Congresso Internacional “50 anos depois de “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire”

O brasileiro Paulo Freire tornou-se um educador do mundo, pois suas obras foram traduzidas para inúmeras línguas e em inúmeros países (Japão, Índia, Rússia, EEUU, Inglaterra, Polônia, além de sua circulação evidente em toda a América Latina e África).

Sua obra maior, Pedagogia do Oprimido, foi escrita no exílio, no Chile, nos anos de 1967 e 1968, anos emblemáticos das movimentações sociais pelo mundo. As manifestações em Paris (maio/68), em Roma, em Berlim, apenas para citar algumas das cidades cujas ruas foram tomadas pelos jovens estudantes, pelos trabalhadores, com lemas que incluíam “exigir o impossível” fizeram parte das condições de produção da obra, pois a ebulição social de então teve a atenção do educador, mas seu livro, no entanto, não aponta para o impossível, mas para os necessários processos de libertação, emancipação e transformação sociais através do trabalho cotidiano onde “inéditos viáveis” podem ser construídos na educação.

Categorias como invasão cultural, dominação, violência, opressão, pluralidade e consciência, trabalhadas em seu livro, continuam úteis para a compreensão das realidades que estamos vivendo hoje. Defendendo uma pedagogia do oprimido (e não uma pedagogia para o oprimido, ao estilo das pedagogias e dos trabalhos de reinserção social), cuja construção não pode dispensar a palavra do próprio oprimido cujos sentidos, geralmente habitados pelas perspectivas das classes dominantes, precisam ser postos em discussão (particularmente nos círculos de cultura), para que se possa reescrever uma história às avessas, ou para usar uma clave benjaminiana, para escrever a história a contrapelo. Paulo Freire capta a atenção das ciências da educação nos mais variados espaços: desde o espaço universitário onde é lido, estudado e debatido, passando pelos trabalhos educativos dos movimentos sociais, dos sindicatos, das organizações, chegando aos sistemas educativos oficiais sem deixar de aportar, muito antes disso, ao chão da escola, precisamente o lugar da emergência das possibilidades de concretização de uma pedagogia que não se restrinja à mera transmissão de conhecimentos, mas que alimente a esperança (não a espera) de construção de um mundo que abrigue a todos e a todas.

Os princípios fundantes de sua pedagogia foram já delineados em sua tese de cátedra para a Universidade de Pernambuco (Educação e atualidade brasileira, de 1959, mas somente publicada nos inícios dos anos 2000) e na experiência de alfabetização de adultos em Angicos (1963), princípios a que se manteve coerente ao longo da vida, mas que foram sendo burilados no grande volume de obras que veio escrevendo depois de Pedagogia do Oprimido, cuja história de edição merece registro.

Escrito, como se disse, nos anos 1967/1968, a primeira publicação do livro se dá nos EEUU, em 1970. É a partir desta edição que se segue a edição em língua espanhola no Uruguai, seguida pela edição argentina. Na investigação levada a cabo pelo Prof. José Eustáquio Romão, depois de 15 anos, os originais foram localizados (e hoje estão disponibilizados na internet pelo Instituto Paulo Freire de São Paulo). E então se percebeu que na edição norte-americana foram excluídas algumas passagens (particularmente seu esquema em que resume sua teoria da ação revolucionária). Como aquela edição serviu de base para as várias edições que circulam pelo mundo, incluindo a primeira edição brasileira (que somente ocorrerá em 1974) e todas as edições subsequentes, somente agora se tem acesso à versão original.

No Congresso realizado no Porto, entre 11 e 13 de julho deste ano, celebrando os 50 anos de Pedagogia do Oprimido os participantes tomaram conhecimento destas informações. Mas a maior surpresa é a primeira edição do livro em Portugal, em 1972! No prefácio à terceira edição lançada neste evento, Luiza Cortesão escreve: “É de salientar que do registo de atividades da cooperativa Confronto constam tentativas de estabelecimento de relações com entidades nacionais e estrangeiras, com caraterísticas muito diversificadas (…). Destes registos, consta ainda a referência a uma carta que António Melo, da Confronto, escreveu em 21 de junho de 1971 a Paulo Freire, que estava na Suíça, propondo uma reunião, com ele, de um grupo de trabalho. E, num registo de 1 de janeiro de 1972, há mesmo referência a outra carta, também de António Melo, sobre a questão da publicação do livro “A Pedagogia do Oprimido” pela Afrontamento, publicação essa que terá acontecido nesse mesmo ano.”

A articulação desta edição, pelo grupo da Confronto, desconhecida inclusive pela busca do Prof. Romão, mostra que a editora contou com alguma cópia dos originais, pois a edição portuguesa contém tudo o que fora deixado de lado pela edição norte-americana e pelas sucessivas edições em diferentes línguas, incluindo a edição brasileira.

O editor José Ribeiro, no lançamento da terceira edição, revelou que quando a editora foi fazer a segunda edição, levou em conta o texto publicado no Brasil, imaginando que a edição brasileira tinha sido acompanhada pelo autor: na segunda edição e agora nesta terceira edição, as partes que agora se tornam públicas pela edição fac-similada dos originais (e presentes na primeira edição portuguesa) foram excluídas. Esta história de edições da obra coloca a primeira edição portuguesa em lugar de destaque: é, pelo que se sabe até agora, a edição efetiva dos originais entregues por Paulo Freire.

O autor revisitou sua obra principal, em novo livro, “A Pedagogia da Esperança”. Nela faz um registro: “eu e a Pedagogia do Oprimido éramos proibidos de entrar na Espanha como em Portugal. A Espanha de Franco e o Portugal de Salazar nos interditava a ambos. À Pedagogia e a mim”.

Os inúmeros estudos apresentados no Congresso desvelando a atualidade da obra de Paulo Freire, cujos conceitos e categorias  – tecnicismo, invasão cultural, não neutralidade, educação bancária, transformação de sujeitos em objetos, então usadas para a elaboração de Pedagogia do Oprimido – são hoje extremamente elucidativas para compreender e analisar as propostas da “pedagogia dos opressores” que se consubstancia em documentos da Comunidade Europeia como defendeu o Prof. Licínio Lima na conferência de abertura do evento; a aproximação de seu pensamento a teses defendidas hoje pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos como demonstrou Inês Barbosa; a perspectiva da constituição da subjetividade que se coaduna com o pensamento de Mikhail Bakhtin, o filósofo russo que Paulo Freire não conheceu; a análise das relações entre a política e a educação seguindo o princípio freireano da não neutralidade e da necessária tomada de posição diante de uma sociedade de desiguais;  tudo mostra que debruçar-se hoje sobre um livro escrito há 50 anos é uma necessidade para compreender, para “ler o mundo”.

No mesmo Congresso, comunicações apresentadas, resultado de pesquisas mais recentes, referem a experiências realizadas com base na pedagogia freireana. Entre estas, um destaque especial deve ser atribuído à Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos. Como se sabe, estas escolas trabalham com jovens “expulsos” das escolas regulares, e com projetos (particularmente em artes e ofícios) de adesão voluntária destes mesmos jovens com os quais tais projetos são pensados, elaborados e postos em prática, reconstroem as possibilidades de estudos, ao mesmo tempo em que oferece formações técnicas para o trabalho sem que este um ano de estudos signifique uma certificação profissional nem o fim da linha na escolarização destes jovens que retornam depois desta experiência às escolas regulares, revitalizados por um ano de escola aberta e pedagogicamente inspirada em Paulo Freire.

O Congresso se encerra com uma conferência de Boaventura Sousa Santos sobre “As epistemologias do sul, Paulo Freire e Orlando Fias Borda”. Trata-se de recuperar outras formas de compreender as coisas, as gentes e suas relações, numa aposta na pluralidade e no convívio possível entre diferenças. Estas formas outras de saberes e conhecimentos não podem ser ignoradas ou consideradas menores, tal como tem acontecido diante do eurocentrismo que predomina nas concepções do que é conhecimento válido, produzindo um epistemicídio atroz e empobrecedor.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.