“CONHECE-TE A TI MESMO” – VIDAS ESCRITAS NAS UNIVERSIDADES

Nos últimos tempos, estou sendo embevecido e possuído por uma saudade profunda e saudável das classes universitárias. Saudades das salas de aula, das salas de reuniões, dos corredores da universidade – espaços vivenciados durante 40 anos de vida dedicada ao estudo, à pesquisa, ao ensino, ao debate e ao diálogo acadêmicos com professores, estudantes, leitores, escritores.

Sinto que não é um saudosismo esquizofrênico melancólico, nem um tédio solitário. É a rememoração de uma vida acadêmica, vivenciada com os estudantes na leitura coletiva e no debate do texto que escrevi para motivar a escrita da vida de cada estudante. Eu me comprazia e me encantava com a leitura das vidas escritas.

INVENTÁRIO DE VIDA –  uma história de si mesmo nas relações com o mundo e com os outros.

Todos temos uma história para contar e escrever. Mesmo que nossa existência ainda seja curta e breve, já é uma história de uma vida. Contar a história de si é escrevê-la entre a primeira letra maiúscula até o ponto final. Embora o ponto final da nossa narrativa não seja o final da nossa história, pois a vida ainda não acabou. É algo inacabado até que estamos vivos. E narrar é colocar em linguagens as ideias que temos de si mesmos. Assim, não formaremos apenas massa de indivíduos, mas constituiremos a sociedade de sujeitos históricos, numa infinitude de relações recíprocas.

Contar de si, dizer da própria existência é inventariar a vida de si com a vida dos outros. Ninguém jamais viveu sozinho e tampouco vive só. Cada um é um resultado histórico. O resultado das relações com os outros. Somos de um tempo determinado da história. Cada um nasceu num lugar e num tempo. Somos do lugar e do tempo. O lugar de cada um é também o lugar dos outros. Da mesma foma o nosso tempo é o tempo dos outros. Somos todos conterrâneos e contemporâneos. Conhecer a nossa contemporaneidade é conhecer a nós mesmos.

A primeira condição humana do conhecimento é nos conhecermos. O conhecimento é a magia do conhecer a si mesmo. Não em segredo e nem numa situação individualizada e  individualista, nem no sentimento egoísta da vanglória  ou do  triunfo de si mesmo, mas nas relações sociais com os outros. Os outros são aqueles sujeitos com os quais estabelecemos as relações de vida nas mais variadas e amplas situações e circunstâncias. O conhecimento que não ajuda a  nos conhecermos (a realidade determinada) não serve para nada. O conhecimento verdadeiro é aquele que ajuda a nos entendermos como sujeitos históricos,  situados no tempo determinado e na realidade determinada.

Temos uma identidade. Temos nome, sobrenome, data e local de nascimento, nome do pai, nome da mãe. Temos família, irmãs(?), irmãos(?), avós, bisavós, tias, tios e outros parentes. Já fomos crianças. Tivemos a nossa infância. E como foi nossa infância? Com quem e com que brincávamos? Quais foram nossos brinquedos? Como foi nossa infância? O que foi e o que é para nós o nosso corpo? Quais valores humanos apreendemos e vivemos em nossa infância e em nossa adolescência? Como fomos constituindo nossa identidade social, identidade cultural, a identidade religiosa, as nossas crenças, os nossos medos, as nossas angústias ante a vida real? Alguma vez já nos emocionamos diante das árvores, das montanhas, das nuvens, do nascer e pôr do sol? Fomos capazes de brincar na chuva de verão? Como construímos o mundo irreal? Já experimentamos liberar nossas fantasias, o mundo ficcional? E qual foi (é) esse mundo da imaginação?

Escrever a vida configura-se como resgate, constituição e representação da identidade de si, enquanto sujeitos vivos, existentes, como agentes e instituídos de uma identidade social num determinado contexto e tempo da história. A identidade que transcende a identidade consigo mesmo, pois ela configura-se com a identidade do grupo de que faz parte. Assim, o sujeito se percebe como um ator que se representa e convive com personagens vivos, reais.

Como eu me vejo? Como os outros me veem? Como o mundo me vê? Escrever a história de si é debruçar a mente e o coração sobre a vida. É construir a consciência de si mesmo e sobre o entendimento do significado da vida humana.

Mas onde e quando escrever a história de si? E porque não escrevê-la na universidade? Se a escola não for suficientemente capaz, porque não começamos motivar as (os)acadêmicas(os) a se perceberem como sujeitos do processo histórico pelo resgate/constituição da representação de si pela palavra escrita, possível pela imagem e memória que se expressa no escrever a vida? As (os) acadêmicas(os) apreenderiam a pesquisar e a escrever, fazendo algo que tem alto significado para suas vidas. É um exame da própria visão e concepção do mundo. Um exercício acadêmico de criticar a própria concepção do mundo. Escrever a própria história de vida, quem sabe, nos permitiria a elaborar uma nova concepção do mundo de maneira crítica, criativa e consciente. Poderíamos até pensar em transformar os estudos da matemática e da gramática em base de ações vitais para nossas vidas. Assim como Antônio Gramsci já imaginou:

O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário.

É possível que se todos os educandos das universidades escrevessem suas histórias de vida e se todos os professores lessem estas histórias, certamente os universitários não seriam mais os mesmos, nem os professores o seriam.

Voltar ao passado para inventar o presente e vislumbrar o futuro no horizonte longínquo.

José Kuiava Contributor

Professor, pesquisador, escritor
José Kuiava é Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Unicamp (2012). Atualmente é professor efetivo- professor sênior da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Planejamento e Avaliação Educacional, atuando principalmente nos seguintes temas: autobiografias.inventário da produção acadêmica., corporeidade. ética e estética, seriedade, linguagem, literatura e ciências e riso.