Os educadores devem desenvolver um programa de alfabetização emancipadora enformada por uma pedagogia radical, de modo que a língua dos alunos deixe de proporcionar a seus falantes a experiência de subordinação e, ainda mais, possa ser brandida como uma arma de resistência à dominação da língua padrão. (Donaldo Macedo)
Dentre as múltiplas facetas da correlação entre linguagem, cultura e ideologia, é a questão da aquisição da modalidade escrita da linguagem e seus percalços que é aqui focalizada. O foco, seguramente, é consequência do espaço social e cultural por que transitamos, espaço em que a própria correlação é discutida, pois dificilmente em grupos sociais ditos não letrados – por exemplo, numa roda de causos, lendas e histórias – a cultura e a ideologia são tematizadas, o que não significa que nos causos, lendas e histórias não circulem cultura e ideologia.
A seleção do foco, por si, já coloca inúmeras outras questões: enquanto sujeitos históricos, herdeiros de e pertencentes a uma cultura letrada, não deixamos de reconhecer a existência de uma cultura oral, popular, transmitida de geração a geração. Nem deixamos de reconhecer que, no cotidiano distante dos bancos letrados, gestam-se outros modos de conceber o mundo, outras linguagens e mil formas outras de sobreviver na “cidade das letras”. Mas são “outros”. Contraponto necessário e constitutivo.
Consequência de nossa própria história, a oralidade “primária e imediata, sem contato com a escritura” está perdida. Para Zumthor (1993), “ela se encontra apenas nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização gráfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos”.
Três qualificações necessariamente destacáveis: desprovidas de, isolados e analfabetos. Sempre uma ausência, sempre uma falta. Atribuição de uma sociedade provida de alfabeto, ligada (ou crucialmente plugada) e alfabetizada.
Do ponto de vista da linguagem, poderíamos estudar a correlação entre linguagem, cultura e ideologia nos signos constituídos nos processos de interação social destas sociedades de tradição exclusivamente oral, mas, para tanto, teríamos que nos desvestir de nossa própria tradição para evitar qualquer contaminação entre dois mundos distintos: o mundo letrado, em que nos constituímos, e o mundo oral, que apenas podemos imaginar, já que não podemos nos desvestir de nossa própria história.
Para centrar-me no foco dos processos de aquisição da escrita no contexto de sociedades letradas, mas fundamentalmente de classes e exclusões sociais, retomo dois estudos em que predomina a oralidade, cada qual com uma relação muito específica com a escrita.
Vencio (1996), sem seu estudo sobre a apropriação da escrita pelos Jarawara, aponta
Quando, pela primeira vez, chegamos em Água Branca (1986), vimos uma placa pendurada em uma vara erguida no centro da aldeia, com várias letras escritas. Eram letras maiúsculas, algumas de cabeça para baixo, outras ao contrário e ainda alguns riscos imitando letras. A placa tinha sido feita por um dos rapazes e estava representando o nome do lugar, Fasawa (Água Branca). (Vencio, 1996:35)
Sociedade de tradição oral, certamente a necessidade de identificar por escrito o lugar deriva do convívio inicial com a escrita, consequência do contato com a sociedade branca, acentuada pelo “relacionamento comercial com os patrões, os seringalistas e os comerciantes da região, que anotam as operações comerciais, registrando principalmente as dívidas da população local (ribeirinhos e povos indígenas)”.
Foi o contato com o outro, o letrado, que levou o povo Jarawara a querer aprender a escrever, a ter escrita. Feita a descrição fonológica da língua e elaborado um material didático inicial em Jarawara, instaurou-se um processo de ensino em que “cada um ensina um”. Presumivelmente, a alfabetização destinava-se a resolver os problemas trazidos pelo contato, mas ao processo de apropriação da técnica da escrita aliou-se também um processo de construção de uma prática social Jarawara: o uso da escrita para a produção de cartas, com características muito particulares:
A característica mais marcante da carta Jarawara é o seu caráter público. Em outras palavras, a carta, embora dirigida a uma pessoa em particular, é livremente lida e compartilhada por todos. É fato que existem cartas que circulam secretamente. Porém, a natureza coletiva impressa na circulação de cartas faz com que essas “cartas secretas” sejam cobiçadas por todos e cercadas de cuidados muito particulares dos correspondentes: portadores especiais, pseudônimos. Escrita por indivíduos e lita por todos, a carta Jarawara ao circular no espaço social da comunidade articula desejos pessoais e o do conjunto do povo. (op.cit., p. 82)
Conforme a pesquisadora, a rapidez com que o povo assumiu o controle do novo conhecimento transformou o sistema “cada um ensina um” em “muitos ensinam um”, de modo que “alguns que ainda não sabem pedem a outros para escrever suas cartas mas ninguém se acomoda nesta posição. Cada um, por si mesmo, quer escrever cartas. Por isso continuam estudando até conseguir aprender”.
Instigado pelo poema épico de Raul Bopp, o segundo estudo que retomo opera com narrativas orais do mito “Cobra Norato”, documentado por Martius em 1819, e registrado por Câmara Cascudo (1954) em seu Dicionário do Folclore Brasileiro. O mito de Cobra Nonato “não há ribeirinho que não o conte ou não o tenha ouvido de seus pais e companheiros”. (Miotello, 1996)
Confrontado com as aparentemente diferentes “versões” do mesmo mito, o pesquisador analisa as narrativas dos diferentes sujeitos com base em duas perspectivas. De um lado, segundo Lord (1978), reencontra em cada narrativa os elementos comuns extraídos do “baú de tradições” e destaca nas composições, únicas e irrepetíveis, os investimentos da performance do narrador. De outro lado, tendo presente estas distinções, utilizando-se do conceito de “projeto de dizer” de Bakhtin (1992), reencontra em cada narrativa uma diferente orientação discursiva resultante da situação social mais imediata da interlocução e de sua inserção no horizonte social mais amplo tal como o conceber o narrador.
Assim, no ribeirinho residente a 190lms de Porto Velho, Madeira abaixo, margem esquerda, na foz do Jamari, os elementos composicionais remetem à necessária ordem das coisas segundo a natureza, concebida imóvel e disposta a castigar quem a desorganiza; no pescador reencontra o trabalho no rio, tarrafas presas desenganchadas com ajuda de Cobra Norato, a solidão do meio do rio rodeada por seres encantados; no narrador do mercado, ex-seringueiro urbanizado e evangélico, a composição que orienta a busca no baú das tradições vem marcada pela ética familiar, religiosa e rígida, que impõe a Cobra Nonato os deveres de filho que “permanece com a mãe até a morte” (Miotello, passim).
Estes dois estudos exemplificam diferentes relações entre a oralidade e a escrita, ao mesmo tempo que permitem extrair elementos para a discussão entre as modalidades da linguagem e sua correlação com a cultura.
No primeiro estudo, entre outros aspectos, merece destaque o modo de apropriação da tecnologia da escrita feita pelo povo jarawara. É o alfabeto enquanto artefato transferido para um povo ágrafo como tecnologia que merece discussão. No segundo estudo, a permanência da transmissão oral de um mito tradicional mostra que a mobilidade da composição obedece a condições específicas de interlocução e vai realimentando o “baú das tradições”, de modo que este também não pode ser considerado como um depósito estático e imutável, pois as variações composicionais vão dando ao mito novas cores e vestimentas. Como a composição demanda um narrador, ausente nos processos de oralidade segunda (Zunthor, op. Cit.) são as pretensões de rigidez da escrita que merecem discussão.
Alfabeto: artefato e tecnologia. Usarei aqui os dois termos para fazer uma distinção muito própria: o artefato não tem autor; sua ‘descoberta’ não é datável, é produto do trabalho histórico e coletivo de uma cultura; dos artefatos culturais fazemos uso sem nos apercebermos de que poderíamos existir sem eles; os artefatos são naturalizados como se pertencessem às coisas do mundo (lembremos que quando vamos escrever e não conseguimos, jamais imaginamos que está faltando alfabeto!). A tecnologia será entendida aqui sempre como uma “importação” cultural, porque externa à história coletiva; inicialmente, fazemos uso dos produtos tecnológicos conscientes de que são objetos/facilidades resultantes de um certo momento histórico datável e sua incorporação aos ritmos de nossas vidas vai tornando-os ‘quase-artefatos’ e somente os re-percebemos como externos quando eles faltam (somente nos momentos de transtornos causados pela falta de energia nos lembramos de que nem sempre o mundo acendeu lâmpadas”).
O longo percurso histórico até chegarmos às escritas contemporâneas foi percorrido de formas diferentes pelas culturas ocidental e oriental. Esta, tomando da linguagem sua característica semântico-representacional, desenvolveu as escritas ideográficas procurando registrar da fala seus sentidos. Os ideogramas estão longe das representações pictóricas iniciais que pretendiam representar, com ‘desenhos icônicos’ os objetos referidos pela linguagem e, pela ordem dos elementos na sequência, permitir que o leitor ‘extraísse’ a sintaxe da frase e depreendesse os sentidos do enunciado. A cultura ocidental, tomando da linguagem sua característica sonora, desenvolveu as escritas alfabéticas à medida que foi conseguindo segmentar o continuum da fala em elementos cada vez menores (palavras, sílabas, fonemas).
Neste sentido, a longa história da construção do alfabeto pode ser compreendido como uma aproximação, de modo a obter elementos gráficos capazes de representar cada vez melhor a fala, mas retirando desta a voz que pronuncia. Na busca do registro fidedigno genérico da fala, perdeu-se não a entonação, cujos elemtnos podem ser recuperados em sinais diacríticos ou de pontuação, mas a apreciação que o tom da voz imprime à sequência sonora (lembremos os diferentes valores apreciativos na voz em surdina, na entonação calma ou aos berros, na fala lenta ou rápida, etc.).
Paradoxalmente o artefato que acabamos produzindo, ao aproximar-se da sonoridade da fala, distanciou-se da modalidade oral da linguagem. Este distanciamento não se construiu apenas porque os tons apreciativos foram perdidos – tecnicamente seria possível construir um conjunto de sinais gráficos capazes de recuperá-los e, na falta destes, na escrita podemos lexicalizar atitudes e vozes (como mostram expressões como resmungar, gritar, replicar etc.).
O distanciamento entre oralidade e escrita resulta de diferentes trabalhos discursivos, como tais marcados pelos processos sociais de apropriação das diferentes modalidades da linguagem. A escrita, exigindo aprendizagem formal e transmissão social marcada, sofreu um processo de apropriação social por certas camadas da população que nela foram imprimindo seus modos de apreciação do mundo, seus modos de falar, suas palavras – no sentido de logos – de modo que qualquer outra escrita que não se conforme ao discurso proferido pelas camadas que se apropriaram de um artefato coletivamente construído é considerada não escrita, quando, na verdade, o que se está excluindo são os discursos proferidos e seus sujeitos sociais.
Neste sentido, o que a experiência dos Jarawara tem a ensinar a uma sociedade letrada? Ao acederem à escrita como produto tecnológico, os Jarawara usaram e usam este produto para uma função por eles culturalmente definida – escrever e ler cartas. A escrita não está sendo usada como fazem patrões e seringalistas com seus registros contáveis; também não lhes interessou “registrar a própria história” nem escrever e ler livros que contém seus próprios mitos. Elegeram uma função muito específica – a interlocução à distância, efetiva ou fictícia – e passaram a escrever cartas. Obviamente, a possibilidade de existirem cartas produzirá efeitos na cultura Jarawara, mas somente o genocídio que a sociedade branca circundante lhe impõe tornará a escrita um modo de distinção tal como seu domínio produz entre aqueles que nasceram numa sociedade letrada, mas dela são excluídos não porque não possam conhecer o alfabeto, mas porque não são convidados a usufruírem dos produtos culturais por imposição de um modo de formação social.
As diferentes composições de Cobra Norato apontam para uma outra questão: trata-se, aqui, do convívio das modalidades oral e escrita, não sem as distinções sociais recém apontadas. A escrita poderia tornar acessível o ‘baú de tradições’, saber que poderia ser transmitido de geração a geração não só de boa e ouvido. Dos narradores, iriámos recolher nos atos de criação composicional novos elementos a constituir esta cadeia infinita de discursos.
No entanto, já entre os egípcios, duzentos anos depois da existência da profissão de escriba, os herdeiros dos escribas primeiros, aqueles que detinham a técnica da leitura, iniciaram o processo de atribuir à escrita a verdade: somente eles tinham a palavra verdadeira, porque tinham acesso pela leitura ao registro dos discursos fundadores.
Mais uma vez, os processos de apropriação social tornam a escrita aquilo que ela, em si, não é: lugar de distinção, clivagem, exclusão. Aceitos os diferentes discursos, haveria diferentes escritas, sintaxes distintas, composições diferenciadas. As estruturas sociais de exclusão forma construindo uma “cidade letrada” cujos sacerdotes, de um modo geral, praticaram a liturgia do poder, de modo que o alfabeto a duras penas conquistado como forma de aproximação da fala, dela distancia-se pelos discursos proferidos pelos letrados. Este processo produz o paradoxo de constituir para a escrita uma função que nunca orientou a construção do alfabeto: é como se escreve que se deve dizer. Ou seja, à escrita se atribui uma função jurídica de normalizar a fala, quando o alfabeto foi construído como uma tentativa de seu registro.
É a este “juridismo” da escrita (Grenfell, 1991), resultado da cultura escrita clerical (Illich, 1995), que os processos escolares de ensino/aprendizagem do alfabeto devem reagir. Trata-se, neste sentido, de opor-se à unicidade discursiva e linguística, porque a unidade, tanto em questões linguísticas quanto em questões culturais, somente poderia resultado uma imposição. Destinada ao fracasso, porque apesar dos séculos de tentativa de imposição, continuam a circularem diferentes discursos e o trabalho linguístico continha a produzir diferentes variedades.
Desloca-se, nesta perspectiva, a questão do ensino ou não ensino da língua padrão – que, para as práticas escolares resume-se à modalidade escrita das classes dominantes – para a questão da circulação de diferentes composições discursivas e para a utilização de diferentes elementos do ‘baú de tradições’ constituído ao longo da história dos homens porque, se neste estão as memórias do passado, as composições resultam dos cálculos da enunciação presente com base nas memórias de futuro das diferentes classes sociais, independentemente da variedade linguística que domina cada um dos narradores desta história.
Nota
- Originalmente, este texto foi escrito como minha participação de debatedor da Conferência do Prof. Dr. Donaldo Macedo (Universidade de Boston) no Seminário “A construção da Educação Brasileira”, comemorativo aos 25 anos de Pós-graduação em Educação da UFRJ. As ideias aqui contidas derivam tanto das discussões a propósito das constatações sobre a hegemonia temporal da oralidade em sala de aula, detectada nos dados da pesquisa “A circulação de textos na escola” (Azevedo e Tardelli, 1995), quanto da leitura prévia do texto da conferência. Nos debates do grupo de pesquisa, concluiu-se que a predominância da oralidade nas atividades da prática pedagógica – 606 episódios de produção de texto oral em 1456 episódios registrados – resulta de uma oralidade segunda, “de uma cultura letrada (na qual toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita)” (Zunthor, 1993:18). Agradeço ao CNPq pela bolsa de pesquisa concedida (Proc. 360659/91-5). Este texto foi publicado em Letras 19 (1/2), 2000: 9-16. Republicado em Educação & Sociedade, Dossiê políticas curriculares e decisões epistemológicas, ano XXI, vol. 73, Campinas, Cedes, 2000:100-108.
Referências bibliográficas
Azavedo, Claudinéia e Tradelli, Marlete C. Escrevendo e falando na sala de aula. In. Chiappini, Lígia (org). Aprender e ensinar com textos. Vol.I, São Paulo : Cortez, [1995], 1997.
Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes,[1952/530, 1992.
Grenfell, Adrete T. M. Vozes em contraponto. Da redação escolar à emergência dos sujeitos na produção de textos. Dissertação de mestrado, UFMG, 1991.
Illich, Ivan. Um apelo à pesquisa em cultura escrita leiga. In. David R. Olson e Nancy Torrance (orgs). Cultura escrita e oralidade. São Pualo : Ática, [1991], 1995.
Lord, Albert B. Thi singer of Tales. N. York : Atheneum, [1960], 1978.
Macedo, Donaldo. Alfabetização, linguagem e ideologia. Conferência proferida no Seminário A Construção da Educação Brasileira, UFRJ, 1997.
Miotello, Valdemir. Um mito amazônico em narrativas de roda. Repetição e mudança nos processos enunciativos. Disertação de mestrado, Unicamp, 1996.
Rama, Angel. A cidade das letras. S. Paulo : Brasiliense, 1984.
Vencio, Elizabeth. Cartasa entre os Jarawara: um estudo da apropriação da escrita. Dissertação de mestrado, Unicmapo, 1996.
Zumthor, Paul. A letra e a voz. A “literatura” medieval. São Paulo : Cia. das Letras, [1987], 1993.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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