Corruptos absolvem corrupto e corruptor

Corruptos absolvem corrupto e corruptor

Por José Kuiava

Quem absolve corrupto, corrupto é. Princípio ético universal irrefutável. Os senadores e deputados “corruptos” absolvem presidente “corrupto”. Na linguagem legítima e verdadeira – de todos – o certo é: senadores e deputados “ladrões” e “bandidos” inocentam e absolvem presidente “ladrão” e “criminoso”. Esta é a linguagem correta. Porém, o bloco hegemônico usa o poder da linguagem ambivalente na construção da imagem do real dado, chamuscando com ouro falso. Nos tempos da história em que os políticos “roubavam mas faziam”, eram desconhecidos (e quando conhecidos sempre absolvidos) pela Justiça, elogiados pela opinião pública e até perdoados pela massa de eleitores pobres, que votavam nos políticos mesmo sabendo que eram ladrões. Alguns destes políticos até se vangloriavam e proclamavam nas campanhas eleitorais: “Maluf rouba, mas faz” – dístico publicitário impresso em panfletos, outdoors…Claro, havia políticos bem piores, que roubavam, mas não faziam. Tempos em que o crime político do roubo – suborno, propina – virou “virtù”. Hoje, sobraram os políticos do bloco hegemônico, os que só roubam, mas não fazem – exceto os autênticos políticos de oposição ao presidente golpista, que fazem política segundo os princípios éticos. Perante a opinião pública, os grupos hegemônicos do Executivo, do Legislativo e do Judiciário – sempre em perfeita, mas não santa, recíproca aliança – valem-se do poder da linguagem – fetichizam e fantasmagorizam a realidade, exibindo e inculcando subliminarmente uma imagem falsa à opinião pública pela tecnologia midiática sem limites. Esta, a grande mídia, de exclusivo domínio, uso e controle das elites do poder, é arma poderosíssima na correlação de forças sociais e ideológicas. Assim, nós brasileiros e os cidadãos do mundo inteiro acabamos de assistir a consagração da corrupção no Brasil – pela força da união, do conchavo e do amor mútuo e recíproco dos três poderes. Ultimamente, estamos assistindo diuturnamente, ao vivo, cenas reais estarrecedoras e nojentas nos palcos do teatro do Congresso Nacional e do teatro do Supremo Tribunal Federal – cenário da poderosa e temida justiça de toga. Relembrando as tragédias, no primeiro ato assistimos cenas em que atores corruptos investigaram, julgaram e condenaram por crimes não comprovados, porque inexistentes, a então presidenta eleita. A cena real foi montada sob a direção, o comando e a articulação-cooptação política do maior dos corruptos e corruptores do atual cenário político nacional – o personagem de Presidente da Câmara dos Deputados, representado e vivido pelo ator protagonista Eduardo Cunha. Ele, sim, ladrão antigo, condenado e preso somente após a cena do “golpe”, chamado constitucionalmente de democrático – o “impeachment”. Uma pergunta ingênua: como um criminoso pode presidir um ato de condenação de um inocente? E por força de quais princípios éticos? Aliás, há atos muito estranhos neste espetáculo teatral dos cenários da política e da justiça, tanto nas imagens como na linguagem dos protagonistas e atores reais, sempre em cenas reais e ao vivo televisivo. Na sessão de absolvição do Temer, os votos eram proclamados pelos deputados individualmente. Os aliados do Temer tinham que dizer “sim” para absolvê-lo; os deputados que queriam a condenação diziam “não”. Há uma sutileza prenhe de ideologia no signo destas palavras, projetadas no painel eletrônico: o “sim” é positivo, afirmativo, ato de apoio, força de querer, de otimismo; o “não” é uma atitude negativa, de não-querer, de oposição, pessimista. Uma arquitetura de linguagem ao avesso. É uma maldade ideológica. Mas a maldade em grau mais elevado da sutileza ideológica está nas cores: o “sim” é verde suave e delicado, cor da esperança, da vida; o “não” é vermelho forte, cor do perigo, da ameaça, da violência. Estes signos históricos são bem antigos e associados a outros signos de origem mítica e sentido sagrado: “direita” e “esquerda”. São dos tempos das narrativas da criação do mundo pelo poder de “Deus”. Na guerra civil dos céus, os anjos bons e obedientes postavamse à direita de Deus; os anjos maus e desobedientes postavam-se à esquerda de Deus. Os bons eram comandados por Miguel Arcanjo e os maus, por Lúcifer – o demônio. Não é por outra razão que o sinal da cruz dos fieis de hoje só pode ser feito com a mão direita. Fazer o sinal da cruz com a mão esquerda é uma profanação do sagrado, uma obscenidade. Benzer, só com a mão direita. Saudar o outro – “dar a mão” – sempre e só com a mão direita. Escrever, até pouco tempo, só com a mão direita. Enfim, a direita é o signo do bem, a esquerda é o signo do mal. É o verdadeiro “Visconde partido ao meio longitudinalmente”, do jeito que Ítalo Calvino imaginou. Estes signos foram adotados e continuam hoje, com maior força, na escala ideológica social e política. Assim, os trabalhadores, servidores, empregados, desempregados, os componentes das massas populares, quando engajados em movimentos ativistas são rotulados de esquerdistas, anarquistas, desordeiros, terroristas e revolucionários. Já os proprietários, empresários, rentistas, empreendedores, políticos, altos funcionários do judiciário, das forças militares – componentes do bloco hegemônico no poder – são da direita, da ordem, do progresso, do desenvolvimento, da paz, da harmonia social. Portanto, estes, e somente eles, podem e devem governar o Brasil. Aqui, uma segunda pergunta, também ingênua: porque os crimes – grandes roubos – do presidente Temer foram julgados pelos deputados e não pelos juízes? Quando um cidadão faminto, desempregado, sem ter o que comer, o que beber, onde morar, sem o que vestir, se apropria do que não é dele – um ladrão de galinhas – é preso pela polícia e condenado pela justiça e o político e o grande empresário quando roubam milhões, bilhões do dinheiro público – bem de todos – são julgados, inocentados e absolvidos pelos colegas políticos deputados e senadores. Isso é legítimo? Ah, sim, é por conta do dispositivo constitucional! Constituição que eles mesmos inventam e aprovam, com o bendito status de “Foro Privilegiado”, “Imunidade Parlamentar”…Embora, todos somos iguais perante a lei, uns são mais iguais que os outros. Que lindo! Por conta e força deste dispositivo constitucional e para garantir o “sim” da sua absolvição programada, Temer perdoou uma dívida pública de bilhões de reais ao INSS de bancos/rentistas e grandes empresas; na véspera da absolvição, liberou bilhões de reais aos deputados do bloco ruralista e outros aliados na forma de emendas orçamentárias; distribui ministérios e cargos em órgãos públicos; mandou entregar uma mala – a primeira de dezenas – com quinhentos mil reais ao amigo e criminoso, preso na cadeia, para ele não dizer a verdade e comprou, com dinheiro público, outros deputados e nada disso “veio ao caso”, segundo argumento jurisprudente do juiz protagonista da “Lava Jato”. Apesar de todos os crimes praticados até o início da sessão, Temer foi julgado inocente e absolvido. Quem assistiu o espetáculo – a “tragicomédia”– viu cenas e atos risíveis. Alguns deputados, em estado de idade vencida, ao falar e proclamar o “sim”, conseguiam balbuciar palavras bem ao estilo dos mortos no subsolo de Bobók – conto inédito de Dostoiévski. Foi o verdadeiro “sim” dos personagens (vivos) do subsolo dostoieviskiano.

                                                                          Cascavel, 02/08/2017

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.