por João Wanderley Geraldi | nov 24, 2018 | Uncategorized
Este seria o romance de rompimento de André Gide com o simbolismo, cujas posições são trazidas para dentro do texto, no jogo entre narrativa e metanarrativa que o compõem, nesta montagem original de narrativas paralelas que são entrelaçadas pela personagem Edouard, explicitamente assumido como o “autor” do romance e seu narrador. O efeito deste jogo, em que a história elaborada é extremamente complexa, tem seu fio aparentemente suspenso para a inclusão dos “diários de Edouard”, em que aparece a reflexão tanto sobre o que acontece na narrativa quanto sobre as “personas” envolvidas, mas também toda a reflexão a propósito do romance e do escrever romances, onde dialoga com as concepções literárias de diferentes épocas da História, que aparecem ora por referência a personagens, ora a seus autores. [Na edição que manuseio, a tradução Celina Portocarrero, em notas de rodapé faz as indicações que permitiriam ao leitor ir busca das obras que são referidas.]
Há, pois, uma história, um enredo construído, um mundo ficcional por onde circulam pessoas, onde existem instituições, onde as coisas ‘acontecem’; mas o desenrolar da narrativa é frequentemente suspenso, aparecendo o seu “escritor-narrador” que confessadamente diz deixar as coisas fluírem, num romance sem plano prévio, sem fim definido antecipadamente. Ou seja, um “escritor” que não é um marionetista puxando fios para ter um enredo ‘comportado’.
“Os livros que escrevi até agora me parecem comparáveis àqueles laginhos dos jardins públicos, de contornos precisos, perfeitos talvez, mas nos quais a água cativa é inanimada. Agora, quero deixa-la escoar-se livremente, ora rápida, ora lenta, por meandros que me recuso a prever.
X … sustenta que o bom romancista deve, antes de começar seu livro, saber como esse livro terminará. Quanto a mim, que deixo o meu seguir ao acaso, considero que a vida nunca nos propõe nada que, tanto quanto um final, não possa ser considerado como um novo ponto de partida.”
Nesta breve passagem, o diário de Edouard aponta primeiro para o rompimento com seus livros anteriores, depois para o modo de construção deste que está escrevendo, cujo título retira de uma notícia: a existência de um grupo de garotos que estavam passando moedas falsas.
Consideremos um pouco o enredo da narrativa, tomando os diferentes “núcleos” de personagens: 1) a família de Pauline, meia-irmã do ‘autor’ Edouard, constituída pelo marido Molinier, juiz presidente do Tribunal e os filhos: Vincent, Olivier e Georges; 2) da família do juiz de instrução Profitendieu, interessa somente Bernard, o filho bastardo ; 3) o núcleo em torno do Conde Robert de Passavant, escritor e autor de A Barra Fixa [neste título, é evidente o contraponto com a posição defendida por Edouard, como mostra a citação acima] e que será uma espécie de êmulo ou o contrário do “autor”, com o qual compartilha a homossexualidade; 4) um núcleo mais secundário, do pensionato das famílias Azaïs/Vedel cuja relevância para o romance tem a ver com o fato de no pensionato se encontrarem os rapazes que verdadeiramente contam na história e por Armand Vedel; 5) Strouvilhou, do esquema das moedas falsas, cuja presença no enredo somente tem importância por reunir em torno de si os menores do mesmo pensionato que se tornam seus agentes para passarem as moedas falsas. Todos estes núcleos, suas ‘personas’ mantêm relações de proximidade com Edouard, o escritor e personagem central da história.
O enredo é cheio de idas e voltas, com viagens, com aparecimento e desaparecimento de personagens. Um resumo é sempre insatisfatório, para qualquer narrativa. Imagine-se para Os Moedeiros Falsos. De qualquer forma, apenas para auxílio da memória, retomo em traços este enredo.
Bernard Profitendieu descobre que é filho bastardo (acha cartas escondidas trocadas por sua mãe e seu amante) e sai de casa. Hospeda-se na primeira noite no quarto do amigo: Olivier Molinier (dormem juntos na mesma cama). Este lhe fala que no dia seguinte vai esperar seu tio Edouard na estação. Bernard, sem ter o que fazer, escondido, acompanha o encontro. Como Edouard é apaixonado por Olivier (e é correspondido pelo sobrinho), fica emocionado com o encontro e distraidamente joga fora o comprovante do depósito de sua bagagem. Bernard pega este comprovante e à tarde, depois da troca do funcionário, retira a maleta com todos pertences trazidos por Edouard. Usa o dinheiro, mas planeja uma forma de entregar a maleta ao seu dono e com isso aproximar-se do escritor. Isso acontece, e Bernard se torna seu secretário. Noutro espaço, Vicent (irmão de Olivier, que vive no entorno do Conde de Passavant) abandonara sua amante Laura (que era grande amiga de Edouard), já grávida. Foi para encontrar Laura que Edouard viera a Paris. Decide levar a amiga e seu recém secretário, nas férias de verão, para a Suíça, para onde vai a pedido de seu velho professor de piano que tinha um seguro em favor de seu neto Boris que vivia na cidade suíça. Hospedam-se no mesmo hotel onde se encontra Boris em tratamento acompanhado por uma médica polonesa com sua Borja. Esta presença permite a discussão do método psicanalítico usado no tratamento de Boris… Mas no mesmo hotel estivera e saíra há poucos dias Strouvilhou, que passara uma moeda falsa no comércio que Bernard acaba comprando. Fato aparentemente banal, cujo sentido somente ficará claro bem mais tarde quando Strouvilhou forma sua “quadrilha” de “moedeiros falsos”, entre os quais estará Georges, o sobrinho mais novo de Edouard.
Por outro lado, Olivier se aproxima do Conde Robert de Passavant, levado por Vincent que entrega o irmão ao escritor em troca dos favores que lhe prestara este: dinheiro para jogar; apresentação a sua futura amante, indicação ao Príncipe de Mônaco para se tornar um de seus cientistas… Vicent depois disso desaparece de enredo e só se toma notícia do fato de que está louco numa cidade africana, depois da morte da amante. Olivier é convidado para ser diretor de uma revista avant-garde que Passavant financiaria. A convite deste e com insistência de Vincent para que os pais permitissem, Olivier vai em férias de verão com Passavant. Mas tem ciúmes pelo fato de Bernard estar com Edouard. Duplica-se nos amores a contraposição entre os dois escritores. Para Edouard, Passavant é apenas um “artista” na aparência, medíocre, escrevendo romances ao gosto do público, mas este aparentemente ganha Olivier (ambos escritores são homossexuais).
Tudo voltará aos eixos quando, numa espécie de pré-lançamento da revista, Olivier se embebeda, é retirado do ambiente por Edouard e levado para sua casa: então o romance entre ambos tem seu começo. Despeitado, Passavant faz de conta que queria isso mesmo, convida Armand para dirigir a revista cujo primeiro número iria publicar arte avançada, incluindo a Mona Lisa de bigodes (uma remessa a Duchamp).
Tudo pareceria terminar em idílio, mas há também a presença do trágico. Boris, o neto do velho professor, foi trazido para Paris e ficou no pensionato da família Azaïs/Vedel. Tomou conhecimento no pensionato da morte de Barja, seu amor idílico. No pensionato estava o grupo dos trocadores de moedas falsas que, alertados que estavam sendo investigados, abandonam esta aventura e passam para outra, a criação de uma Confraria dos Homens Fortes. Armam uma prova para Boris que sonhava em ter algum afeto e entrar para a Confraria. Deveria ele usar a pistola (roubada de seu avô) num determinado lugar, em determinado horário dos estudos. Os outros membros do grupo (Georges e Phiphi) não sabiam que a arma estava carregada, mas o líder do grupo (Ghéridanisol) sabia e pouco se importava. No momento preciso e seguindo o ensaio, Boris acaba por se matar sem saber que estava fazendo isso. É o toque trágico do romance.
A liberdade com que agem os “atores”, o entrecruzamento de suas vidas no mundo do romance, suas falas próprias, tudo me fez recordar a análise bakhtiniana do romance polifônico de Dostoiévski. Certamente Gide, com este romance “sem plano prévio” ao menos do ponto de vista do que defende explicitamente na voz de Edouard, configura um outro tipo de romance com características polifônicas no sentido que lhe Balhtin (Problemas de Poética de Dostoievski).
Mas o enredo todo, que obviamente enreda o leitor, tem valor pelas reflexões que vão acontecendo no desenrolar dos fatos. E nas reflexões de Edouard em seu diário – este representa a metanarrativa: nele se discute a narrativa e a forma de narrar! É deste Diário que retiro algumas passagens, não só pelos temas, mas também pela forma de dizer que merecem registro.
“Chega o dia em que o se verdadeiro reaparece, de cujas roupas emprestadas o tempo lentamente despe… “ (p. 63)
“Nunca sou senão aquilo que acredito ser – e isso varia sem cessar, de modo que, frequentemente, se eu não estivesse aqui para aproximá-los, meu ser da manhã não reconheceria o da tarde.” (p.63)
“Despojar o romance de todos os elementos que não pertençam especificamente ao romance. Assim como a fotografia, recentemente, livrou a pintura da preocupação com certas exatidões, o fonógrafo certamente desembaraçará amanhã o romance de seus diálogos narrativos, dos quais o realista frequentemente se vangloria. Os acontecimentos exteriores, os acidentes, os traumatismos pertencem ao cinema; é preciso que o romance lhos ceda. Mesmo a descrição dos personagens não me parece pertencer convenientemente ao gênero. Sim, realmente, não me parece que o romance puro (e em arte, como em tudo, só a pureza me interessa) deva se ocupar dela. Não mais do que o drama. E que não me venham dizer que o dramaturgo não descreve seus personagens porque o espectador é levado a vê-los representados vivos no palco, pois quantas vezes não nos sentimos perturbados, no teatro, pelo ator, e sofremos por este se parecer tão pouco com aquele do qual, sem ele, tínhamos uma ideia tão clara. – O romancista, em geral, não dá suficiente crédito à imaginação do leitor.” (p.66)
“Muitas coisas escapam à razão, e aquele que, pra compreender a vida, aplica unicamente a razão, é como alguém que procurasse segurar uma chama com pinças.” (p. 159)
Nos diálogos dos acontecimentos narrativos, há passagens antológicas:
“Se pudéssemos recobrar a intransigência da juventude, o que mais nos indignaria seria aquilo em que nos transformamos.” (p. 148)
“… nos preocupamos tanto em parecer algo que acabamos por não mais saber quem somos…” (p. 179)
“Posso duvidar da realidade de tudo, mas não da realidade de minha dúvida.” (p. 174)
“Prefiro concordar de boa vontade com o que sei que não poderia impedir” (na voz de Pauline, a meio-irmã que se submete sempre) (p. 277)
“… as palavras sé envelhecem quando impressas!” (p. 133)
“Veja, a grande fraqueza da escola simbolista é de só ter trazido uma estética. Todas as grandes escolas trouxeram, com um novo estilo, uma nova ética, um novo caderno de encargos, novas tábuas, uma maneira nova de ver, de compreender o amor e de se comportar na vida. O simbolista, esse é bem simples: ele não se comportava diante da vida, não procurava compreendê-la, ele a negava, dava-lhe as costas. Era absurdo, não acha? Eram gente sem apetite, e até mesmo sem gula.” (p. 125)
Por fim, na edição que manuseio, a apresentação de Ubiratan Machado aproxima partes do romance à biografia do autor. Dá-lhe também um certo “tom confessional”, particularmente por causa das relações amorosas homossexuais. Segundo o crítico, “Em 1927, [Gide] resolve, afinal, publicar Se o Grão não morre… Nesta autobiografia analítica demonstra de forma eloquente o sentido de sua permanente disponibilidade, a atração contraditória pelo puritanismo e o imoralismo, a exaltação do homossexualismo e a velha aspiração a um evangelismo sem dogmas”.
Se há correlações com a biografia do autor, pouco importa: este romance já clássico é, talvez, um dos melhores exemplos de elaboração de uma narrativa acompanhada de sua metanarrativa.
Referência. André Gide. Os moedeiros falsos. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1983 (o original é de 1925).
por João Wanderley Geraldi | nov 17, 2018 | Uncategorized
Esta novela do escritor russo retoma o tema eterno do amor. E neste caso, do arrebatamento do primeiro amor, aquele que se sofre querendo sofrer e sendo doce sofrer. Pela capacidade do autor em desvendar este tempo vivido normalmente no fim da adolescência e no começo da juventude, penetrando no fundo do coração do jovem Vladimir Petróvitch.
A narrativa é introduzida por um pequeno texto em que se dá notícia do fim de um serão familiar: o dono da casa, um convidado e Vladimir. A proposta é que cada um conte, neste fim de noite, o seu primeiro amor. O primeiro a narrar diz que não teve primeiro amor, mas começou direto pelo segundo pois cortejou sua amada como se já tivesse experiência… o dono da casa apenas diz que nada tem de especial a narrar. Vladimir, por seu turno, diz que seu primeiro amor nada tem de comum, mas que não é bom narrador. Promete escrever e ler suas história…
Começa então a narrativa, em primeira pessoa. A datcha era composta por uma casa senhorial, com duas pequenas alas, à esquerda ficava uma pequena fábrica de papel de parede barato; à direita, ainda vazia, foi logo alugada por um nobre falida, a princesa Zassekina. E, obviamente, este princesa tinha uma filha linda, encantadora, brincalhona, de olhos penetrantes: Zinaída.
Desde que a vê no jardim fica tomado, apaixonado. Teve a oportunidade de se aproximar porque sua mãe, embora considerasse que a família da princesa não fosse gente comme il faut, sentiu-se na obrigação de convidar para um almoço. Quem foi transmitir o convite foi Vladimir. E desde então torna-se frequentador assíduo do salão pobre da princesa, onde se dá o “reinado de Zinaída” sobre seus jovens pretendentes… grupo de que agora começa a fazer parte. O ingrediente é importante para o enredo, porque ao mesmo tempo que o jovem apaixonado é recebido por aquela que é objeto de seu amor, também encontra os concorrentes a quem tem que temer…
As brincadeiras, as noites no salão, os tempos taciturnos dos ciúmes e das incertezas vão preenchendo o enredo. Um resumo, mesmo trazendo pequenos detalhes, é injusto. Somente lendo a novela. Mas a leitura também nos informa sobre como se divertiam os jovens da pequena nobreza no século XVIII/XIX, mesmo quando falida; como os passeios pelos jardins (no caso, o jardim Nieskútchni), as cavalgadas durante o dia. Na verdade, cria-se uma ‘rotina’ na vida do jovem que abandona os estudos e os livros, pois se preparava para o ingresso na universidade.
Dentro deste enredo, há a salientar a família em que vivia: filho de pais cujo casamento fora arranjado por questões econômicas, tinha como modelo um casal de vida quase separada, e fica-se sabendo por entrelinhas que o pai sempre teve amantes… A relação entre o pai e o filho é extremamente fria, cuja mais longa descrição aparece nesta passagem, precisamente um momento de rememoração em que o narrador não mais conta o que está acontecendo, mas reflete sobre suas personagens:
Estranha influência tinha meu pai sobre mim, e estranhas eram as nossas relações. Ele quase não se preocupava com minha educação, mas nunca me ofendia. Ele respeitava a minha liberdade e era até – se posso me expressar assim – cortês comigo… No entanto, não permitia que eu me aproximasse dele. Eu o amava, eu o admirava, ele me parecia um modelo de homem – e, Deus meu, com que paixão eu me ligaria a ele, se não sentisse constantemente a sua mão, que me afastava. Em compensação, quando queria, ele sabia, quase num instante, com uma palavra, um gesto, despertar em mim uma confiança ilimitada. Minha alma se abria – eu tagarelava com ele como com um amigo sensato, um conselheiro condescendente… Depois ele me abandonava do mesmo modo repentino – e sua mão me afastava de novo; carinhosa e suave, mas me afastava. (p. 40)
Na sequência desta rememoração analítica, aparecem alguns ensinamentos paternos: “Pegue sozinho o que você puder, mas não se entregue em outras mãos; pertencer a si mesmo – aí está o truque da vida”. Sobre a liberdade, diz que ela nos pode dar: “A vontade, vontade própria, e poder, que é o melhor do que a liberdade. Se você souber querer, será livre e poderá comandar”.
Enquanto isso, os jogos de salão persistiam; os tempos de recolhimento taciturno também; as noites mal dormidas e os sonhos com a amada. Numa destas noites, sem conciliar o sono, Vladimir vai para o jardim da casa e vê um movimento na parte do jardim que cabia à princesa. E o que vê é Zanaída caminhando apressada; logo após um vulto encoberto, que não sabe quem seja, lhe segue… Eis confirmado o triângulo amoroso: o apaixonado sem chances; a mulher (que é bem valha que ele) e um outro!
E a este outro misterioso que Zanaída entregou seu coração… e isso começa a se tornar evidente para todos os seus pretendentes nos jogos do salão, no reino de Zanaída: a princesa começa a não aparecer, a dizer-se doente, etc.
Num de seus passeios mais longos, a pé, Vladimir primeiro ouve, depois vê, escondido, que passeiam a cavalo sua amada e seu pai. Coincidência? Um encontro fortuito? Redobra-se o sofrimento: ciúmes do pai? Haveria algo entre eles.
Ao final do enredo, já saídos da datcha, Vladimir já na universidade, tudo fica claro: fazem pai e filho um passeio a cavalo, mas de repente o pai desce, entrega-lhe o animal e pede-he que o espere junto a um estoque de madeiras. Demorando muito, Vladimir entra pela pequena rua por onde fora seu pai, e o vê à janela de uma casa conversando com uma mulher. Reconhece Zanaída, e mais: em certo momento o pai se irrita, toma o chicote e bate em Zanaída! Depois disso, entra na casa, demora-se e volta sem o chicote…
Descobre então o filho não só a quem efetivamente amava Zanaída, mas também a relação sadomasoquista que havia entre seu pai e sua paixão de juventude, paixão já apaziguada a estas alturas do enredo.
Há aqui, neste primeiro amor assim narrado, duas questões sobrepostas: aquela da paixão juvenil e aquela da morte do pai como forma de liberdade. Lembremos, Vadimir amava o pai; mas Vladimir também amava Zanaída. Os dois amores morrem juntos. Eis o dramático da novela.
Do ponto de vista formal, há também algo muito interessante. Como o narrador enuncia num tempo presente fatos de um passado, narrativa provocada pelo serão em que leu sua história, ao longo do narrado aparecem suspensões do tempo do narrado para aparecer o tempo da enunciação. Tomemos apenas um exemplo. Ele vinha comentando sua adoração por Zanaída, e abre o parágrafo seguinte com
Ó, tímidos sentimentos, ó, doces sons, bo0ndade e tranquilidade da alma comovida, alegria evanescente das primeiras emoções do enternecido amor… Onde estais, onde estais?
Referência. Ivan Turguêniev. Primeiro amor. Tradução de Tatiana Belinky. -Porto Alegre : L&PM, 2008.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | out 25, 2018 | Blog, Uncategorized
O texto de hoje podia ser um texto sobre muitas coisas, na verdade é um texto sobre muitas coisas. É sobre desilusão e ilusão. Não quero falar algo sobre o que já foi dito repetidamente: que as pessoas estão fingindo não entender a gravidade do momento e que isso implica na morte de outras pessoas, a minha e de minha família.
O momento político que atravessamos não permite profundas reflexões uma vez que o tempo é escasso. Não há tempo de retomar a sensibilidade dos insensíveis, sei disso porque há muito tenho tentado. Já falei algumas vezes sobre a limpeza étnica da juventude, sobre a morte de mulheres, sobre a intolerância das diversas manifestações de fé, sobre a marginalização do diferente, sobre a cultura do indivíduo se sobrepor ao coletivo.
Talvez o rapper Mano Brown esteja certo e tenhamos perdido nossa capacidade de dialogar com as pessoas simples, mesmo sendo uma delas: Eu, mulher, negra, periférica, pobre. Assisto assustada essa declaração de que as pessoas não entendem oque significa a morte, a tortura, a limpeza, a mudança da lei, a prisão, a ponta da praia. Enfim compreendo que a verdade é que há muito tempo pobres e miseráveis gritam cotidianamente para pedir socorro, e suas vozes também não nos alcançam. É tudo mais do mesmo, perdemos a nossa capacidade de sentir a dor alheia, de nos importar com futuro do outro, uns mais e outros menos.
Ainda acredito que as pessoas sobretudo as mais simples serão mais responsáveis e reconduzirão a democracia ao seu posto, minha crença é na dor: das mães que já perderam seus filhos, dos pais que já tiveram suas filhas violentadas, espacadas, diminuídas e mortas, das mulheres impedidas sonhar, oprimidas, caladas, dos jovens marginalizados sem estudo e emprego, das avós que cuidam dos seus netos com seus terços e rosários desfiados diuturnamente para que voltem para casa a salvo dos riscos e eugenistas, dos pastores e padres que vem nos olhos de seus irmãos e filhos a fome, a morte.
Falar com essas pessoas é antes de tudo ouvir, saber de seus prantos, suas amarguras, seus sonhos desfeitos, cada ruga cada olheira, cada calo, cada silenciamento. Não é possível falar de amor sem antes ter amado, tocar essas pessoas.Como querer que nossa dor e medo fossem maiores do que a dor e o medo dessas pessoas.
O medo simples de não ter o que comer amanhã, da incerteza de ver o filho gay voltar vivo para casa, de perder o ônibus e ser estuprada nas ruas escuras, de morrer de bala perdida ou mesmo de bala encontrada nas emboscadas, de não ter atendimento médico decente a tempo salvar a vida de seu ente querido, de não ter a escola para o seu filho, de se machucar e não poder trabalhar, e voltar para casa sem o dinheiro do gás, o brinquedo nos dias das crianças, ter negada a dignidade de dar um rolezinho no shopping, ter sua casa invadida por assaltantes, ter seus bens subtraídos e a vida posta em risco, ou ainda dos que querem a terra para plantar, a água para beber, casa para morar, filhos para educar e não ter.
Quem falou a língua deste povo alcançando os seus corações, sabedor de suas dores porque já as experienciou, está preso. Todos sabem o porquê e fingimos que não, que são outros os motivos. Enterram noticias odiosas todos os dias, ainda assim as pessoas sonham. Porque a linguagem particular, esse dialeto não aceita ruídos externos.
E da boca do impostor saem às verdades que os insensíveis querem ouvir: que nós os vermelhos somos vagabundos, marginais, que devemos ser banidos. É preciso garantir prisão, morte, terror, tortura, chicote, aos que ousarem alimentar os famintos, proteger os vulneráveis, abraçar os desvalidos, caminhar entre os seus.
O povo brasileiro é realmente maravilhoso, e generoso. Nossa derrota não chegará, estaremos firmes e fortes, resistentes como sempre.
O texto é curtinho porque é um texto complementar, o principal é que desejo uma boa eleição para todos nós e não deixe de acreditar, lembrem-se que cada voto precisa ser conquistado, mas antes disso as pessoas precisam ser tocadas por nós, sabe aquele vizinho amargo, sabe aquela parente que foi assaltada, sabe aquele tio que vira a cara para sua filha gay, sabe aquele religioso que sempre quis te levar pra igreja, sabe aquela mulher solitária que ninguém da família visita, sabe aquele homem que está sempre alcoolizado depois que perdeu o emprego, esses e tantos outros, todos carregam dores próprias, ninguém tem que priorizar as nossas dores, conversemos e peçamos os votos pensando nas dores que eles carregam em suas vidas. É preciso mesmo escutar.
Ouvir e estar entre as gentes. Eu espero ter dialogado com quem me permite entrar minimamente na sua vida, e por isso peço voto em quem voto: Haddad13!
#Lulalivre
por Mara Emília Gomes Gonçalves | out 11, 2018 | Blog, Uncategorized
Não perdi a vontade de escrever.
Quero, e preciso dizer, enquanto posso que tenho em mim todas as cores do mundo, e por minhas palavras falam pessoas várias. Umas precisam mais do que outras das minhas escrituras, embora nenhuma delas me leia ou sequer saibam da minha existência, e não é por isso que escrevo.
Escrever para registrar que teremos muito para ser desconstruído e construído, porque o caos já está entre nós, e Lula não. Esse texto é sobre o momento que a gente vive. Poderia ser sobre qualquer assunto, afinal, dada à conjuntura, todos os assuntos convergem para o mesmo.
O assunto não é o medo, poderia, porque vivemos acompanhados deste sentimento que há anos tem sido alimentado: – é preciso ter medo – sussura o fascismo. O medo geralmente nos imobiliza, eu que lido com crianças já vi muito isso, um grito, um soco na mesa, violência então aterroriza. Quando percebemos já estamos andando cabisbaixos, buscando andar sempre com roupas neutras, com aparência limpinha, “esbranquiçada” até.
Existem homens que não. Lula é um desses homens.
Não bastou prendê-lo, é preciso calá-lo. Sem imagens que alimentem nossa esperança. Apenas a nossa saudade, de ouvi-lo dizendo que venceremos no final porque o amor é maior, porque ele confia no nosso povo. Quero dizer que tenho saudades do Lula. Não do que construíram na mídia, mas do que passeia em meio ao seu povo, que emerge do seio de sua gente, que abraça mulheres e homens demoradamente, do que acolhe crianças, do que sonha um país melhor sem falar de morte, sem pregar o ódio, do que sabe a ordem das coisas pela sua experiência de vida.
Aconteça o que acontecer: tenho saudade do Lula.
Alguém que ousou sonhar jovens negros na universidade, destemidos, empoderados. Afastando o pesadelo de meninas do nordeste, de trajetória certa que seria servidão, como empregadas ou semi-escravas destinadas a servir de todas as formas aos patrões e patrõezinhos.
É sobre saudade, mas é sobre tristeza também, antes digo que só reconhecemos que ela chegou porque em algum outro momento a gente foi diferente, talvez feliz seja um adjetivo muito forte, mas quero usá-lo antes que seja tarde demais. Lembrar que a gente, nossa gente, era um povo diferente que se orgulhava de comemorar, de ser muitos, de rir de si, de ter respeito e tolerância, ser amigo, comer uma carninha com o vizinho que nem torce pro mesmo time que o seu. E estava tudo certo.
Algumas coisas aconteceram e a gente deixou de ser aquele povo
E esse novo é que me assusta, mas não me calará. Um novo tão velho que a gente até se esquece de quão triste é esse período que pretendem retomar. Alguns esquecem, outros desconhecem sem empatia pelas dores alheias, mas eles existiram e eles não deixarão de existir se a gente fingir que não vê.
A tristeza revela-se em lágrimas e choros, muitos amigos começam a se preocupar com o futuro, não de um jeito que sempre fez: organizar reservinhas de dinheiro, comprar passagens, esperar a restituição do imposto, torcer para entrar uma graninha extra que possibilite uma agradinho para si no final do mês. As preocupações agora são outras, miram na intolerância, no racismo, assassinatos, espancamentos, vandalismos, atos de violência.
A violência se espalha rapidamente e ganha espaços em ambientes antes hostis a essas práticas, universidades recebem pichações, pessoas sofrem agressões como se dissessem:
– É preciso dar um basta, é hora voltar a ter exclusividade e acessos restritos.
Lembro-me de um filme chamado A Outra História Americana. No filme tem uma passagem em que o protagonista se revela fascista aos olhos do irmão mais novo, ele explica que estava defendendo as condições empregatícias e salariais dos seus iguais (homens brancos). Dada à juventude de seu irmão ele entende aquilo como possível, e faz todo sentido a sua compreensão limitada afinal a crise estava instalada e era preciso assegurar o bem-estar primeiro aos seus, como fazê-lo? Matando ou enviando para seus países ticanos, latinos e negros. Esses grupos extremistas vão avançando e dando um sentimento de grupo, e pertencimento de algo maior oque para quem não tem nada é fascinante. Imaginem: participar de algo grande. Até que o protagonista mata um homem negro, por espancamento. Um filme que vale a pena ser assistido e recomendado para as pessoas que quer apenas se proteger.
A tristeza é pela cegueira, e pela saudade. Em breve resolveremos as duas coisas, diria uma das minhas vozes que esta presa.
-Pelo povo, por nossa alegria, por nosso jeito, pela vida. Venceremos todos!
por Mara Emília Gomes Gonçalves | set 21, 2018 | Blog, Uncategorized
Na semana passada, em meu último texto, toquei em um assunto bastante inquietante: a prisão da advogada Valéria Lúcia dos Santos no exercício de suas atividades profissionais. Retorno ao caso apenas de passagem para ativar os conhecimentos adquiridos previamente, ele será meu álibi contra vocês que me leem. É assim que quero elucidar minhas impressões.
Antes falarei sobre desprezo.
A maioria de nós conhece o desprezo, o que não significa que por conhecer, tendo sido em experiências como autor, vítima ou os dois, que sejamos empáticos aos desprezados, ou mesmo humanamente solidários aos que são assim tratados. Exemplos vários permeiam a nossa literatura, medicina, história, artes, e enfim todos campos de existência, conhecimento e manifestações das pessoas.
Todas as pessoas que leram o texto a qual me refiro, e segundo as estatísticas do site foram muitas, nenhuma se mostrou em choque com o ocorrido. Percebem? Engana-se quem pensa que o choro é livre, nem o Lula é. Esse não é ainda o ponto que falo sobre desprezo, e tampouco hoje será necessário falar sobre a etimologia da palavra em questão.
Nessa semana duas falas de extremado desprezo pela sociedade brasileira circularam os noticiários, e, o pior, oriundas de uma boca que postula ocupar o cargo de líder, ou vice, que em tempos de golpe e autogolpe significam a mesma coisa para a nação. Vamos a elas: Não é preciso de povo, ou de representantes do povo para fazer uma Constituinte – aqui já estaria de bom tamanho, mas acrescentou-se ao despropósito (com propósito) a assertiva de que mulheres pobres, mães e avós, são fornecedoras de mão de obra – ainda infantil, para o tráfico.
Teminaria o texto aqui.
Para frente seriam muitas exclamações, registrando o tamanho do estupefamento. Não é possível. Eis que me rebelo e escreverei ainda, pois nem só de memes o homem, e no meu caso a mulher, viverá.
Verdade que as expressões de desprezo soam até pequenas se pensarmos que a sociedade tem aceitado coisas muito piores: tatuar na testa de uma pessoa que é ladrão e vacilão, que um torturador que se ocupava da cadeira do dragão(https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-era-uma-sessao-de-tortura-na-cadeira-de-dragao/) seja homenageado, que mulheres morram todos os dias vítimas de violência domestica e sexual, que pessoas que fogem à heteronormatividade sejam tomadas por doentes e que devam ser espancadas até a morte, que a juventude negra seja vítima de extermínio em massa, que uma vereadora do Rio de Janeiro seja assassinada e que nada seja investigado de verdade, que um rapaz negro seja preso por portar um detergente, que um menino, Marcos Vinicius, seja morto trajando uniforme enquanto volta da escola, que 10 crianças infratoras morram em poder do estado, e poderia elencar vários outros fatos aqui.
Tem um caso especifico que desejo destacar: um jovem negro amarrado ao poste. Barbárie. Linchamento. Imperdoável desumanização. Ouço ainda a voz de uma porta-voz da mídia: – Tá com pena? Leva para casa.
Chego ao ponto que quero da questão.
Muitos serão os responsáveis pela barbárie que se aproxima: Prisões injustas, condenações sem provas, fissuras e rasgos nas Carta Magna, ou Constituição Cidadã. Todos os feitores dessa nova ordem: o caos. Terão seu lugar ao Sol, e podem bater no peito e rufar os tambores e trombetas anunciando o novo tempo. Ainda é cedo para pularem de galho, os mais afoitos temem por suas próprias feridas: PSDB, Sherazade, FHC após inflarem as pessoas menos afeitas as reflexões, invocando a moral e os bons costumes contra o petismo, o socialismo e a ameaça venezuelana, mesclando questões de ordem individuais e liberdade com opiniões e fanatismos religiosos, e vendendo demônios vermelhos ao prazer dos mercados internacionais do petróleo.
– Feminazis, abortistas, desgraçadas, putas. Ninguém fez nada. Subiram o tom: – Gayzistas, pornográficos, destruidores da família e do casamento, surra e homofobia. Tom ainda mais alto: – terrorista, comunista, vagabunda, estupro nas bombas de gasolina, só não te estupro, porque você não merece. E absurdamente desumano: vagabundos, sem terras, quilombolas preguiçosos, índios não têm que ter terra, chacinas nas tribos e periferias, esses negros tão de mimimi, cotas não! Meritocracia! E não tem limite.
Até que falam de mim, mas esse mim é diferente. Esse mim é bem-nascido, pensava-se. Um mim que vociferava nas câmeras:
– Tá com dozinha? Leva para casa! Direitos humanos é para humanos direitos!
Bastou! A ela garantimos sororidade. Daremos audiência porque a sua dor, e só a sua, importa. Seu constrangimento é significativo, simbólico. E todos nós embarcamos na indignação da mulher branca que se vê criando seu filho e tendo sido criada sozinha pela mãe, sendo chamada de desajustada. O problema não é de interpretação de texto, certamente. Não me pareceu real, afinal, o destino da ofensa tem endereço certo: pobres que moram em lugares carentes. Pobres, como aquele jovem que fora amarrado ao poste. Não você! Não uma pessoa que sequer já foi barrada na porta giratória do banco. Não! Essa fagulha de bom-senso diante da barbárie.
A questão é que os direitos não são para todos. Em breve serão para poucos. Em meio a um ambiente de carência e abandono, em que sequer mães e avós são respeitadas no exercício de suas atividades e na luta cotidiana de constituir e cuidar de uma família monoparental, desamparadas por leis e justiça alicerçadas em regras e condutas patriarcais, realmente as coisas tendem a barbárie.
Cheguei ao ponto, mas não está posto ainda o que quero dizer. É como a lembrança do sangue da carne do churrasco de outrora, cada tempo um ponto e cada corte um sabor novo. Até que não tem mais sangue e o que resta é sabor amargo.
Basta pensar que vivemos o impensável: um mundo de absurdos em que propostas de assassinatos e extermínios se tornam justificáveis pela simplória manutenção dos bens materiais, e votos.
Ao ouvir a barbaridade saída da boca do político que nega a política, militar – que nega a soberania do país, – ficamos perplexos pela falta de sensibilidade. Uns ficarão estarrecidos apenas aparentemente.
A questão não é o anuncio da tragédia, mas o desprezo pela humanidade. Entendem? Sabedores que são da realidade de meninos e meninas moradoras de periferia, sem a presença paterna, criados por mãe e avó trabalhadoras, quantas mães, quantas tias, quantas avós, quantas amigas, quantas jovens e outras tantas poderiam apresentam esse histórico, e de resultado diverso ao esperado, mas é claro que existem vários casos de tragédias recortadas pelas drogas, muitas vezes pela falta de segurança, oportunidade, profissionalização, identidade, investimento em educação integral, saúde, moradia, dignidade e afeto. Faltas que um político deve conhecer para intervir. É preciso mesmo sensibilidade.
Quando, seu moço
Nasceu meu rebento
Não era o momento
Dele rebentar
Já foi nascendo
Com cara de fome
E eu não tinha nem nome
Prá lhe dar
Como fui levando
Não sei lhe explicar
Fui assim levando
Ele a me levar
E na sua meninice
Ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Vou invocar na voz de Elza Soares, a canção de Chico Buarque, Meu Guri para falar do desprezo da fala que é dada por incapacidade das pessoas em enxergar aqueles que pouco ou nada tem(ver nesse link https://www.youtube.com/watch?v=K-sepKbQv_k) Aos desavisados podem achar que a letra cantada aborda a marginalização da favela, e suas crianças, majoritariamente pretas e pobres, na mesma perspectiva: pobreza e meio somados são um gatilho para a criminalidade, acrescenta-se a isso uma ausência paterna e pronto: temos os meninos do tráfico! Acalmem-se e não me deixem a sós, tampouco deite fora o texto ainda, o fundo do poço se aproxima.
Essa música é uma obra-prima, apresenta uma realidade chocante de falta de oportunidades, de igualdade, de identidade, tudo isso escorado num muro alto de invisibilidade por parte da sociedade. O artista tem essa capacidade de denunciar em sua arte, questões que são invisíveis são descortinadas, sensível às dores das mães, negras e pobres, invariavelmente: Eu consolo ele, ele me consola, boto ele no colo pra ele me ninar. É tudo que a mãe trabalhadora tem para oferecer, seu colo, seu consolo. As mães, as vós, e os filhos que me circundam vivem o cotidiano de invisibilidade. Ainda assim escolhemos ouvir a dor falsa de uma mãe branca que sequer foi atingida pela fala muito clara, como a sua pele. As outras continuam silenciadas por trajetórias desumanizadas, suas jornadas esticadas, penduradas em ajudas e jeitinhos, em bicos para complementar a renda, toda a luta para alcançar o melhor. Luta que não precisava ser tão solitária, e chega pelas mãos do desprezo da sociedade que vibra com a barbárie anunciada.
Todos vemos. Uns mais que os outros. Nem sempre é desprezo, mas só sabe medir quem sente.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | set 6, 2018 | Blog, Uncategorized
-Broxa!
Começo o texto usando a palavra que não se quer ouvir: broxante.
Devo desculpas pelos modos, maus modos, aos leitores que sempre carinhosamente (ou não) recebem meus textos nesse blog. Explico-me, porque pedir desculpas sem explicar é pouco. E ainda, antes afianço ao termo o significado de impotência, escreverei sobre a ABL, e sobre alguns sentimentos de impotência que permeiam nossas vidas, aos que chegarem ao fim do texto podem esperar um episódio quente, não necessariamente, sobre o termo.
Conceição Evaristo levou apenas um voto dos imortais, muito menos que as previsões ruins apontavam, mas diriam alguns que suas desfeitas em não participar das solenidades que eram precursoras da votação, e que indicariam a disposição da autora em participar dos chás da tarde com os pares, teriam sido determinantes: Afinal, ela não teria os modos necessários. E a cor, a cor não! A cor daria até uma robustez e alegria ao ambiente.
Pena a votação ser secreta, não fosse teríamos discursos impolutos e incompreensíveis, aos modos de outra casa, habitada por seres acovardados, diriam uns. Ou poderíamos ter discursos pela família, pela moral, os bons costumes, os sólidos valores que precisam ser preservados. – Não acreditam? Eu sim.
A verdade é que se não fosse assim, teriam pipocado rechaçamentos e desabono a referida votação da Academia Brasileira de Letras. Não houve. Apenas alguns gatos pingados falaram em seus guetos e terreiros, e passivamente aceitamos que Conceição é maior, é literatura viva que os imortais não merecem conviver.
Permitam-me uma digressão, rapidinha? Pois bem, dizem que a principal arma fascista era a esterilização de um povo, evitando assim que sequer nascessem pessoas que eles odiavam: eugenia ariana. Esse episódio triste da nossa história, digo da humanidade, aponta práticas que não podem ser esquecidas, para que não se cometam esses horrores novamente. E em tempos de parcos e poucos investimentos em museus, que ocasionam em incêndio e perdas irreparáveis (check, Crivella?), penso que o apagamento cultural é uma força das maiores que as ideologias podem lançar mão.
Perdemos muito no incêndio do Museu Nacional. Assim como temos perdido a democracia. E eu preciso dizer, para nós – descendentes do povo africano, a perda é irreparável, tão irreparável quanto ouvir pessoas que, pelo apagamento de nossas culturas, condenam à marginalidade, senão à morte, as formas de profissão de fé, a literatura, a vida, os sentimentos, a dança, a música, as características físicas, e qualquer que seja a produção oriunda de nossas histórias e mãos. Substituem tudo: cultura, história, reparação, representação por uma explicação como a do chá da tarde: ela não queria de verdade. Ainda ouço pessoas falando que era preciso fazer o expurgo do mal, afinal esse povo amaldiçoado, precisava passar por um processo de imolação.
– Não é nossa culpa!
É estranho como meu cérebro estabelece relações entre broxante e a esterilização das pessoas. Seria a idiotização da política a causadora desse mal? Possivelmente. Sei que as duas coisas tem muito pouco em comum. E sobre esse pouco que quero falar.
A sequência de fatos que tem nos acometido: condução coercitiva de um ex-presidente sem nenhuma necessidade, impeachment de uma presidente eleita, vazamentos de áudio anunciando acordo entre os setores que constituem o poder nacional, aprovação de reforma trabalhista que flerta com nova escravidão, entrega de soberania nacional, venda do pré-sal e das petroleiras, assassinato da Marielle Franco, prisão sem provas de um ex-presidente que conta com o apoio popular para ser reconduzido ao posto de presidente, negação de habeas corpus, decisão liminar da ONU garantindo o direito de Lula disputar as eleições e a negativa do STF, e várias outras arbitrariedades.
Relembrar esses fatos, e ver que vários outros que são consequência direta ou indireta destes, como o caso do museu ou da não eleição de Conceição Evaristo, dizem muito sobre uma prática de puxar a corda, até ver quando ela arrebenta, e se arrebenta. Na verdade, a passividade das pessoas, em especial dos mais pobres e lesados por essas práticas, não estão organizadas, não é natural olhar e dizer: – as pessoas vão continuar aceitando, podemos ir mais fundo – e aumenta-se a gradação das maldades e dos infortúnios.
O amor é mesmo um ato revolucionário, aí é que entra a coisa do Lula.
Não é preciso esterilizar as pessoas, para que elas não procriem, e assim sejam extintas, ofertar-lhe uma vida miserável até que elas não queiram mais viver, apenas sobrevivam é possível, mas não se tem o controle preciso do que ocorrerá.
O amor é um ato revolucionário de verdade. Sempre que as pessoas querem justificar barbáries apelam para motivações que nos tiram da razão, exemplo? – Se seu filho ou filha fosse violentado você mataria fulano? Enfim, produziu em você uma resposta imediata proporcional à pressuposição da violência: – Eu mataria! Por esse motivo, quando as violências vão acontecendo moderadamente vamos sentindo a sensação de impotência, que nos imobiliza até que o limite seja atingido.
Cumprindo as promessas, vou falar de um episódio quente e revelador da nossa história, ele cabe todo em uma frase que poderia ter saído da boca de todo um staff elitista, rico, heteronormativo, pseudo-intelectual e falso moralista, conservador:
– Você provoca em mim os sentimentos mais primitivos
…
E os limites? Eu não sei. Mas sinto que os ânimos estão aquecendo, e não é bom que se interrompam preliminares, se é que vocês entendem: o limite é o amor, e a resposta é o contrário do medo, da apatia, da tristeza. O Brasil espera ser feliz de novo.
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