por Mara Emília Gomes Gonçalves | ago 23, 2018 | Blog, Uncategorized
Hoje, vamos fingir que estou em uma sala de aula, e todos os meus leitores agora serão alunos, então vamos fazer uma leitura, meus amados: Uma vela para Dário de Dalton Trevisan.
É um conto muito bom para pensar as relações sociais, é claro que podemos fazer várias observações sobre tipologia, foco, clímax, personagens, e assim vamos…Claro, que alguns de vocês sabem, ou até já presenciaram, que realmente acontece essa coisa de roubo de pessoas que morrem em acidentes, ou mesmo assim como Dário: De repente. Mas o que nos incomoda nesse conto, curtinho, não é isso, são como diria minha ídola da música sertaneja, Roberta Miranda: são tantas coisas, só nós sabemos o que envolve o sentimento.
Tudo bem, amigos, voltarei ao que importa, essa obra prima da literatura brasileira que poderia ser apenas lida e trabalhada sem se importar com o que ela movimenta em nós leitores, em nossa humanidade.
Dário, é gordo, tem um infarto, morre, pessoas vão roubando seus pertences um a um, e ao final Dário está só a espera do rabecão. Entre o infarto e a espera solitária se revela a mágica deste texto: a observação dos observadores da saga de morte de Dário. O roubo, o descaso, a incapacidade de se comover, de estender a mão, de buscar em seus documentos socorro ou providências, de pagar-lhe o táxi, de arrastar-lhe até um lugar adequado, de abanar as moscas que tomam a face do homem, de deixar a aliança em sua mão, manter minimamente sob sua cabeça o terno. Ainda assim é preciso registrar que um menino, um menino negro, faz um gesto.
Esse gesto é capaz atravessar nossa descrença, a sensação de que a humanidade e o que importa, ou deveria, que é a vida deve ser preservada, cuidada, enfim. E como gesto é um símbolo: a vela – a luz, o calor, a vigília, a proteção, a mística – é uma fagulha, mas que com os pingos da chuva se apaga, poderia incendiar, mas apaga.
Então temos só a violência, que não é singular, mas plural. Assim, as violências passeiam invisíveis na anuência da sociedade. É claro que nem todos ali roubaram, nem todos pararam para ver Dário, ou mesmo conseguiriam dar socorro. Será?
Leiam o conto, leiam e de novo se emocionem. Confesso a vocês que estou emocionada porque minha intenção é das piores.
Não vamos mais fingir nada.
Prendemos um homem em uma cela porque seria reeleito. Roubamos cotidianamente esse homem, tiramos a companheira, matando-a inclusive, adoecemos esse homem, é preciso dizer: velho. Todos nós assistimos a saga de morte, violentamente assistimos de nossas janelas/internet ou TV, somos como os passantes que atropelam Dário, e rapidamente já buscamos Haddad para seu lugar. Não queremos saber de família, de afeto, da vida, de nada. Em momento algum alguém checou se Dário ainda respirava. Não interessava. Era importante que ele não pudesse reagir.
E num gesto como o do menino negro que trás a vela, sete meninos, não meninos, trazem em sua humanidade agigantada uma greve de fome. É um gesto. Comove-me profundamente porque a literatura me permite saber que apagarão esse gesto. Fome por justiça, 24 dias, parecem anos, logo parecerão uma eternidade.
Em súplica, eu peço: Não vamos deixar que a chuva dos deuses do supremo, com tudo, apaguem as velas.
Amém.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | jul 26, 2018 | Blog, Uncategorized
Todos os dias eu me descubro mais apaixonada pela educação, e imediatamente penso que a raiz etimológica da palavra paixão é pathos, o que remete a algo patológico, doente, excessivo. Então não. Engraçado que em uma campanha do passado recente, penso que não inadvertidamente um candidato usou o slogan: paixão pela educação. Medo desses meus maus pensamentos.
Certo é que não tenho amor, afinal é um esse sentimento sublime, que não vê defeitos, não escolhe mediante análises, tempo ou conhecimento, ao contrário é voluntário, tudo perdoa. Enfim, vou dizer que gosto, porque me parece mais honesto. Gosto da educação, de ser professora.
Professores me encantam, sempre é um tempo mentiroso, pois muitas vezes ao ler ou presenciar práticas equivocadas tenho impulsos de ódio mesmo, depois passa, rápido até. Não me tornei professora aleatoriamente, escolhi várias vezes trilhar esse caminho de mudança. Já a mudança, e as ideias que advém dessa prática me causam maior alegria.
A capacidade de mudar realidades é algo fascinante: não ler para torna-se leitor, não ser social para convivência coletiva, ceder, organizar, desorganizar, e tantas outras coisas, e não estou falando só de educação escolar, mas dela também. O conhecimento, a o trânsito continuo deste, é algo muito admirável: de repente a gente aprende e aprendendo a gente ensina, e ensinando a gente muda o mundo. – acho que é Paulo Freire isso, mas já introjetei e acredito que é meu, então fica mesmo sendo assim sem dono ou dona que não permita a livre circulação.
Muitos professores gostariam de ser valorizados, engana-se quem pensa que é de salário que parte essa premissa, ou o uso do jaleco tapa giz, ou mesmo respeito por parte dos alunos que entendem que escola é lugar de aprender(com quem muito sabe, risos), quem sabe um presente no aniversário profissional, um lanche bacana na sala de professores e outras perfumarias. Essas coisas são bacanas, mas não atingem o cerne da questão da desvalorização do professor, aliás não deviam atingir, mas tão massacrados que estamos algumas vezes ganham uma dimensão de maiores do que realmente são.
Sempre que converso com professores, e me permito ouvir mais do que falar (casos raros) percebo neles uma vontade de produzir reflexão, ter tempo para descansar e pensar sobre a sua prática, e melhorá-la também, mas como fazer isso diante de tripla ou quadrupla jornada? E mais do que isso, como combater o distanciamento entre prática e teoria? Talvez a desvalorização interesse a alguém, ou a um poder e ordem estabelecidos.
Ninguém vai acreditar mais ouço nesse exato momento em que escrevo uma música de Belchior que diz: “Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria,/ Em nenhuma fantasia, nem no algo mais/ Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia/ Amar e mudar as coisas me interessa mais/ Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais”. (Alucinações – Belchior)
É interessante como gosto de ouvir as composições de Belchior, seu sotaque nordestino carregado de sentimento latino-americano sem dinheiro no banco, mas confesso nunca tinha prestado a devida e merecida atenção nesta música que destaquei acima. É claro que digo isso porque sou miseravelmente incapaz de entender tudo o que a genialidade constrói na mesma, mas sinto tanto todas as construções.
Acho mesmo que esse texto é sobre sentir e entender, mas sem tempo que estou não consigo determinar.
Voltada que estou para o fazer docente, me atrevo entre palpites e reflexões a sonhar com um novo modo, muito pouco apaixonado e muito mais militante, cheio de obrigações e provocações que surgem frutos de uma história colonial e de exclusões, que matou, mutilou, calou, torturou e principalmente silenciou. Uma vez ainda ousei dizer de mim. Escolho textos, e reflexões para junto com os alunos aprender sobre a vida, ops! sobre a língua portuguesa. Em sala digo sempre, das minhas dores, da minha ancestralidade não remetendo apenas a questões de ordem religiosa, mas de vida, exemplos, conformações e alegrias. Permito que me toquem com suas perguntas, inquietações, sonhos e coragem, e então me acendo novamente. Faço isso sim, extraio dos meus alunos um pouco de suas energias transformadoras, e eu uma vez incendiada, ensino-lhes a resistir. Paulo Freire nos fala sobre isso de resistência, outros também, Bell Hooks lendo-o, acrescenta que é preciso transgredir para a liberdade.
Comecei o texto falando de como educação é importante para mim, quando na verdade gostaria mesmo de dizer que gosto de mudar as coisas. Uma das coisas que pela tradição dos meus antepassados eu gostaria de mudar é o peso da tradição escrita, em relação à tradição oral, e como discordo disso. Penso que escrever e registrar implica em manter a ordem das coisas: Ensino os alunos a escrever, (olha só a prepotência) e assim eles são inseridos na cultura letrada, o que significa que vão conhecer por meio dos registros escritos, que foram escolhidos para serem transmitidos dentro de uma ordem econômica e social, as regras e a cultura que devem ser mantidas.
É claro que temos registros de textos, literaturas e afins que são contra hegemônicos, que situam-se nas margens, e que trazem um pouco da dimensão da pluralidade social e intelectual, mas dentro das escolas, nas academias, nas mídias e na sociedade de modo geral esse segmento é resistência, exigindo um esforço de subordinação para a insubordinação. Imagino daqui, sem suporte de nenhuma teoria, que todos nós sabemos dizer do que sentimos, e na medida em que praticamos, tornamo-nos melhores nisso.
Já escrever, exige uma série de contratos, códigos e conhecimentos que vão muito além do sentir. Para dizer tudo o que se pensa é preciso adquirir plenamente o conhecimento sobre a língua, e mais do que isso para quem e o que se pensa, e quem pensa a partir de onde se pensa. Horrível isso, não?
Uma das coisas que aprendi é ter pudor.
Uma das coisas que a idade me deu foi pudor, uma outra foi: fios de cabelo brancos. Prefiro a segunda a primeira, embora ainda não minta que os acho um charme, mas a ideia de que refletem sabedoria me anima sobremaneira. Não confundam, ainda estou falando sobre os cabelos brancos.
Alguns incautos poderiam dizer apressadamente que o pudor também é fruto de sabedoria, nada sabem, tolos. Pudor é aceitação de que a sociedade, e suas regras, pesam em suas ações, e por isso mesmo são mais importantes do que suas vontades, ou qualquer coisa que pudesse te fazer feliz.
Me sinto feliz quando assisto vídeos de declamações de cordéis, batalhas de rap, apresentações de slam de resistência, palestras do TEDx e vejo como ensino meus alunos para a fragilidade, é quando sou mais triste. Toda a tecnologia dotando de muito poder o falar. Quanta força carrega a oralidade.
A escola não fez de mim uma conservadora, mas ainda assim sei que sou. Lembro episódios da minha vida: certa feita, sentada estava de pernas abertas e saia, foi me avisado que era preciso ter bons modos, pudor. Noutro momento os cabelos alvoraçados precisavam ser domados para a entrevista de emprego: pudor. Um batom vermelho nos grossos lábios seria muito estranho para cantar no coral da igreja, quem sabe um pouco de pudor, hein? Falar alto enquanto muitas mulheres apenas acenam com as cabeças em acordo ou desacordo pode parecer um pouco inadequado. O pudor em si não é uma violência, é uma recomendação para que você seja aceito com bons olhos, o que prefiro ler como submissão, então algumas vezes me submeto, mas muito mais para esticar a corda e ver onde arrebenta.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | jul 12, 2018 | Blog, Uncategorized
Sempre gostei muito do que escreve Clarice Lispector. Até aí nada de mais, afinal é uma grande escritora que trata das profundezas humanas de forma elegante e tão simples que muitos desavisados podem até pensar se tratar de autoajuda. Eu leitora advogo que ajuda, embora antes pertube, provoque e destrua um monte de certezas que existiam.
Um dos meus contos preferidos da escritora chama-se Felicidade Clandestina, que até deu nome a uma coletânea de contos da autora. O texto em questão trata de forma muito perspicaz da maldade humana, isso porque apresenta as lembranças da infância/adolescência da narradora, dotada de reflexões bem maduras e conscientes atribuídas ao tempo presente que é distinto do período narrado.
Bem, a maldade não é algo fascinante, mas perceber como se manifesta e as razões, são aprendizagens mais do que necessárias para a vida. E nesse sentido que retomo o conto de Clarice, para dizer do episódio jurídico envolvendo o descumprimento de uma determinação de um desembargador no último domingo. Para tal quero dizer do poder da literatura, muito mais do que jurídico.
A literatura permite apreciação artística, contudo mais do que a apreciação é importante o reconhecimento dos sentimentos, tipos e comportamentos humanos, talvez por isso mesmo enquanto professora sempre me recusei a usar textos como meros ilustrativos de gêneros, ou pior, recurso didático para aulas de gramática, e aqui não tenho competência para julgar quem assim faça, digo apenas que a literatura para mim, que bebi na fonte do professor Antônio Cândido, tem maior relevância.
Uma das coisas mais determinantes, mas do campo da linguagem é ter o controle da narrativa. Depois voltamos a isso.
Por agora, olhemos as situações que fogem das narrativas próprias do campo jurídico e percebemos que a regulação está na literatura, isso porque entre as funções da literatura está constituir fantasias, observar e formar aspectos culturais, e sociais. E é aí que reside a questão principal do imbróglio da soltura ou não do presidente Lula. Lendo:
“O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.” (Lispector,Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998)
Embora as personagens sejam mocinhas, adolescendo por assim dizer, vamos observar no texto que ao tempo em que uma dotada de inocência crédula no sentimento de justiça ou de relativa bondade, do outro lado tem uma jovem que crescendo em meio a livros, mimos, e privilégios escolhe exercer toda sua maldade, sua estupidez, e perversidade sobre o outro.
Até ler esse conto eu não conhecia a expressão tortura chinesa, até porque as torturas brasileiras que eu conhecia eram fruto de um regime ditatorial que não primava por requinte ou inteligência. A literatura tem essas maravilhas, porque sem ela poderíamos pensar que a violência é própria de pessoas com baixa instrução, ou mesmo pouca inteligência, o que não é verdade, e lendo esse conto para jovens, aliás, indicado para leitores em formação pela maioria dos livros didáticos, encontramos uma caracterização muito comum aos personagens deste tipo: quando se sente inalcançáveis pelos olhos dos outros, ou mesmo do poder elas se tornam menos cuidadosas e, porque não dizer: afoitas! Quando isso ocorre, elas se dão a conhecer no seu mais íntimo e secreto perfil.
No conto de Clarice ao final descobre-se que o exercício da tortura cotidiana não teria outra razão do que alimentar a sanha diabólica e obsessiva do opressor sobre o oprimido, e quando a mãe descobre o caráter doentio da filha, essa a reprime e encerra a tortura.
No caso em questão, já foram feitas muitas reprimendas: falta de provas, descoberta de que não existiram reformas, notas fiscais falsas e a incapacidade da operação em julgar ou condenar envolvidos em atos de corrupção de outros partidos, mesmo quando sobram provas. Parece que tudo isso ganha força de uma mãe complacente. Os efeitos colaterais disso é que embora não tenha força para soltar Lula, deu-lhe novo fôlego, e permitiu-lhe ver o pulsar da esperança popular, ademais mostra para as pessoas quão doentes é o lado de quem o quer preso.
E assim mesmo preso, a verdade aparece e Lula assume o controle da narrativa: Agora é impossível não ver que não há imparcialidade. A liberdade é um desejo ainda não alcançado, mas parafraseando a menina do conto:
“Meu peito estava quente, meu coração pensativo.”
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