolar (1)

A inclusão de um de um minicurso ou de um grupo de reflexão sobre a produção de textos escolares no contexto de uma Jornada Nacional de Literatura é, por si só, motivo para uma reflexão. Afinal, neste encontro, não são os escritores, iniciantes ou consagrados, aqueles que ouvimos e sobre cujo trabalho nos debruçamos? Literatura é coisa séria. O que tem a ver com literatura as mal enjambradas letras e textos produzidos por alunos de escolas? Seguramente, a resposta é tudo e nada ao mesmo tempo, porque escritores existem apesar de nossa atual escola. E neste sentido, nada a ver. Mas a escola que temos não é a escola que queremos, e aí há tudo a ver.

Retomando os passos de três encontros que tematizaram a produção de textos em ambiente escolar, tenta-se aqui responder quais os liames que podem ligar esta produção escolar à produção estudada e adulta do trabalho estético com a linguagem.

  1. Para muitos brasileiros, o tempo único de convívio com a literatura é o tempo da escola. Infelizmente, por maiores que possam ser os esforços de professores e alunos, temos trabalhado num contexto social mais amplo em que o acesso ao mundo literário (e mesmo ao mundo da escrita não literária: jornais, revistas, boletins) é proibido para aqueles que pertencem a classes sociais desprivilegiadas. Assim, o tempo de escola obrigatoriamente deveria ser o tempo de ler e escrever (e preferencialmente, ler e tentar escrever literatura).
  2. Em sociedades letradas como a nossa, nem todos exercerão ofícios que demandem escrever, mas de todos demanda-se a leitura porque através dela convivemos com diferentes formas de compreensão do mundo e das gentes e serão estas compreensões que motivarão as ações do cidadão e de suas lutas mais amplas do que aquela da mera sobrevivência. A formação de uma cidadania leitora é condição de desenvolvimento humano.
  3. Mas a leitura exige o objeto que se lê. E o objeto que se lê é produto de um trabalho árduo. Por trás dele, escondem-se sujeitos-autores que, debruçando-se sobre o vivido nele enxergam mais porque mais sobre ele refletem e, na sua reflexão, desenhando um mundo que não foi, oferecem a seus leitores um mundo que poderia ter sido. Aproximando-nos pela leitura deste mundo que não foi nem é nele encontramos outros modos de compreender o mundo em que vivemos e, por isso mesmo, podemos transformá-lo.
  4. Ora, se a escola é um lugar fundamental para a constituição de leitores, é também o espaço primeiro dos ensaios de escrever. Uma sociedade futura de leitores exigirá uma sociedade em que escritores possam transitar, possam escrever e exercer com liberdade o trabalho com a linguagem para oferecer aos leitores futuros nos objetos estéticos de seu trabalho. Sendo a escola o lugar da aprendizagem da escrita e sendo a escrita o modo de existência da literatura contemporânea, nada mais necessário do que inserir a produção de textos escolares no espaço do trabalho estético com a escrita.

Tomando estes quatro pontos como orientadores da reflexão sobre a produção de textos escolares e reconhecendo a distância que separa as primeiras letras e textos dos alunos das amadurecidas e doidas letras e textos de escritores, da experiência desses, buscou-se o princípio fundamental que deveria orientar o trabalho com produção de textos na escola: um texto é sempre uma versão, a ele devendo-se retornar continuamente até dá-lo por pronto, sabendo-se que sempre será possível uma nova versão. Trata-se de pensar a produção de textos não como tarefa, mas como trabalho.

Enquanto trabalho, a produção de textos implica:

  1. Sujeitos que trabalham. Aqui, encontram-se professores e alunos que, debruçando-se sobre suas experiências e a dos outros, retomam-nas como temas de seus textos para da experiência retirarem o seu próprio sumo, aquilo que nos serve de lição para experiências futuras. Trata-se de um trabalho com ideias para encontrar no muito que já foi dito o espaço do dizer único e pessoal;
  2. Ferramentas de produção. Aqui, encontram-se os recursos expressivos que, submetidos à ação dos sujeitos, tornem-se, de matérias primas possíveis, materiais em uso de modo que não apenas o que se diz seja o fio condutor do dizer, mas também o modo de dizer conduza os sentidos do dizer. As ações que se fazem com a linguagem (persuadir os outros, divertir, alertar, informar, assustar) são frutíferas quando as ações que se fazem sobre a linguagem apresentam-nos um dizer carregado de sentidos. Trata-se de debruçar-se sobre as estratégias do dizer para encontrar nelas o melhor caminho para o que se diz;
  3. Razões para escrever. Aqui, é preciso ultrapassar a mera relação tarefeira e escolar, em que se escreve para mostrar ao professor que se sabe escrever e, com isso, obter o grau necessário à aprovação. Trata-se de encontrar no próprio gesto de escrever as razões reais para dedicar-se a ele: querer compartilhar da experiência humana, registrando as impressões próprias e inalienáveis de seu próprio viver para com ele engravidar o viver dos outros.
  4. Um texto em busca de leitores. Assim concebida a produção de textos, seu complemento necessário e constitutivo é o leitor. Por isso, os textos escritos na escola não podem fechar-se nas quatro paredes da sala de aula ou morrer sob o olhar de, talvez, quatro olhos do professor. A noção de produção de textos, concebida como trabalho de sujeitos no espaço temporal e físico da sala de aula, implica como seu corolário a circulação dos textos produzidos porque na sua recepção é que o texto se realiza como tal.

Posta a produção de textos nestes dois quadros – um mais amplo, aquele social do mundo da escrita e sua circulação, outro mais restrito, aquele da sala de aula – qual o papel do sujeito professor no processo de produção? Como leitor privilegiado de escritores iniciantes, seu papel é fundamentalmente aquele do co-autor que, aproveitando-se de seu maior convívio com textos escritos, é capaz de formular ao iniciante um conjunto de questões que lhe permitirão retornar a seu texto, reelaborá-lo, reescrevê-lo não como uma simples higienização de problemas gramaticais, mas como aquele que, conhecendo as condições de enunciação de seu aluno, pode apontar para enunciados produzidos para neles fazer emergirem tais condições: o sujeito, sua história, seus pontos de vista, suas articulações com o convívio com os outros, fazendo a ponte de diálogo constante do texto que agora se produz com os textos já existentes.

Os exercícios práticos,[no minicurso] pautados nesta concepção, tomaram dois textos produzidos por escritores iniciantes – um aluno de 3ª. série e um aluno de 4ª. série – como objeto de um trabalho de reescrita a partir da atenção às estratégias de dizer e às exclusões postas em funcionamento, face ao ambiente escolar, no dizer dos sujeitos-alunos.

As operações básicas e possíveis de serem conduzidas pelo professor co-autor do texto do aluno incidem fundamentalmente sobre as possibilidades de acréscimo de elementos considerados não nucleares pelo escritor iniciante, mas que davam ao fato narrado seu caráter de unicidade; operações de supressão ou pela redundância de informações ou pela sua obviedade; operações de deslocamento de elementos textuais; operações de substituição, buscando novas formas de dizer, às vezes sem dizer, às vezes dizendo de outra forma [como se pode constatar, se tratam sempre de operações que incidem sobre o estilo, sobre as estratégias do dizer, e não sobre filigranas gramaticais, ainda que estas possam estar presentes não como a operação em si, mas como o que simplesmente lhes subjaz].

 

Bibliografia

Geraldi, J. W. Portos de passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.

Jesus, Conceição A. Reescrita de textos: para além da higienização. Dissertação de mestrado em Linguística Aplicada, 1995.

 

 

Nota

  • Fui convidado para ministrar um minicurso, pela comissão organizadora da VI Jornada Nacional de Literatura, evento que criou tradição nacional, reunindo escritores, professores, jornalistas na cidade de Passo Fundo (RS), no campus da Universidade de Passo Fundo. Cada um dos professores destes minicursos entregou um texto curto sobre seu minicurso. Como tal, em se tratando de um curso, não se esperaria aqui um artigo ao estilo formal e academicizado. Este foi meu texto que acabou indo para os Anais (editado pela EDIUPF em 1997). Para mim, além do contato com os professores que participaram deste minicurso, valeu muito ter conhecido durante o período intenso de três dias (15 a 18 de agosto de 1995) alguns dos escritores convidados. Assim, tive o prazer de conviver com o silêncio de Luís Fernando Verissimo, ser convidado pelo crítico Fábio Lucas para juntos escutarmos “Arnaldo Jabor, o crítico a favor” como ele o denominou e o que nos valeu algumas risadas antes e durante a exposição do inflamado defensor do governo neoliberal de FHC, conversas longas com Regina Leite Garcia; reencontro com o escritor Deonísio da Silva. Ter reencontrado Eric Nepomuceno (que revi neste ano [2018] no Clisertão em Petrolina-PE, a me mostrar que continuamos peregrinos…).

 

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.