Conclusão de Canção do Exílio Aqui, de Moacir Félix

LV

Exilado na indecisão em que coexistem

o carro e o sinal e o pedestre

e a minha própria existência

(da qual não posso sair

como o caroço não sai da fruta

que ainda não foi destroçada

ou como a gema não sai do ovo

que em forma ovoide perdura).

 

LVI

Exilado a raspar as unhas no pó desta parede

caiada como o túmulo

das aves coloridas que eu perdi

sob o relâmpago

que destruiu a minha consequência mais bela

(a quem indagar? e o que combater?)

A não ser esta sombra

do meu rosto

sobre a face do outro

ou no torto

esqueleto da cidade a balançar-se

enforcada

no laço mais soturno de minhas veias

sob os ciprestes nos portais do nada.

Exilado nos desfechamentos do acaso

sempre idêntico a si mesmo

em seu porte maior quando derruba

nos abismos sem mapa o que é desígnio

ou o filosofar inútil, o vão palavreado

da boca que sistematiza porque teme

a orfandade da vida neste Cosmos.

 

LVII

Exilado de você, de mim, de todos e de tudo

ao som deste violino neste rádio

neste quarto, nesta cidade, neste mundo

em que apanho meu cérebro entre as mãos

e o contemplo,

coisa a ser espatifada

para que afinal haja silêncio, paz

entre as coisas que amo, as alegrias

da vida que por muito amor criei.

E porque este piano escava

ao lado do fagote esses tambores

na vida perdida para sempre, aquela vida

em que fiquei exilado como a planta

a carecer de sol no canto

da sala

inteiramente vencida pela sombra?

 

LVIII

Exilado no sofá, que é de fato uma cadeira elétrica executando

noite após noite

cada autenticidade minha foragida.

Exilado na mão prenunciando a pólvora, cujas marcas

desde já desenho na imobilidade dos meus dedos

Exilado no amigo, a exigir-me preestabelecido em sua ternura conveniente e fácil.

Exilado nos tapetes, a se enrolarem nos pés do meu silêncio,

como cobras me domando em frases de almanaque.

Exilado na mulher que me acompanha, por ter-lhe dado

em troca de tanto amor o meu incêndio

sobre os trigais a que me convidara

Exilado no amor pelos meus filhos, por sentir-me escuro

a transportar a claridade

por mim rezada para o tempo deles.

Exilado na casa onde resido, pois não sei mais como mantê-la

tal como eu gostaria mas não posso

por causa desta chama em que me acabo

sem outro saber que o deste verso.

Exilado e só, às vezes tão incrivelmente só

que o meu retrato de vidro nos espelhos

era a única realidade

a que eu me agarrava

para sentir que eu existia e que nem tudo

era o sonho de um sonho se sonhando

dia a dia

neste calor de imagens minhas

a desfilar vazias sobre o nada

da minha morte que em mim me precedia

 

[…]

LXIII

Exilado no exílio de todos os exílios

que em mim não findam mais

e são eternos

porque neles morrerei e para sempre

no meu tempo morto eles serão

– imutáveis –

os exílios que sempre foram

dentro de mim, quando eu vivia

como a flor que ao ser regada pela sombra lembra

as exigências de sol sobre o seu caule

– e em direção da aurora se prolonga.

 

(Moacir Félix. Canção do Exílio Aqui. RJ : Civ. Brasileira, 1977)

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.