Escrevo sempre, e me alimento de outros textos: cinema, poesia, música, romances, pinturas, teatro, danças e por aí vai… O que entendo que além de me enriquecer como ser humano, me permite acessar várias culturas e realidades. Essa é a fortuna da arte, nunca saímos os mesmos.
Da poltrona do cinema, olho para a tela esperando todos os caracteres subirem. Vejo todos os nomes. Mas vejo sem ver. Meu olhar está no infinito do mundo, existem mais dúvidas sobre o ser humano, sobre mim, sobre a vida… Do que respostas. Ainda sem entender o que desde sempre acredito já entender, pois existem coisas que talvez compreendamos sentindo, vou para meu quarto, pego meu celular e envio uma mensagem: “Você assistiu ‘Corra’?”
Em poucos minutos, vem à resposta, em áudio do aplicativo: “Como você sabe que eu assisti ‘Corra’? Que porra é essa?” Escrevi: “não sabia. É que terminei agora de assistir”. No minuto seguinte, outro áudio: “Cara, eu acabei de assistir este filme, velho… Você está doido… Não, Tayrone! Explique-me como você ficou sabendo? Nossa, Meu Deus do Céu”, conclui com espanto e risos a negramara (Negra, Amar, Mar, Mara).
Sim, Mara, você foi a primeira pessoa que me veio à mente após o filme. Não que seja a pessoa negra mais próxima de mim. Aliás, quiçá seja uma das mais distantes na atualidade, pelo menos geograficamente. Mas, além de mulher negra, e pobre, como você mesma diz, é uma das pessoas com quem mais me identifico na luta diária contra as injustiças e preconceitos.
Será que realmente assistimos ‘Corra’, mesmo sem combinar, no mesmo tempo? No mesmo minuto? No mesmo segundo? Talvez sim, se realmente tivéssemos assistido um filme de terror, de nível sobrenatural. Mas ‘Corra’ não é terror? Claro que é! No entanto, mais real do que o próprio filme sugere ser, e por isso precisava saber de sua opinião.
Duas cenas continuam a martelar minha cabeça:
Cena A
O carro da polícia se aproxima nos momentos finais com sirene ligada, o negro mocinho, será?, interpretado por Daniel Kaluuya, levanta as mãos para se render à polícia, quando, ao mesmo tempo, a personagem branquinha não tão mocinha, será?, interpretada por Allison Williams, expõe um leve sorriso nos lábios.
Essa é a cena mais impactante para mim. A certeza por parte dos personagens de como seriam pré-julgados. Isso é cinema ou é realidade? Na verdade, não restam dúvidas de que, infelizmente, o mundo, ao logo de sua história, escolheu seu lado e construiu seu muro invisível e, por isso, é tão difícil transpô-lo.
Cena B
No outro espaço da película da minha mente, ainda vejo o leilão.
Quantos leilões o povo negro já sofreu ao longo do tempo? Quantos sofrem e quantos sofrerão? É… Este terror não é sobrenatural. Por isso, querida Mara, me recorri a você. Não tenho pele preta. Mas me orgulho do sangue preto que corre em mim. Por isso, sem hipnose, quero entrar na sua mente e entender, de quem sente na pele, as angústias que o filme de Jordan Peele provocam em mim. Corra, venha me ajudar.
Tayrone Di Martino – É jornalista e advogado
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Tayrone,
Passado o susto da coincidência, penso que ajudar não é a questão, mas me proponho a ler junto o que pensei sobre o filme Corra. Antes de tudo penso que, por mais assustador que o roteiro possa parecer, é preciso tentar elucidar os caminhos que o filme utiliza para tratar o real.
Filmes de terror/suspense não são meus preferidos, talvez por isso mesmo eu tenha demorado tanto a assistir Corra (Get Out) de Jordan Peele, mesmo sabendo da temática racial, resisti, até que vencida e confiante, entreguei-me, e qual não é a minha sorte recebo sua mensagem nos minutos que seguiram.
No inicio do filme a cena de sequestro de um rapaz negro totalmente fora de contexto constituiu uma ponta que precisaria de amarração ao longo da obra, o que por si já garante a expectadores mais efêmeros – como eu prosseguir até o fim. Sim, muitas vezes abandono filmes que não me prendem, tampouco ganham instantaneamente meu apreço. Confesso que para “militantes” é difícil ver as cenas iniciais sem um embrulhinho no estômago: a namorada branca de olhos azuis e rica com o discurso bem raso de que racismo não existe: – meu pai votaria no Obama!(WTF?) e vamos lá conhecer minha família.
E o tempo todo eu pensando, porque diabos sequestraram o rapaz?
Depois tem uma cena quase fofa da blitz em que a mocinha não permite que o policial seja preconceituoso com o seu namorado, e é ela quem vai dizer do alto da sua branquitude (e por isso razão): eu conheço as leis! Então é isso, é claro! Negros sofrem racismo por não conhecer a leis, e eu que imaginasse que a gente não tivesse sequer acesso a elas pelo simples fato de sermos negros, ou que a gente nem pudesse responder um policial ou outros do gênero.
Já na casa dos pais da mocinha, Chris, nosso protagonista observa e entende outros negros subalternizados trabalhando “como se fossem da família” essa é a máxima mais utilizada por aqui, é que o quase é um advérbio de modo que serve para mudar a condição de ser da família, não tem essa de quase, ou é da família e tem direito a tudo, incluindo sentar e colocar o pé no sofá – se for da sua vontade, ou não é, e aí tem que limpar a sujeira dos pés no sofá dos outros, com uniforme ou sem, sempre ao gosto dos patrões.
Aí vemos uma situação bem interessante, em geral, negros quando ascendem (???) socialmente perdem um pouco da percepção sobre outros negros, muitas vezes eles até deixam de ser negros, como se fosse possível a partir de sua vontade e conquistas voltar algumas escalas na paleta de cores, e a sociedade também aceitasse com naturalidade esse branqueamento.
A festa na casa acontece e aí começa o show de horrores, mas sem terror ou suspense algum, a não ser o inconveniente das várias exposições de situações racistas a que o jovem é submetido, mas para mim que sou negra posso dizer que é algo bem comum. Eu fiquei imaginando quantas pessoas já falaram para mim: acho linda sua cor! (Oint que fofo!) Dá vontade de perguntar: você fala isso para todo mundo ou só quando quer disfarçar o racismo internalizado? Afinal, vocês já viram alguém dizer pra uma pessoa branca que acha linda a cor branca dela? Sabe o que é, é que na verdade, as pessoas não acham, mas como em meio a tantos brancos somos exóticos (adoro esse termo também) as pessoas querem nos acolher com sua apreciação momentânea aí tem que ser efusivos.
Tem de tudo: genética, estética, objetificação dos corpos, e tudo mais que o racismo comporta. Poupem-me! Onde raios está o moço sequestrado? Cadê a amarra dessa história, poxa? Enfim, lá está ele: diferente, vestido de outra forma. Tinha algo estranho, perdido o viço, a identidade. Ao cumprimentar Chris ele marca com um aperto de mão quando o natural seria um punho com punho. Coisa de manos. É interessante isso, essa metáfora das pessoas serem hipnotizadas, lobotomizadas para então adentrarem o universo dos brancos. Segue o baile.
Então, a gente descobre que o nosso protagonista é uma revelação da fotografia, é sensível e maravilhoso, mas não captou a mensagem de socorro do ser irmão negro quando desperto do transe pelo flash da fotografia, toda a sua sensibilidade não percebeu o quão a situação estava errada, e, imerso no pertencimento do mundo branco, afundou-se ainda mais no lugar profundo.
Reveladas as intenções do filme, a pergunta posta é: porque escolhem negros? Essa pergunta sai da boca do nosso jovem fotógrafo, mas a resposta é um arremedo, contem verdade, mas não é toda ela. Em geral não somos notados, ou porque estamos hipnotizados por pertencer ao grupo dos nossos algozes, e nos tornando parecidos com eles, escondendo bem no fundo nossas raízes, cultura e dores. E tem ainda outras possibilidades.
Poucas pessoas sequer ficam escandalizadas com o sequestro do jovem negro, é a naturalização da barbárie com os jovens negros: vide Marielle Franco.
Nossos corpos e existência não merecem atenção: violentam-nos, estupram, encarceram, culpam, excluem, oprimem, escravizam, ocultam, silenciam, marginalizam, caluniam, discriminam, criminalizam, sequestram, enlouquecem, adoecem, nos matam todos os dias e ninguém faz nada. O absurdo e o terror parecem naturais quando aplicados a nós: vejamos os índices de mortalidade da nossa juventude, o número de filhos sem pais, a expectativa de vida, os salários, a falta de oportunidades e vagas, a violência, a cor da pobreza e da miséria. Somos invisíveis.
*Agradecimento especial ao amigo Tayrone Di Martino, que contribuiu com esse texto, dando o pontapé inicial e fazendo a provocação para construção do mesmo.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
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