Construção de um novo modo de ensinar e aprender a língua portuguesa

Da pesquisa linguística contemporânea podem ser retiradas três grandes contribuições para o ensino da língua materna: a forma de conceber a linguagem e, em consequência, a forma como define seu objeto específico, a língua; o enfoque diferenciado das variedades linguísticas e a questão do discurso. Tendo no horizonte essas três contribuições, as Diretrizes para o Aperfeiçoamento do Ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa, elaboradas pela Comissão Nacional do Ministério da Educação, sugerem um ensino centrado em três atividades: a prática de leitura de textos; a prática da produção de textos e a prática da análise linguística.

Para que as práticas propostas não se tornem apenas outro rótulo para atividades tradicionais, é preciso retomar as três contribuições essenciais da linguística ao ensino da língua materna. A compreensão adequada desses pressupostos permite a construção criativa de situações interlocutivas das quais necessariamente emergem a leitura do mundo, as diferentes formas linguísticas de expressar compreensão.

Mais do que ver a linguagem como uma capacidade humana de construir sistemas simbólicos, concebe-se a linguagem como uma atividade constitutiva. Nesta relacionam-se um eu e tu, que constroem seus próprios instrumentos (a língua) para intercompreensão. Obviamente, nascemos num mundo onde muitos eus e tus já se encontraram. E a herança de seu trabalho encontramos não só nos produtos materiais, mas também na própria compreensão desses produtos, que se expressa simbolicamente. A língua é uma dessas formas de compreensão. Por isso, a aquisição da linguagem, como salienta Bakhtin (1974), dando-se pela internalização da palavra alheia (especialmente da mãe) é também a internalização de uma compreensão de mundo. As palavras alheias vão perdendo suas origens (ser do outro), tornando-se palavras próprias (internas) que utilizamos para construir a compreensão de cada nova palavra. Por isso a língua não é um sistema fechado, pronto, acabado de que poderíamos nos apropriar. No ato de falarmos, estamos participando do processo de constituição da língua.

Entendamos o sentido que estamos dando à expressão palavra. Por certo, trata-se de cada item lexical, mas trata-se de muito mais: das formas internas de cada palavra (os morfemas) cujo conhecimento revelamos na construção de novos itens lexicais (todos nós já convivemos com crianças que combinam diferentes morfemas e constroem novas palavras, como, por exemplo, infantilice, com base em meninice); das formas de combinar itens lexicais para construir frases (combinações diferentes na oralidade e na escrita); das formas de construir textos cada vez mais complexos (muito antes da escola, aprendemos a narrar, a descrever objetos, a defender pontos de vista).

Assim compreendida a noção de palavra, podemos substituí-la por um termo mais técnico – recurso expressivo. Assim, uma língua é um conjunto de recursos expressivos, sempre em constituição. Estes recursos expressivos remetem a um sistema antropocultural de referências. Este sistema, também ele certamente aberto porque históricos, está sempre em modificação.

Como aprendemos a língua no convívio com os outros, a variedade linguística que assimilamos é aquela falada em nosso grupo social. Como a repartição dos homens numa sociedade não é absolutamente sem consequências, o acesso aos bens da herança cultural do passado se dá de forma diferenciada. Entre esses bens é preciso incluir os diferentes modos de conceber a vida. Aprender uma variedade linguística é também aprender um sistema de referências.

Os estudos linguísticos sobre as variedades mostraram, fundamentalmente, a complexidade de cada um dos dialetos (regionais, sociais). Com isso, mostrou-se que a noção de erro não é uma questão linguística estrita, mas deriva da eleição social de uma das variedades como a certa. Não por acaso esta variedade é aquela falada pelo grupo social que detém o poder (econômico, político, social). E essa variedade foi a base para a construção da escrita.

O estranhamento da uma criança de grupos sociais desprivilegiados, ao entrar pra a escola para aprender a ler e a escrever, resulta também do fato de que os modos de compreender o mundo e falar são diferentes dos modos a que se habituara. Não se pense, no entanto, que a diferença bloqueie as possibilidades de aprender. Numa sociedade, até para que o poder se exerça, há vasos comunicantes entre uma e outra variedade. O mesmo aluno que fala diferente é capaz de compreender textos expressos na variedade considerada certa.

No processo pedagógico, não se trata de substituir uma variedade pela outra (porque uma é mais rica do que a outra, porque uma é certa e outra errada, etc.), mas sim de construir possibilidades de novas interações dos alunos (entre si, com o professor, com a herança cultural) e é nesses processos interlocutivos que o aluno vai internalizar novos recursos expressivos. Trata-se, portanto, de explorar semelhanças e diferenças, num diálogo constante e não preconceituoso.

Como a unidade comunicacional é o texto (que pode ser uma palavra ou uma obra completa), e como a sociedade é complexa, diferentes tipos de textos nela circulam. Cada texto é produzido no interior de um processo interlocutivo. Assim, um texto oral de conversação durante uma refeição tem características diferentes de um texto oral produzido num debate numa reunião sindical.

Compreendido os pressupostos que embasam as práticas de ensino propostas, a elas podemos retornar. O ensino tradicional de língua portuguesa investiu, erroneamente, na descrição da língua. A escola agiu mais ou menos como se para aprender a usar um interruptor ou uma tomada elétrica fosse necessário saber como a força da água se transforma em energia e esta em luz. O conhecimento gramatical é necessário para aquele que se dedica ao estudo da língua e ao seu ensino, mas, em seu todo, não é necessário para aquele que quer aprender a ler criticamente e a escrever exitosamente.

Essas são as perspectivas que devem iluminar as práticas de leitura, de produção de texto e de análise linguística no ensino da língua portuguesa, desde que se queira efetivamente ampliar o número de pessoas que leem e escrevem em nossa sociedade. E ampliar esse número significa ampliar o exercício da cidadania, com o mais adequado preparo par ao trabalho: aquele em que cada um aprender a aprender.

Um ensino de língua materna assim concebido poderia ser construído através de um meio de comunicação de massas, como a televisão? Considere-se que até agora viemos insistindo que a relação de ensino, ao contrário da tarefa de ensinar, pauta-se pelo processo interativo entre sujeitos, onde um e outro podem tomar a palavra, constituindo-se no locutor. A televisão não se caracterizaria pelo não deslocamento dessas posições? Nela, quem emite é sempre a mesma fonte, cabendo ao telespectador sempre a posição de quem recebe mensagens.

Esse é o desafio para a construção de telecursos que não queiram transformar seu ensino em mera transmissão de saberes e conhecimentos. Esse é o desafio que o Projeto Tele-educação para o Trabalho, da Fundação Roberto Marinho, vem enfrentando. E os primeiros módulos de aulas já elaborados, na área de língua portuguesa, mostram uma coerência excepcional entre os pontos de vista teóricos assumidos nas diretrizes gerais do projeto e a atualidade do ensino de língua portuguesa. Tal fato gera um programa de ensino não-convencional, dividido em dois grandes campos: o dos fenômenos interacionais e o dos suportes linguísticos postos a trabalhar no interior desses fenômenos. Vale a pena conferir:

  1. Fenômenos interacionais: 1) língua e linguagem na comunicação humana; 2) interação verbal e contexto social: o significado como produto da correlação entre o linguístico e o contextual; 3) os sujeitos no processo de interação verbal: imagens do outro e do mundo na construção do texto; 4) equívocos e mal-entendidos na interação verbal; 5) universo discursivo: construções de representação do mundo; 6) o mundo dos acontecimentos discursivos; 7) criar acontecimentos (discursivos) no mundo.
  2. Suportes linguísticos: 1) variação linguística; 2) modalidades; 3) estrutura dos enunciados; 4) o léxico e o significado; 5) estruturas textuais.

Obviamente, apenas tal listagem não garante a construção de relações de ensino tais como aquelas que vínhamos defendendo. Por isso, os autores das aulas de língua portuguesa (Gustavo Bernardo Krause, José Luís Jobim, Luiz Marques e Roberto Augusto Soares Leite) centram o ensino em um contexto e dele retiram os suportes linguísticos destinados à reflexão dos alunos. A partir dessa reflexão, os alunos contrapõem outras diferentes formas de comportamento linguístico possível para os interlocutores-personagens. Como no projeto, em termos globais, o vídeo se faz acompanhar do material escrito, a primeira leitura individual da cenatexto é facilitada pela imagem. Mas o material não se compõe apenas desse texto, pois outros são oferecidos para leitura dos alunos, permitindo-lhes um convívio com textos que se transformam em horizontes para suas produções.

Para que tal projeto obtenha o êxito a que aspira, resta uma questão fundamental. E esta questão vem num alerta de Gadotti (1993): “Na mão de um professor que conseguiu ajustar o vídeo ao seu programa, o desenvolvimento do currículo pode dar um salto qualitativo. Por isso, é indispensável investir na formação do professor. Não há material didático tão perfeito que possa substituir a presença do organizado da atividade didática. De nada adianta o desenvolvimento da tecnologia se não se trabalha a formação do professor. Dissociar a produção do material didático da capacitação do professor é meio caminho para o fracasso. Por isso, uma pedagogia de meios, para ser eficaz, deve inserir-se num projeto amplo de educação, no qual eu destacaria que o essencial é a sala de aula como um lugar privilegiado da educação e a escola como um local de criação e recriação de cultura e de cidadania.”

 

Nota

Este texto foi publicado por uma revista da Fundação Roberto Marinho! Ele e sua publicação são consequência de minha rápida participação do TeleCurso 2º. Grau, que a TV Globo levou ao ar e que deveria funcionar com postos de assistência de professores, estes milagres que se espera a tecnologia resolveria: uma escolaridade à distância, sem qualquer preocupação com o ambiente de estudos, quase impossível… e em horários os mais estrambóticos em que vão ao ar na TV aberta… Fui assessor de uma equipe formada por professores da UERJ, que eram os responsáveis pela elaboração das aulas e dos textos que as acompanhavam. A equipe durou até a 5ª. aula, e com a saída da equipe se encerrou minha assessoria… previsível. A questão que levou a esgarçamento das relações com a direção do programa foi, aparentemente, divergências no tratamento da questão da diversidade linguística… mas nós achamos que era a cena que foi elaborada para colocar frente a frente dois falantes, cada um dominando uma variedade da língua: uma gerente de banco falando o português padrão; um mecânico falando variedade popular, e a proposta era de um namoro entre os dois… Deve ter sido um atravessamento de fronteiras, uma gerente de banco querer um mecânico! Enfim, caímos todos. Mas enquanto durou a assessoria, encomendaram-me este artigo, publicado em Escola & Vídeo, no. 9, agosto de 1994.

Passagem deste texto me levou, muito honradamente, a receber de Hélio Gáspari o prêmio Madame Natasha… É óbvio que ele não leu este artigo, mas algum colega lhe encaminhou um parágrafo (marcado em negrito no texto) retirado de seu contexto e o “traduziu” por um enunciado simples: ensinar português… Os leitores poderão ver se esta “tradução” maldosa não é uma forma de descartar os processos de constituição das subjetividades.

 

Referências bibliográficas

Bakhtin, Mikhail. Observações sobre a epistemologia das ciências humanas. in. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 1992 (artigo publicado originalmente em 1974)

Gadotti, Moacir. A escola e a pluralidade de meios. Caderno Pedagógico (1º. de novembro de 1993). Rio de Janeiro : Fundação Roberto Marinho.

Osakabe, Haquira. Observações em torno do acesso ao mundo da escrita. In. Regina Zilberman (org) Leitura em crisa na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1982.

Smolka, Ana Luiza. A criança na fase inicial da escrita. A alfabetização como processo discursivo. São Paulo/Campinas : Cortez/Autores Associados, 1988.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.