Com a intervenção civil-militar no Rio de Janeiro, até o Cristo do alto do Corcovado está em sentido de continência, diante dos milhares de militares e policiais em estado de guerra contra moradores, trabalhadores, traficantes e criminosos dos morros e periferias pobres – os generais, oficiais, tenentes, sargentos e soldados somam mais de 20 mil. Com ironia fina e mordaz, o artista caricaturista hubert (Folha de S. Paulo de 21.02.2018) satiriza a presença e ação das forças militares no Rio. Com um talento genial, próprio dos artistas ousados e rebeldes, ele fez a montagem do Cristo do alto do Corcovado com o braço direito postado na testa em posição de sentido aos militares intervencionistas. Literalmente, Cristo em sentido de continência, igual a um soldado quando se depara com um superior na sua frente, ou quando recebe uma ordem e grita: “sim, senhor! Às suas ordens”. Sempre em posição de sentido – atitude de submissão e obediência disciplinar cegas.
O cenário no Rio é trágico, uma paisagem metamorfoseada grotesca nas ruas, nas avenidas, nas encostas dos morros, com cenas e imagens prenhes de tragédias humanas – tiros pelos policiais e pelos criminosos, com mortes de inocentes, inclusive de crianças. Tanques de guerra do Exército assustadores, carros blindados da Polícia Militar, soldados e policiais vestidos com fardas antibala e com metralhadoras e fuzis enormes ultramodernos – um arsenal de guerra de dar medo até aos heróis da “pátria livre”. E o pior desta cena grotesca: este contingente de armas e policiais se locomove em volta das escolas e dos colégios públicos. Pior ainda: os soldados de metralhadoras e fuzis nas mãos revistando as mochilas e as roupas das crianças – “uma intervenção infantil”. Pode um policial civil, um soldado revistar um corpo infantil sob o pretexto de que este corpo esteja portando armas mortais? Eles – os policiais, soldados e sargentos – não sabem que as crianças quando vão para a escola levam em suas mochilas livros, cadernos, lápis, réguas, borrachas, pincéis, tintas, lanches? Ah! Dizem: “mas podem levar armas, drogas…”. Enquanto isso, ninguém revista malas cheias de dinheiro roubado, levadas por deputados pelos corredores do Palácio, do Congresso, das empresas, dos apartamentos e dos espaços públicos Brasil a fora – lugares e espaços onde deveria haver a intervenção justa para prender políticos e empresários ladrões.
Agora, se examinarmos mais profundamente estes atos – mascarados com competente humildade disfarçada pelos atores políticos de plantão nas planícies do Planalto – vamos perceber que eles pensam e acham que os livros, os cadernos, os lápis, as canetas, as réguas, as tintas nas mochilas das crianças pobres são as verdadeiras e reais armas na luta contra as desigualdades e injustiças sociais. Logo, é preciso deixar as crianças, os adolescentes e jovens pobres sem o ensino e sem uma educação de qualidade. Daí, não convém aos detentores do controle do mercado de drogas uma educação de qualidade para todas as crianças dos morros e das periferias pobres, como sonhavam e queriam Brizola, Darcy Ribeiro e Oscar Niemeyer com os mais de 500 CIEPs, implantados nas décadas de 1980-90, com uma educação e um ensino público de qualidade em período integral – atividades diversificadas e integradas, conhecimento formal, arte, esportes, ciência, literatura… um verdadeiro planejamento integrado e uma proposta pedagógica transformadora do modelo de sociedade vigente no Estado do Rio de Janeiro.
No auge deste espetáculo de barbáries diárias, temos a cena cabal fantástica, isto é, fantasmagorizada de ternura e amorosidade na voz do interventor chefe Temer: “a intervenção fortalece e enaltece o diálogo” (Jornal da BAND, 27-02-2018). Todo mundo sabe que o ato da intervenção é a negação absoluta do diálogo. Só ele que não sabe. Coitado.
Para finalizar as cenas deste espetáculo, uma notícia bombástica: os juízes- magistrados vão entrar em greve – paralisar as atividades, na linguagem nobre da magistratura, pois greve é uma palavra vulgar, própria da linguagem dos trabalhadores ignorantes e analfabetos. A categoria de Magistrados (Ajufe) – juízes, ministros, desembargadores federais e estaduais, com salários bases de início de carreira de R$40 mil e final de carreira, de até R$80 mil mensais, decidiu uma paralisação no próximo dia 15 de março, para garantir os pagamentos legais e constitucionais devidos a todos os magistrados brasileiros, mediante uma resolução definitiva da questão – auxílio moradia, auxílio escola e auxílio universidade para os filhos e outras mordomias. Realmente, os magistrados brasileiros têm salários muito pequenos, comparados aos salários mínimos dos trabalhadores e aos salários dos professores, estes não ganham salários se quer do tamanho das ajudas de moradias dos magistrados – R$4.500,00 mensais. Assim sendo, um dia desses, os magistrados vão fazer grave – paralisação – para exigir aumento de salários. Enquanto isso, os professores, os trabalhadores assalariados permanecem quietos, aquietados, sofrendo em silêncio para não perturbar a “Ordem e Progresso”.
José Kuiava escreve neste Blog às quartas-feiras.
Professor, pesquisador, escritor
José Kuiava é Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2012). Atualmente é professor efetivo- professor sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: autobiografias.inventário da produção acadêmica., corporeidade. ética e estética, seriedade, linguagem, literatura e ciências e riso.
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