O CARNAVAL ACABOU, A ALEGRIA TERMINOU, E AGORA?

“Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” Assim cantavam os sambistas no desfile da Escola de Samba Paraíso do Tuiuti, na Arena do Sambódromo do Rio, na segunda-feira, dia 12 de fevereiro de 2018. Enredo feito arma forte, instigante, surpreendente. Acontece que no Brasil inteiro, o carnaval é lindo, é alegria, é festa, é dança, é canto, é riso geral ridente, é arte, é estético erótico corporal, é fantasia, é alegria colorida e brilhante, é amor, é sexo, é ironia, é… porém, e quem vai responder a pergunta do enredo da Paraíso do Tuiuti?  Está extinta mesmo a escravidão no Brasil? Vamos, responda “vampiro neoliberalista”. Você com a faixa horrorosa de “Presidente”, por que indevida, indecorosa. Você, Temer, pintado alegoricamente de “vampirão” e todos os seus amigos comparsas a quem você serve tão “inocentemente”, como você diz, faz agrados e enriquece com o dinheiro de todos e às custas de muito sofrimento dos trabalhadores mais pobres, ainda escravos, por conta e força das leis, das medidas que você impõe ao povo brasileiro, você consegue dormir em paz? Ah, eu estava me esquecendo, você não tem mais tristeza ao fazer sofrer os milhões de brasileiros com seus atos de injustiça social.

Bem, se por um lado fico triste e indignado com as políticas neoliberalistas privativistas de hoje, por outro lado fico alentado e orgulhoso com os protestos impiedosos nos desfiles das escolas nos sambódromos e principalmente nos blocos das multidões de sambistas nas avenidas, nas praças, nas ruas, nas praias pelo Brasil inteiro. É o carnaval voltando às suas origens. Isso nos faz lembrar o profundo sentido da história do samba e do Carnaval no Brasil. Aqui, o nascimento e  o berço do samba e do carnaval tem sido as senzalas, os quilombos, as praças com pelourinhos, as favelas e os logradouros, espaços de lutas, de guerras contra a escravidão, cujas armas não eram as espadas, nem os fuzis, mas o samba, a dança, o canto, o tambor, o batuque e a multidão em festa na luta pela liberdade e pelo fim da escravidão, da exploração, da injustiça. Mais tarde, o samba e o carnaval vitoriosos tomaram conta das avenidas e praças nos centros das metrópoles. Ultimamente, o carnaval das elites – quando os ricos começaram a gostar do samba, até então de gosto vulgar – passou para os sambódromos. É claro, o sambódromo do Rio, com sua arquitetura erótica, foi legítimo, justo e pedagógico para a cultura popular e para a beleza e grandiosidade do Carnaval brasileiro. Porém, aos poucos foi telenovelisado e virou arena de espetáculo nacional e universal. Assim, hoje, o sambódromo virou palco dos pobres fantasiados de ricos desfilarem uma única vez no ano. Financiados pelo grande capital público e privado, onde passam o ano inteiro em suas escolas de samba, construindo as alegorias enormes, revestidas de ouro e prata, multicoloridas, de arquitetura e arte únicas no mundo, eles mesmos, os pobres, se vestindo com fantasias de milhões de pedras preciosas brilhantes (falsas), para desfilar, sambando, cantando aos ricos, esses bem acomodados nos camarotes (de até R$ 6 mil  por dia) recheados de celebridades, nas frisas e nas arquibancadas.  Em síntese: os pobres se vestem de ricos e desfilam e dançam e sambam para alegrar os ricos. A lógica é clara: se os sambistas forem vestidos de pobres como são, os ricos não irão aos sambódromos. É o verdadeiro e histórico “pão e circo” aos pobres – numa versão estratégica telenovelisada atualizada.

Dessa forma, hoje, o carnaval do Brasil – um símbolo, uma cultura, uma identidade nacional – está partido ao meio do jeito que Ítalo Calvino via a si mesmo e o mundo partidos, uma metade boa e outra pervertida. Dividido o carnaval ao meio, horizontalmente e não verticalmente, temos o alto e elevado corporal e o baixo corporal, sendo que uma metade não existe sem a outra. A parte boa – carnaval de rua, avenida, praça – contém samba, alegria, canto, música, fantasias, alegorias livres e espontâneas, protestos, ironias…, onde é preservada e vivenciada a arte, a estética, a cultura, a tradição das festas populares. A parte pervertida são as escolas de samba, altamente sofisticadas, financiadas por organizações hora públicas ora secretas, inventando e ensaiando enredos, construindo carros alegóricos gigantescos e exóticos, confeccionando roupas e fantasias de um mundo que não tem samba popular das tradições africanas. A finalidade maior é a escola campeã do ano, sob a luz das câmeras de TVs para o Brasil e o mundo. Tudo virou mercadoria para ser exibida, fantasiada de ouro e prata, vendida nas arenas e nos palcos pela imprensa midiática ao público telespectador e às plateias selecionadas e exclusivas aos donos do capital, encobrindo o real – a exploração dos trabalhadores. Ocupar o tempo e a mente dos trabalhadores e das massas populares com festas fantasiadas e luxuosas para não terem tempo e nem motivações de se organizarem social e politicamente, em busca das transformações necessárias, eis a questão estratégica.

Neste momento me lembrei do que Bakhtin escreveu da natureza complexa do riso carnavalesco: “um riso festivo… O riso carnavalesco é em primeiro lugar patrimônio do povo… Todos riem, o riso é “geral”, é universal, atinge a todas as coisas e pessoas…, o mundo inteiro parece cômico e é percebido e considerado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo”. E Bakhtin faz uma severa advertência: “esse riso é ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente”.

Anúncio final, “aí vem a Vai-Vai”.

 

                                        José Kuiava escreve neste Blog às quartas-feiras.

QUE BRASIL VOCÊ QUER PARA O FUTURO?

Por José Kuiava

 

Eis a questão. Para responder esta pergunta genial da Globo, melhor e mais justo seria invertê-la ao contrário. Virar do avesso. Assim: “que Brasil você não quer para o futuro?” E a Globo, precisamente no começo do ano das eleições presidenciais no Brasil, revela mais uma vez sua genialidade inventiva e seu coração generoso: dá curso de graça, na tela da Globo, para quem quiser aprender a gravar um video no celular. Para você tirar uma fotografia de si mesmo e gravar sua voz, por você mesmo ou por um amigo seu, a Globo ensina passo a passo essa técnica ultramoderna. E mais, você pode ser o representante, o porta-voz, da sua cidade, uma das 5.570 cidades do Brasil. Você pode representar e falar em nome de milhares, centenas de milhares e até milhões de brasileiros na tela da Globo. Maravilhoso.

Para não perder esta chance, fique atento às dicas. Primeiro, você precisa escolher uma hora do dia, escolher o lugar, o mais bonito da sua cidade – uma praça, os monumentos mais pomposos, o teatro, o shopping… Escolhidos o dia e o lugar, agora você assiste a aula do professor Ari Peixoto. “Eu estou na Praça do Pacificador, em Duque de Caxias, atrás está o Complexo Cultural Oscar Niemeyer. Nós queremos ouvir a opinião de cada um dos 5.570 municípios do Brasil. Você pode ser o porta-voz da sua cidade gravando um vídeo no celular, sempre de dia. Você pode pedir a um amigo seu que grave o vídeo para você com o celular sempre deitado, na horizontal. Pode fazer com o celular mesmo, veja se você está enquadrado e se está aparecendo o lugar que você escolheu para fazer a gravação. Você tem 15 segundos para dar o seu recado. Comece a gravação dizendo o seu nome todo, a cidade de onde você está falando e aí você diz pra gente: que Brasil você quer para o futuro” (http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2018/01/grave-um-video-pelo-celular-dizendo-que-brasil-voce-quer-para-o-futuro14.html – 27/01/2018).

Você não acha espetacular esta aula? Em apenas 15 segundos, isso mesmo, 15 segundos, você disse para todos os telespectadores da Globo “que Brasil você quer para o futuro”! Você acabou com os cientistas e professores de história, de sociologia, de economia, que escrevem teses e livros científicos inacabados, que ministram aulas durante meses, anos, décadas e  séculos sem fim e não conseguiram ainda fazer entender a todos “o Brasil que queremos e precisamos”. Agora, você sem pesquisar, sem investigar, sem escrever disse em 15 segundos. Assim você é um gênio, igual aos gênios da Globo.

Só que tem uns detalhes que eu não falei no começo e são condições imprescindíveis. Para você filmar seu corpo e gravar sua voz, você precisa ser bem apessoado ou apessoada. Precisa ser bonito ou bonita. Ter um corpo elegante – padrão de beleza em vigência – de preferência bem penteado ou penteada, vestido ou vestida rigorosamente de acordo com os moldes e padrões da moda e, acima de tudo, de riso ridente. Precisa ter um celular de última geração que vale mais de mil reais. Sendo assim, você precisa pertencer a uma classe social media  para cima. Mas cuidado, porque um corpinho assim, bem vestido e na última moda, pode ser uma bela ilusão. A não ser que você seja um alienado ou alienada a serviço de quem te explora.

Agora, pensemos nos 13 milhões de desempregados, dos mais de 45 milhões que matam a fome com o bolsa família, os mais de 60 milhões de trabalhadores vivendo com salário mínimo, os milhões de trabalhadores da roça, os vendedores nas ruas, os dependentes químicos e outros milhões de brasileiros que não tem a beleza corporal no padrão da Globo. Teríamos milhões de rostos suados, sujos, pele enrugada, cabelos despenteados, boca sem dentes, roupa suja, rasgada, sem o celular indicado, etc, etc, etc. Eles, necessariamente, teriam que dizer “que Brasil não quero para o futuro”. Isso em 15 segundos. Para dizer o nome completo e a cidade onde mora e trabalha já se foram 5 segundos. Aí, sobram 10 segundos. E viva os gênios! “Ligue pra gente. Ligue pra gente. Ligue pra gente”.

                                                       

 

                                                                                                                                          José Kuiava escreve neste Blog às quartas-feiras.

Ausência por uns tempos

A partir de amanhã, por razões familiares, estarei ausente do blog. Os professores Kuiava e Cristina continuarão a publicar seus textos.

Eu pretendo retornar às minhas crônicas e comentários assim que possível.

Durante esta ausência, talvez o STF desapareça de tão apequenado; o PT cresça ao perceber que a conciliação é sempre uma engambelação; o Dr. Angélico entre em licença-sabática e vá correndo para os EEUU receber alguma plaquinha de prata; a Reforma da Previdência seja recusada pela Câmara e o Michel Temer tenha ido tomar…  Ah! E que a posse do cadáver insepulto da Cristiane Brasil, agora investigada por ligações com o tráfico de drogas, tenha sido enterrado para não continuar a empestar o ambiente.   

Textos sobre textos: No Inferno

O escritor cabo-verdiano Arménio Vieira, que recebeu o Prêmio Camões em 2009, publicou este romance através do Centro Cultural Português, em 1999. Este é um romance inusitado, cujo enredo o leitor acompanha sempre em dúvida, porque a linearidade cronológica aparente é transgredida não por recortes e retrocessos no tempo, mas pelos deslocamentos que provocam os inúmeros narradores postos a contar as histórias que o compõem não seguem a lógica da coerência. O narrador do penúltimo capítulo diz: “”Leitor, convence-te de uma vez por todas que esta ficção não é como as outras. Ela é maluca, não tem pés nem cabeça.” Mas não se creia que estamos diante de um romance non sense fora do tempo.

A narrativa se inicia com uma Nota Prévia assinada pelo autor que já nos informa que seu personagem foi “compelido a libertar-se pela escrita, ele tentou-o, mas com sofrível sucesso em razão de uma sobrecarga de informações livrescas”. E é talvez este excesso, que o autor demonstra possuir, que se defende uma tese de que o romance já deu o que tinha que dar na história, estando destinado ao desaparecimento:

Incumbido de escrever um romance, à semelhança do protagonista do livro em pauta, não o fiz, porque não quis fazê-lo ou porque não o pude fazer, em virtude de uma série de razões: a) o romance, gênero herdeiro da epopeia, na sua qualidade de narração em prosa de feitos heroicos, deu já o que tinha a dar, tornou-se caduco; b) nas suas versões realista e naturalista, Balzac, Flaubert e Zola tiveram de há muito os seus dias de glória; c) na sua vertente psicologista, atingiu o ápice com Dostoievsky, Proust e Faulkner; d) Joyce, o experimentador fáustico, conduziu-o aos limites; e) deixando o resto de lado, digamos para finalizar que Borges, o último dos grandes ficcionistas, preferiu não escrever romances, mas, em vez disso, elaborar resumos de hipotéticos romances e comentá-los.

O leitor fica avisado: o que encontrará pela frente será um romance “de fim de linha”. Uma despedida do gênero? Ou uma estranha e inusitada narrativa sem heróis e muitos protagonistas às voltas com a própria escrita e o esquecimento que não há do já lido. Imaginei a segunda hipótese, e enfrentei a narrativa. Vamos a seu resumo.

Uma leitora, que se assume narradora em primeira pessoa, lê um poema e decide que quer encontrar o autor. Procura-o em Coimbra e lá fica sabendo que lhe fora encomendado um romance e que o escritor estaria em Praia, na capital de Cabo Verde. Viaja para lá e o encontra num bar. O diálogo é curto e o autor lhe entrega os originais de um romance com a recomendação que depois de lido deveria ser destruído.

A narradora torna-se, então, leitora que nos vai apresentando o livro que lê, mas cuja voz praticamente desaparece, pois abre espaços para um novo narrador, em terceira pessoa, que conta a história de Leopold, um escritor que acorda, desmemoriado e encerrado no segundo andar de uma mansão isolada, em cama vestida de panos vermelhos. Sai a descobrir o espaço em que estava e descobre que não tem saída: estava preso. Recebe um telefonema com longas instruções a propósito do que encontraria em sua nova morada, de que somente seria libertado quando entregasse um excelente romance pronto a ser analisado por um comitê de especialistas: só então estaria livre.

Leopold torna-se Robinson a vasculhar pela casa o que lhe fora preparado. E encontra uma biblioteca com grandes romances: abre um deles e começa a ler e então sua memória se torna um prestígio: consegue repetir este e todos os romances da biblioteca de cor! Sabe-os, já os leu. E já que tinha uma única saída para se ver livre, começa a escrever. Mas seus textos são pequenos contos, que aparecem na linearidade e no mesmo nível de narrativas de seus sonhos. Enquanto os contos põem em ação um narrador, sempre o mesmo, Leopold/Robinson, os sonhos que entremeiam as histórias têm outro narrador (a voz feminina do início do livro?). Sonhos e histórias envolvem sempre personagens da literatura mundial. Romeu e Julieta são presenças constantes. Romeu sempre um inimigo do narrador: afinal, tivera Julieta que o narrador disputa. Mas ele não quer somente Julieta, outra personagem o encanta: Beatriz.

Só por estas indicações o meu leitor já pode perceber a polifonia e as referências constantes a outros autores da literatura mundial. Há duas constantes neste romance: 1) as sucessivas mudanças de narradores/narradora; 2) as inúmeras notas de rodapé indicando as referências literárias e fílmicas que aparecem no interior das narrativas, ora pela citação de algum personagem, ora pela citação literal de passagens de outras obras.

Trazer a voz do outro para o interior do romance (desde o título, que dialoga com O Inferno de Dante); tomar a escrita como o inferno do escritor que para escrever precisa esquecer, porque a escrita é um gesto de esquecimento do lido porque se presente o lido, não há razão para o retorno à escrita; percorrer uma vasta literatura, que vai da Bíblia, passando por obras literárias clássicas, até chegar a personagens de Walt Disney; tudo isso faz a excelência deste romance, já que este mesmo romance se apresenta como uma condensação do que foi o romance e do que suas personagens nos ensinaram ou deixaram como registros dos modos de vida, já que fazendo ficção, conta-se uma história oculta do que poderia ser ou do que de fato era.  Ou seja, o romance No Inferno, por sua forma literária, defende de outro modo o que a Nota Prévia anunciava: que o gênero está agonizante. Mas

Que fazer então? Continuar a escrever romances, fazendo de conta que ninguém os escreveu antes de nós? Ignorando, por exemplo, que as simples cacofonias bastavam para que Flaubert ficasse insone? Que a ambição de uma escrita pura ia anulando Valéry? Que Mallarmé sonhou com o livro irrealizável? Que o Finnegans de Joyce é a romanesca quadratura do círculo? Que os cultores do nouveau roman, a que também se chamou du regard, não passaram de chatérrimos funâmbulos em queda mortal?

A suposição de que o essencial já foi escrito desconsola-nos. Mas seja como for, cultivemos nossos jardins. Foi o que fizeram Hemigway, Camus, García Marquez, Saramago e tantos outros, com Nobel ou sem ele. E saíram0se muito bem.

 

Referência.

Vieira, Armênio. No Inferno. Lisboa : Editorial Caminho, 2000.

Textos de Arquivo XXIII: Cinco questões sobre a questão dos métodos

Nota prévia

Este texto foi produto da transcrição de fala na mesa-redonda “Alternativas metodológicas para o ensino da leitura” do 6º. Congresso Brasileiro de Leitura – COLE. A Associação de Leitura do Brasil realizava seus congressos a cada dois anos, e no ano seguinte organizava os anais que eram distribuídos no próximo congresso. Este congresso foi organizado pela diretoria sob a liderança do Prof. Ezequiel Theodoro da Silva, criador do COLE e da ALB. O 6º. Congresso ocorreu em 1987, e logo depois assumi a presidência a ALB por dois anos. Assim, os anais foram publicados em 1988 e contou com o trabalho de Lilian Silva na organização e de Valdir Barzotto, sem o concurso dos quais certamente não haveria a publicação. Meu texto é consequência deste trabalho de transcrição da fala, feita pelo colega Barzotto, como imediatamente perceberá o leitor pelas marcas de oralidade que foram mantidas, as repetições, as idas e vindas, demonstrando que se trata de uma fala marcada pela fala da coordenadora da mesa-redonda que havia enviado o texto com antecedência, como era o planejamento do próprio evento. Assim, sem as tonalidades da voz, o texto perde em sentidos, mas marca também sua própria forma de se produzir.

Cinco questões sobre a questão dos métodos

Como esse COLE tem como temática a questão dos métodos e os métodos em questão, e se a mesa está sendo suficientemente disciplinada, porque a coordenadora teve a disciplina que convém fazendo um texto próprio para facilitar a participação dos outros membros da mesa, eu vou ser não disciplinado. Posso ser disciplinado no tempo porque tenho muito pouca coisa a dizer, mas vou ser suficientemente indisciplinado para tocar em vários tópicos sem trazer um texto escrito e amarrado. Mas terei a disciplina que o recorte de tempo, em mesas-redondas, impõe.

A título de epígrafe, começo colocando duas falas de lugares bem diferentes, para cruzá-las. Uma de uma criança de 8 anos da 2ª. série, que fazendo o resumo de um livro que se chama “Pingo de Luz”, diz: “Pai, por que a professora quer o resumo se ela pode ler o livro?”.

Agora, outra fala, de um outro lugar social, trata-se de Michel Foucault, que não é uma criança, nem tem 8 anos, nem está na segunda série: “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou modificar a apropriação dos discursos com os saberes e os poderes que trazem com ele”.

Diante da provocação que o texto da Maria da Glória Bordini trouxe para a gente, eu me sinto provocado por todas as questões do mundo. Estou mais ou menos assim como um professor de segundo grau deve ter se sentido em 78/79 quando recebeu aqueles 8 volumes de subsídios para a implementação do guia curricular de São Paulo, publicado pela CEMp. São oito coletâneas de textos, excelentes textos, excelentes coletâneas que ele vai ter que articular. E eu, diante das provocações, acho que estou me sentindo mais ou menos assim: é tanta provocação que eu não sei por onde começar. Acho que foi o que aconteceu com os professores de 2º. Grau, naquela época, e provavelmente, como ele, eu também farei o mesmo, vou deixar de lado tantas provocações, e vou selecionar, das sete perguntas, a sétima. Por que a sétima? Porque é o número 7, um número interessante. Retomo a pergunta: “Como um método de ensino de leitura pode prever sistematicamente os atos de leitura adequados a um determinado texto e a certo alunado?”

Diante desta provocação, a minha primeira pergunta é: “Mas há método?”

Ao pressuposto que subjaz à pergunta “como um método de ensino pode prever, a minha pergunta é: onde está o método? É o primeiro passo para depois me perguntar como ele prevê. E como resposta a esta segunda pergunta, se há método, cito uma passagem do Prof. Marcelo Dascal, que cita outros. Numa sala de aula, Marcelo Dascal fala da crítica que Leibnitz faz a Descartes. Na crítica que faz, diz: este senhor, Descartes, era muito, muito inteligente. De fato ele descobriu coisas muito importantes, mas este senhor absolutamente não tinha método, apesar de “O Discurso do Método”, porque se ele tivesse método, os seus discípulos, seguindo o método que Descartes deu, deveriam fazer as mesmas descobertas , tão geniais quanto aquelas que Descartes fez. Ora, os discípulos de Descartes seguem o método de Descartes e não fazem descobertas tão geniais quanto as que Descartes fez. Logo, Descartes deve ter descoberto não com o método que disse ser o método.

A segunda questão é que uma das regras do método, de dividir em partes o problema, não diz nada, porque a ordem de dividir em partes o problema não diz onde é que o problema tem que ser cortado, onde é que ficam as junturas. Ora, o problema não é só de divisão, o problema é encontrar o lugar do corte. E por fim, na medida em que faço estes cortes sem saber onde devo fazê-los, tenho que pensar no fenômeno como um todo, e nos recortes que faço a quantidade de coisas que do fenômeno deixo fora. E o pior não é deixar de fora algumas das provocações da Maria da Glória, mas o fundamental e pior é que nesse deixar de fora, de repente, a gente acaba negando o que deixou de fora, porque acaba não mais enxergando. Então se eu estou tomando apenas a sétima questão, não é porque queria deixar de fora  as outras, mas para ficar divagando um pouco em cima desta sétima, com muito medo de esquecer todas as outras.

Bom, para tratar desta sétima questão eu volto a citar Maria da Glória. Há uma passagem sua, já tomada pela Maria Laura, que é a seguinte: “É um postulado lógico que não há prática sem fundamentação teórica e vice-versa, a falta de investigação nas áreas teóricas de leitura só poderia resultar em tentativas pedagógicas desconexas, que podem lograr bons êxito quando o professor, intuitivamente, parte de uma noção de aluno e de texto próxima da realidade de ambos, mas que em larga escala e aplicadas indiscriminadamente, dificilmente produzem leitores aptos.

Eu quero tomar precisamente aquilo que estou salientando aqui, que é “produzem leitores aptos”.

Em outra passagem você também coloca que passada a alfabetização, no resto do 1º. E 2º. Graus, os professores consideravam que “estando alfabetizado, o aluno não precisava de atividades de leitura especificamente planejada para o domínio dos atos de ler, passavam logo à leitura instrumental e as aulas sobre literatura, ou seja, usavam o ler como um meio a mais de aprendizagem e não como uma habilidade a ser constantemente aperfeiçoada”.

Bom, se os métodos estão em questão, eu acho que gostaria de colocar em questão precisamente isto. Parece-me que por trás destas duas passagens do texto há uma ideia de que existe método, mas há também uma ideia de que o fato de existirem métodos não quer dizer que métodos têm sucesso. E o método, para ser mais preciso, seria a organização de atividades de leitura que levem ao domínio do ato de ler. Uma vez dominada a habilidade de ler, o leitor estaria apto a usar esta habilidade/capacidade como instrumento, como forma de aprender outros conhecimentos ou habilidades.

Ora, outra é a concepção de leitura quando esta se realiza como instrumental de outras aulas sem se preocupar em habilitar para depois usar. Ou seja, um método sem leituras planejadas para habilitar o leitor para depois o leitor ser leitor; aparentemente seria o anti-método. É porém a busca d eum uso efetivo do teto que pode produzir um certo método.       

Acho que o método é precisamente aquilo que às vezes a escola tem jogado fora: é precisamente o uso do texto escrito e de sua leitura, sem muita preocupação com o planejamento de atividades que desenvolvam a habilidade de ler, que produzem leitores. Seria  a prática como produtora da gramática, e não a gramática do método como caminho para ditar a prática da leitura. Continuo defendendo, ainda, que se aprende a ler, lendo.

A terceira questão que gostaria de colocar no debate vem de outro lugar. É de Michel Foucault, e eu cito: “O que é no fim de contas um sistema de ensino senão a ritualização de uma fala, senão uma quantificação e fixação de papeis para os sujeitos falantes, senão a constituição de um grupo doutrinal pelo menos difuso, senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?”

Quando nós estamos falando em crise da leitura, será que esta crise da leitura não passa por um lugar que é a recusa dos discursos que os sistemas educacionais e as próprias leituras que são proporcionadas na escola, que querem fazer com que aquele que passa pelo ritual da apropriação se aproprie? Não poderia ser uma recusa a estes discursos? Será que um dos problemas que nós temos não é precisamente a crise da leitura se definir como uma recusa aos discursos que esta escola, de final do século XX, está oferecendo, como material de leitura?

Esta questão, que posso formular a partir de Foucault diz, atentos a este processo de apropriação: será que o aluno não tem, efetivamente, muito mais consciência do que nós temos às vezes, de que se promete mais e na verdade se lhe dá menos? Isto é, em todo o processo dessa apropriação que a escola aparentemente possibilitaria, se Foucault tiver razão vendo a escola como um sistema de apropriação de discurso, promete-se ao aluno que ele, apropriando-se desses saberes, passa a ter, sei lá, uma ascensão social, sei lá eu o quê, quando ele tem consciência muito clara e efetiva que isso não é verdadeiro. E sua reação, que enxergamos como a crise, não seria precisamente uma crise que me mostra a crise de uma outra coisa, isto é, a crise de um sociedade onde sujeitos não poder ser sujeitos?

A quarta questão, ainda em relação ao ensino (eu estou sendo super comportado, não sei até se não estou sendo rápido demais para ficar limitado ao meu tempo) é em relação à questão de base da Maria da Glória, de como o método pode prever. A escola tem respondido afirmativamente, a escola tem dito: é possível prever. Primeiro, ela diz “existe o método”. Dois, ela diz: “é de fato possível prever com adequação para determinados alunos a leitura adequada a determinado texto”.

A escola tem feito isso pela forma como organiza  escolar e, dentro dele, a leitura que o aluno vai fazer n a escola está já planejada: ele vai ler tal texto, são X unidades de conteúdo com um tal programa mínimo que vai ser desenvolvido, previamente fixado e independente de dizermos, no início do planejamento, “este programa é flexível”, porque de flexível, na verdade, acaba não tendo nada. Estou pensando na flexibilidade no interior da sala de aula, não estou pensando na flexibilidade do não cumprimento do planejamento que a gente faz e guarda na gaveta. Pense, por exemplo, o seguinte: você mimeografou um texto, levou para dentro da sala de aula, o aluno discute o texto e diz “este texto é inadequado para a questão que nós temos para discutir”. Bom, você suspende a leitura deste texto ou continua a aula igual? Suspende a aula? Quer dizer, dado que a escola está planejada na sua forma de trabalho, que ela tem que ter horários e a aula de português vai das 9:00 às 10:00h, o que você faz?

Na verdade, será que nós somos suficientemente flexíveis para, de fato, dizer “jogue este texto para o lado e vamos para outro”. Ou melhor ainda, vamos começar tentar produzir aqui neste aula, e neste diálogo, ao menos o conjunto de perguntas que temos para nos fazer sobre este tema? Temos a flexibilidade de abandonar o texto que trouxemos inadequadamente, ou que o aluno trouxe inadequadamente, tal como fazemos, de fato, quando estamos fazendo pesquisa? Na verdade, eu estou aqui me referindo ao trabalho que tem desenvolvido a Corinta, defendendo uma metodologia de ensino que seja produtiva de conhecimento.

Por fim, e a minha última questão é em relação ao paradoxo, um paradoxo que gostaria de ver também discutido aqui. É um paradoxo que eu vejo a cada COLE, que se repete também em livros, e que é um paradoxo interessante, é o paradoxo do fato de que, no Brasil, o ensino é livresco; é o verbal escrito que ainda vale, mas o ensino livresco é associado a um outro fato: que inexistem livros. O ensino é livresco sem livros, sem acervo, sem biblioteca nas escolas. Então é preciso caracterizar o ensino livresco, um ensino autoritário, um ensino mistificador da palavra escrita, palavra esta a que se atribui uma única leitura, a leitura privilegiada numa determinada época, obedecendo cegamente aos referenciais teóricos dos autores e reproduzindo as ideias captadas no texto, tomados como fins em si. A ausência de livros, no entanto, nas escolas, é compensada com muita rapidez por máquinas de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e eu acrescentaria, ainda, pelos livros didáticos com os quais se piora cinquenta e cinco milhões de vezes o ensino.

É provocação mesmo. Estou querendo provocar o debate sobre livro didático, que tomo como produto de consumo rápido, que o aluno tem à mão; nunca o livro por inteiro, porque seria trabalhoso estuda-lo para extrair dele o que se busca. Não há busca, engolem-se informações pré-fixadas como conteúdos, não se degustam conquistas, as sopas pré-fabricadas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar e mastigar, de degustar, a papa já está pronta. Sei que a existência pura e simples de material bibliográfico, “de livros a mão cheia”, como queria Castro Alves, não resulta mecanicamente em um ensino não livresco. Experiências bem próximas demonstram isto, mas uma coisa me parece correta, o ensino livresco se sustentará por um tempo maior, quanto menor for o acesso da população ao livro. Por isso o paradoxo de um ensino livresco sem livros ser paradoxo aparente. Quanto menos se lê, mais autoritária e única é a leitura das autoridades, por isso o ensino pode ser livresco, porque o professor acaba sendo, naquele momento, a autoridade.

Lutar, portanto, pela leitura, lutar pelo livro, lutar pela biblioteca é uma forma de lutar contra o ensino autoritário, contra o ensino repetitivo, contra o ensino alienante e contra o ensino livresco. 

Judiciário: cada vez mais impopular

Muito antes dos escândalos do Executivo e do Legislativo, o Judiciário já não gozava de boa reputação junto ao povo, e mesmo junto aos ricos que o usavam a seu bel-prazer para rolarem o que fosse preciso nas infindáveis chicanas de seus advogados, até prescreverem crimes ou receitas devidas ao Estado. Sabiam que podiam usá-lo, donde não confiavam nele!

O poder judiciário nunca dependeu da opinião pública. Manteve-se em sua torre de marfim perseguindo pobres e ajeitando as coisas para os ricos. Tanto era assim que corria solto a expressão de que cadeia não foi feita para ricos.

De repente, um magistrado optou por fazer carreira de ator público, aparecer na TV, bancar o herói nacional. Assim como apareceu, desapareceu Joaquim Barbosa, mas abriu o caminho, mostrou a senda, deixou a senha.

Então outro magistrado, em troca de algumas placas de prata e alguns convites para palestras dos EEUU, seguiu o caminho aberto: deixar vazar informações confidenciais, praticar tudo para se tornar sempre a estrela que chama holofotes. Organizou uma operação com apoio na mídia, alegando que sem ela os poderosos que pretendia prender fugiriam das “garras da justiça”, ou das suas garras. Claro que a caminhada ou a caça à corrupção teve todo o apoio, quase unânime, da sociedade. Mas aí começou a aparecer que esta caça não era à corrupção, mas a determinado grupo político e a um político em especial. O resto “não vinha ao caso”.

Quando um aparece, outros, enciumados pelo colorido dos holofotes, também quiseram aparecer. E aí nomes de juízes começaram a se tornar conhecidos, cada um tirando sua casquinha e querendo aparecer bem na fita.

Só que a publicidade tem seu preço. De repente, tiveram que julgar segundo a opinião publicada pela mídia tradicional, para não perderem os holofotes. Não importavam as provas. Aliás, seus procuradores até dispensam provas técnicas pela convicção que têm de que nem precisava investigação e denúncia: o desejado seria de qualquer forma condenado.

E então a maioria começou a perceber que tudo era jogo de cena. Quando apareciam denúncias de corrupções de políticos de outro lado, ou não vinha ao caso, ou se tornavam inacessíveis os documentos – como é o caso do “desaparecimento” das duas chaves dos registros das propinas de Odebrecht! Criptografadas, são inacessíveis para a nossa polícia técnica. É que ainda não mudaram as listas…

Então José Serra, Aécio Neves, Geraldo Alckmin (sem contar aquele proprietário do apartamento da Av. Foch em Paris, o lugar mais caro do mundo, aquele mesmo dos presentinhos, um apartamento em Paris para um amante; outro em São Paulo para a outra amante, mas este não conta, “não vem ao caso”), todos eles vão se safando graças à inércia da investigação e do Judiciário. Aliás, Dona Raquel, a procuradora geral, já pediu arquivamento de processos em função da prescrição. E José Serra requereu ao seu juiz, Gilmar Mendes, que considere prescritos todos os seus crimes anteriores a 2010. Até Gilmar ficou com vergonha…

Depois vieram a público os salários, as renda, os auxílios dos juízes e procuradores. Luiz Fux, o ministro do STF, deu direitos retroativos a auxílios-moradia à cambada toda. Em troca, sua filhe se tornou desembargadora, ainda que despreparada para tanto. O preço que a nação paga pela designação não importa. Isso não é corrupção!

Não se trata de reclamar do luxo do apartamento do juiz Bretas! Com um auxílio-moradia mensal para si e para sua esposa, na miséria de R$ 12.000,00, têm ambos o direito de comprar as melhores mobílias e viverem nababescamente num país de pobres. O que ele ganha por mês de auxílio-moradia equivale a quase toda a renda de um trabalhador de salário mínimo!

Aí ficou muito claro que algo de podre havia no Poder Judiciário – houve até uma presidente de Tribunal que despachou em processo em que era impetrante, em que era interessada. Dona Carmen Lúcia pede as listas dos rendimentos dos juízes, do país inteiro. É presidente do CNJ, mas o assunto fica na lista, jamais entra em pauta, jamais se imagina a possibilidade de devolução. Não vem ao caso! Sai a lista, a imprensa áulica bate bumbo num dia, e faz o assunto morrer no dia seguinte. Para que tudo permaneça como está.

Mas é neste poço que o Judiciário se afogará. E infelizmente levará junto procuradores, juízes e ministros – cada vez mais raros – que são probos, julgam segundo a lei e não estão em busca dos holofotes que os tornem atores da rede Globo.  

PS: Alguém pode informar se o senador Álvaro Dias, do Paraná, faleceu? Ele era o queridinho da Globo quando no PSDB. Agora não se ouve mais falar dele, nem ele aparece para predicar aos tontos brasileiros!