A esquizofrenia de Ciro Gomes

A campanha eleitoral está em seus primórdios, e Ciro Gomes já começou a por os pés pelas mãos, como sempre fez e continuará a fazer, porque efetivamente não esquece que foi da ARENA nos tempos da ditadura, depois foi se afastando partidariamente da direita, mas conservando o tom de homem de direita, tom autoritário, de rompante,e politicamente descuidado de quem se julga dono absoluto da verdade, como se houvesse uma só verdade.

Circula agora pelas redes sociais um manifesto de militantes do campo da esquerda (https://www.brasil247.com/pt/247/poder/343927/Manifesto-recha%C3%A7a-Ciro-e-defende-candidatura-Lula.htm ) criticando sua entrevista a Monica Bergamo, da Folha de S. Paulo, no dia 20 de fevereiro. Diz o manifesto que ” Foi de deixar pasmo ouvir Ciro afirmando que é ofender a inteligência mediana do brasileiro dizer que há uma perseguição contra Lula pela mídia e um golpe. Candidato progressista que está no campo da esquerda dizendo que não foi golpe? É assombroso! 

Quer Ciro Gomes que não se fique refém da candidatura Lula. É um ponto de vista defensável. Não para Lula que já criticou, sem referência direta ao político cearense, aqueles que já tratam de abocanhar o espólio eleitoral de Lula, que ainda é pré-candidato e ainda está na luta.

Neste momento histórico, em que a direita se digladia para encontrar um candidato; em que Temer se apresenta para a reeleição do alto de sua reprovação; em que Meirelles pensa se eleger com os votos dos rentistas; em que FHC busca desesperadamente um candidato, traindo como de costume seu ideário, seu partido e o candidato de seu partido; neste momento as declarações de Ciro Gomes são compreensíveis: ele quer ser o candidato da direita. Mesmo com ficha assinada no PDT! Brizola deve estar se revoltando no túmulo e sua alma sangrando.

Não importa se Lula será candidato efetivamente. Não creio que venha a ser: a lei emanada dos não legisladores, mas dos ditadores do judiciário afastará Lula das eleições. Mas enquanto o golpe jurídico-midiático não se efetiva concretamente, porque eles precisam de um arremedo de legalidade, o campo da esquerda, por uma questão até de justiça, deve apoiar a candidatura Lula, ainda que uma anti-candidatura (os jovens não devem lembrar das anti-canidaturas dos tempos da ditadura: Hugo Abreu, Ulisses Guimarães. Foram então gestos que mantiveram acesa a chama da luta contra a ditadura).

Ciro não terá o apoio da direita! E perdeu completamente o direito de ser candidato pelo campo da esquerda, a não ser que este campo tenha se tornado definitivamente esquizofrênico. 

A performance do diálogo

A performance do diálogo

Nunca tivemos tanta informação disponível, nunca ouvimos falar tanto em tendências e indicadores, em DIY (Faça Você Mesmo) etc.. Sabemos tanto sobre temas e pessoas que é como se conhecêssemos quase tudo sobre a vida de quase todos.

Somos frequentemente interpelados a falar, opinar, questionar. É preciso dizer onde está, no que está pensando, como está se sentindo, e se possível provar com fotos ou ‘fazendo uma live’.

Como escreveu o professor Wanderley, “estamos obesos de informação e anoréxicos de reflexão”.

A reflexão exige o câmbio de posições, exige um esforço exotópico em que ouvir o outro não pode significar apenas dar espaço ou voz a ele. Trata-se de um momento essencial em que há uma identificação com o pensamento do outro, e que possibilita nesse ponto de empatia alguma reflexão que coloque o sujeito em outra posição. É nessa dimensão alteritária por excelência que o eu deixa de coincidir consigo mesmo.

Muitas vezes, não temos a reflexão nas redes sociais, em grupos de discussões, nem mesmo nas salas de aula. E por que não? Porque nem sempre conseguimos exercitar o câmbio de bolhas; porque nem sempre estamos dispostos a nos dirigir a quem pensa diferentemente de nós; porque muitas vezes ficamos apegados às explicações já esquematizadas ou aos rituais escolarizados em que o produto desejado nem sempre é o pensar.

A reflexão está na capacidade de se distanciar e estranhar o outro em relação a si mesmo, a fim de construí-lo, isto é, colocar-se do lado de fora da individualidade percebida pela empatia, separar-se e, depois, promover um retorno a si mesmo.

Experimente dar ao pensamento de alguém um empurrão e verá que ele logo cai, e tanto o que empurra quanto aquele que é empurrado produzem algo chamado discussão, diálogo.

Quando penso em polifonia, a partir das notações musicais, é fascinante pensar que mesmo uma monofonia pode ser polifônica, ou seja, onde há alguma produção de melodia pode haver polifonia. A elaboração de melodias demanda regularidades e exige que se cumpram algumas exigências harmônicas; é necessário levar em conta elementos como linearidade, textura, proporcionalidade, alternância etc.. É sempre uma tarefa que responde ao disciplinamento musical de tons, de tempos e de chaves.

Só não há polifonia musical, pode-se dizer, quando ocorre a monodia: quando há um único canto, a uma só voz, sem acompanhamento instrumental. E mesmo assim, quando o estilo monódico é colocado no corpo de uma ópera, ele também passa a construir certa polifonia.

E por que falo disso?

 

Estou pensando que a subjetividade moderna está vinculada a um modo de exercício do poder que tem entre suas principais táticas a exposição do indivíduo comum à tamanha visibilidade, que o impede de enxergar o outro e o faz seguir isolado.

Parece uma ilha de entre-tenimento, em que todos falam sem parar, sem alternância, sem textura ou profundidade, não há melodias que possam construir campos harmônicos. Desrazão.

O mesmo se repete em outros espaços, onde se proliferam as publicações, os periódicos, os eventos, os grupos…

Riobaldo Tatarana já nos advertiu: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”.

 

Cristina Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

Domingo: um epigrama

EPIGRAMA

Avisando alguém Inês

para deixar o marido,

que anda entre putas metido,

ela disse dessa vez:

 

“Bem que eu veja claramente

o mal que faz ao deixar-me,

não irei dele aforrar-me

mas desforrar-me, contente”

Baltasar del Alcázar (1530-1606). Tradução de José Bento. Rosa do Mundo. 2001 poemas para o futuro. Lisboa : Assírio & Alvim, 3a. ed. 2001, p.897.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Textos sobre textos: Prisão Perpétua

O escritor argentino Ricardo Piglia reúne neste volume uma novela brilhante – título do livro – e mais seis excelentes contos relativamente longos. Do ponto de vista da construção narrativa, chama atenção os “narradores” postos a falarem em cada um dos componentes desta coletânea. Do ponto de vista sociológico, merece destaque o fato de que seus heróis são, todos eles, sujeitos marginais, que agridem a normalidade bem posta do herói romântico. Ao contrário, são tipos que ninguém pretende imitar, mas que por isso mesmo, na sua vida “fora do estatuído”, trazem reflexões extremamente poderosas para se entender o cotidiano, a rotina, a ordem.

Iniciemos pela novela: o narrador começa a lembrar conselho de seu pai, para depois afirmar que deve escrever sobre si próprio, e não sobre seu pai. Chama ao texto um diário que começou a escrever mais ou menos na época em que seu pai, um médico peronista perseguido, muda-se de Buenos Aires para o interior (Mar del Plata).

A novela é recheada de pequenas narrativas, anotações, todas supostamente retiradas do Diário. Algumas destas narrativas são contos curtos. Outras vezes o que temos é uma sequência de aparente anotações de extraio o exemplos

A caça de elefantes. Se a literatura não existisse esta sociedade não se daria ao trabalho de inventá-la. Seriam inventadas as cátedras de literatura e as páginas de crítica dos jornais e as editoras e os coquetéis literários e as revistas de cultura e as bolsas de pesquisa mas não a prática arcaica, precária, anti-econômica, que sustenta a estrutura.

A situação atual da literatura sintetizava-se, segundo Steve, numa opinião de Roman Jakobson. Quando foram consulta-lo sobre o oferecimento de um cargo de professor em Harvard a Vladimir Nabokov, ele disse: Senhores, respeito o talento literário do Nabokov, mas a quem passa pela cabeça convidar um elefante para ministrar aulas de zoologia?

A estúpida e sinistra concepção de Jakobson é a expressão sincera da consciência de um grande crítico e grande linguista e grande professor que supõe que qualquer pessoa está mais apta a falar da arte da prosa que o maior romancista deste século. A autoridade de Jakobson permite-lhe enunciar o que todos seus colegas pensam e não têm coragem de dizer. Trata-se de uma reivindicação de classe: os escritores não devem falar de literatura para não tirar o trabalho dos críticos e dos professores.

É nesta cidade de Mar del Plata que o narrador-personagem conhece seu outro, e que dominará toda a novela: Steve Ratliff, o “inglês”. A este, o narrador atribuirá seu destino de escritor pois foi ele quem o colocou em contato com a literatura norte-americana. Encontram-se os dois no bar Ambos Mundos. Amiudadamente. Num destes encontros, Ratliff entrega ao jovem narrador um original seu: um conto “O fluir da Vida”, narrativa com que se encerra esta novela. Do começo deste texto, duas passagens: “Um homem prisioneiro de uma história, empenhado em conta-la até demonstrar que é impossível esgotar uma experiência. […] Um narrador, diz o Pássaro, deve ser fiel ao estado de um tema. Busca surpreender num espelho os reflexos de uma cena que acontece em outra parte. O relato está ligado às artes divinatórias, diz Pássaro. Narrar é transmitir à linguagem a paixão do que está por vir.  

Ratliff, efetivamente, havia se apaixonado por uma mulher (Pauline O’Connor). Ela o abandonou para se casar com um engenheiro que veio trabalhar na Argentina. Ele seguiu seus passos. Veio para a cidade em que morava o casal. Por alguma razão que não se explicita na narrativa, Pauline matou seu marido e entregou-se à polícia. Ela passou a viver na prisão. E ele viveu perpetuamente na prisão do amor por esta mulher.    

Atas do julgamento é o primeiro conto. Trata-se de um depoimento de um acusado de ter assassinado um general (caudilho uruguaio). A palavra, uma vez introduzida pelo narrador, passa a ser somente do acusado Rebustino Vega. O que se narra são as constantes escaramuças entre federados e “centralistas”. O general reunia seus homens para pelearem. Numa destas ocasiões, fez o grupo fugir sem ter enfrentado o inimigo. Diziam que tinha se vendido! Desde então o general estava “morto”, e o que fez o acusado era o que ele tinha que fazer.  Foi por isso que fiz o que fiz. Mas já tinha acontecido antes, naquela noite no Bajos de Toledo, enquanto a chuva não deixava que a gente respirasse tomando todo o ar. Foi dessa vez que aconteceu. E não foi por diversão. Nem por medo de lutar, como andam dizendo, mas por coragem e porque o General já não mandava nem nele mesmo. E foi dessa vez que nós falamos para ele. O que aconteceu depois, foi como se não tivesse acontecido.

A caixa de vidro. Este é um conto que tematiza a amizade e a não-ação no momento necessário. Rinaldi, a personagem central, dentro de um parque encontra um menino que lhe entrega uma caixa de vidro – um jogo, golf. O menino sobe uma torre, e do alto vê a cidade. Quando começa a descer, um dos suportes se desprende e o menino cai e morre. A descrição deste momento entre os tateios em busca do apoio e a queda, enquanto Rinaldi assiste a tudo sem nada dizer e nada fazer é a parte mais tensa do conto. Depois deste acidente, Rinaldi – que vivia numa pensão sozinho – convida para viver com ele o narrador da história. Mais uma vez aparece um Diário em que Rinaldi registra suas impressões sobre o que vive. Há uma mulher: Aurora. E Rinaldi vive confinado, acompanhado daquele que recolheu e cuidou e que agora o cuida. “Não é preciso falar. Olhamo-nos em silêncio. Nada como um segredo para unir os homens. Se esta compreensão é o que o mundo chama de amizade, as relações entre mim e Rinaldi são, sem dúvida, de amizade.”

Anotações sobre Macedônio num diário. Todo o conto são as anotações, a primeira de 5.VI.62 e a última datada de 9.X.80. Aqui o tema é a própria literatura, o narrar. Na primeira anotação, anota-se que o Prof. Carlos Heras fala sobre Macedonio Fernández, um promotor que teve a glória de conseguir que a absolvição de todos os réus que lhe caíram nas mãos. Era um escritor e teria feito notas manuscritas no exemplar de Una novela que comienza existente na biblioteca. O narrador vai em busca deste livro e todas as discussões que se seguem partem das notas de Macedonio, ao mesmo tempo em que se narra um pouco sua vida e seus modos de enxergar a vida. Eis um de seus pensamentos: “Para evitar o contágio nesta sociedade que agoniza corroída pela avidez de dinheiro e honras, é preciso isolar-se das correntes do meio e ignorá-las: não compreender como as crenças dominantes podem ser o que são.” O conto se encerra com outra reflexão, esta a propósito da literatura, expressa pela personagem Renzi: “Qual é o problema maior da arte de Macedonio? O pensar, diria Macedonio, é algo que pode ser narrado como se narra uma viagem ou uma história de amor, mas não do mesmo modo. Parece-lhe possível que num romance possam se expressar pensamentos tão difíceis e de forma tão abstrata como numa obra filosófica, mas sob a condição de que pareçam falsos. Essa ilusão de falsidade, disse Renzi, é a própria literatura.”

O preço do amor. Este conto focaliza a relação homem/mulher. Um homem que se incapacitou para viver e que era sustentado pela mulher (Adela). Desaparece e reaparece no apartamento da amada, inicialmente como se viera para fazer amor, mas na verdade vinha buscar dinheiro. Dinheiro que a mulher lhe dá, este o preço do amor.

O Laucha Benitez cantava boleros. Uma história de um boxeador mal sucedido. Sua glória maior foi ter se mantido em pé numa luta com um campeão do box, Archie Moore, numa espécie de luta-ensaio para o qual a personagem central, Viking, se voluntariou. Uma foto dos dois no jornal El Gráfico acompanhará Viking pela vida. Sem lutas, acabou entrando numa troupe e se apresentava no interior lutando num ringue em praças públicas. Ao retornar a Mar del Prata, vai ao ginásio – Club Atenas – onde encontra Laucha, um ainda garoto que treinava para se tornar boxeador. Os dois passam a viver juntos. Até que numa noite que ninguém viu, Viking acaba matando Laucha, a socos. Depois disso é internado num hospital psiquiátrico, onde o narrador o encontra para recuperar a excelente história que aqui narra.

A louca e o relato do crime. Uma louca assiste a um crime. Emílio Renzi é encarregado por seu jornal para acompanhar a história. Como a polícia já apresentava o suposto criminoso – Juan Antúnez, que vivia com Larry, a mulher assassinada. Juan ao sair de cena, diz ao repórter que ele era inocente. Ele acredita na inocência e vai ouvir inúmeras vezes as falas da louca Anahi, que repete sempre a mesma história de seu amor por Bairoletto. Repete, repete. Emilio Renzi grava suas falas e usando de um método “linguístico”, vai coletando das falas precisamente palavras que emergem no relato e diferenciam um do outro. Todos pareciam iguais, mas não eram. Com as palavras que emergiram no delírio, Emílio Renzi obtém o testemunho: “O homem gordo esperava por ela no saguão e não me viu e lhe falou de dinheiro e brilhou esta mão que fez ela morrer”. O homem gordo era Almada, ex-amante e efetivamente o assassino. O editor do jornal, no entanto, não aceitou a versão de seu repórter, pois um jornal jamais deve desmentir a polícia! Pede-lhe que escreva um texto curto, confirmando a versão policial e o nome do assassino que fora apresentado à imprensa. Emílio Renzi debruça-se sobre sua máquina de escrever e escreve: Gordo, difuso, melancólico, o terno de sarja verde-piscina flutuando em seu corpo, Almada saiu ensaiando um ar de secreta euforia para tentar desfazer seu abatimento. Este parágrafo final do conto é precisamente o mesmo que o inicia, de modo que o leitor, ao final, descobre que o repórter escreveu o conto que acaba de ler.

Referência

Piglia, Ricardo. Prisão Perpétua. São Paulo : Iluminuras, 1989.

Texto de Arquivo XXIV: A propósito do outro: imagem, construção e cumplicidade

Nota prévia

Este texto foi escrito para a mesa-redonda “De leitor para leitores: a produção do que se lê”, proposta por mim para o 7º. COLE, realizado de 8 a 10 de setembro de 1989. Foi publicado nos anais do evento. A ideia era puxar outros fios na malha das leituras. E esta mesa em especial trouxe a voz de autores (dois autores de literatura: Nilma Gonçalves Lacerda; Marcos Rey e Lucy Ayala), um jornalista (Jeferson Barros), uma editora (Lucy Ayala, da revista Sala de Aula) e uma crítica de literatura (Marisa Lajolo). O texto do coordenador deveria funcionar como ponto de partida para a discussão da mesa e desta, do público. Tinha-se em vista o processo de produção do que se lê, por isso a seleção dos expositores, passando por diferentes esferas de uso da língua escrita como instrumento essencial do trabalho de cada um. O resultado está nos Anais, hoje disponível, talvez, em algumas bibliotecas universitárias.

A propósito do outro: imagem, construção e cumplicidade

O senhor… Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. (Guimarães Rosa)

Possivelmente não causa qualquer perplexidade o fato de se encontrarem aqui, no tempo e espaço desta mesa-redonda, num congresso que reúne pessoas (pre) ocupadas com a leitura, pessoas que se dedicam à produção do que se lê: por mais amplo que possa ser o conceito dado à leitura, há sempre um objeto que se lê. A leitura é sempre, no mínimo, um predicado de dois lugares: tanto exige uma agente/leitor quanto exige um objeto que se lê.

Ultimamente nossas preocupações vêm focalizando um dos argumentos deste predicado: o leitor. Mas o foco não paga a obviedade da existência do objeto lido ou a ser lido. E este objeto de leitura tem atrás de si um agente/autor. Reúnem-se, pois, as duas pontas de um mesmo fio – autores e leitores – para discussão no espaço de seu encontro: o meio caminho em que significações se produzem, o texto.

Talvez a perplexidade maior advenha da circunstância de se reunirem. Numa mesma sessão, pessoas que se dedicam diferentemente à produção de textos: autores de ficção, jornalistas e críticos. Estes, sem serem cidadãos acima de qualquer suspeita, têm como seu objeto de trabalho precisamente o que os outros dois produzem. A inexistência de textos deixaria sem emprego a crítica, ainda que esta viesse – se isto fosse possível – a produzir, em abstrato, poderosos instrumentos de análise. Os jornalistas, por seu turno, tomam a objetividade e a transparência por bandeira: em seu trabalho a referência ao mundo factual (e a verdade desta referência) é o fio condutor com que tecem sua tapeçaria (para tomar à ficção uma imagem). Aos ficcionistas não se pede qualquer evidência factual: não tratando do mundo que é, constroem um mundo que não é para falarem de um mundo que é, que poderia ter sido ou que, sem sua construção, foi. Utilizando-se da mesma linguagem, anulam as convenções de verticalidade para beneficiar-se da construção de outros horizontes (para tomar, agora, à ciência uma imagem).

Para nós leitores, produzem os três, em seus textos, categorias que unidas ou contrapostas às categorias com que os lemos nos permitem não estar sempre iguais, andando no afino e desafino da verdade maior de Guimarães Rosa.

É, pois, o texto, objeto concreto de entrecruzamento de nossos interesses. Mas sua concretude não quer dizer acabamento: o texto produzido completa-se na leitura. Neste sentido, o texto é condição para a leitura e a leitura vivifica os textos.

Aceitando-se esta via de mão dupla, é possível aproximar-se do texto com uma perspectiva interacionista da produção da significação: o texto sozinho (como o locutor no diálogo) não é responsável pelas significações que faz emergir – o que cria um primeiro problema para os textos que se querem transparentes: o leitor não é totalmente livre na construção das significações, já que um dos instrumentos com que opera nesta construção é precisamente o texto presente, cujo processo de produção manuseia também as mesmas ‘regras’ de interpretação existentes numa “comunidade interpretativa”, de que o autor é parte.  Mesmo textos produzidos em épocas distantes, lidos hoje, quando de sua produção levavam em conta as condições de interpretação existentes – o trabalho dos filólogos o mostra. Hoje, evidentemente, recebem tais textos significados outros, até pelo simples fato de existirem outros textos disponíveis, como aponta Bourdieu.

Neste jogo, o autor aposta nos “deveres filológicos” do leitor empírico, fornecendo-lhe pistas de interpretação (embora não possa dirigir todos os usos que diferentes leitores podem fazer do texto que produziu); por sue turno, o leitor toma essas pistas como instrumentos legítimos para a construção dos significados dos textos que lê. A partir daí, suas leituras seriam leituras legitimáveis. Mas na parceria do jogo, nenhuma jogada é em si e de per si neutra: em cada jogada, calculam-se possibilidades, correm-se riscos. E os parceiros tornam-se co-agentes. E cúmplices. O outro é a medida das minhas jogadas.

Esta presença do outro lembra de imediato uma passagem do Log-book de Robinson Crusoé, na versão de Michel Tournier (p.47):

“Sei agora que todos os homens trazem em si – e dir-se-ia, acima de si – uma frágil e complexa montagem de hábitos, respostas, reflexos, mecanismos, preocupações, sonhos e implicações, que se formou, e vai se transformando, no permanente contato com os seus semelhantes. Privada da seiva, esta delicada florescência definha e desfaz-se. O próximo, coluna vertebral do meu universo… Todos os dias meço quanto lhe devia, ao verificar novas fendas no meu edifício pessoal… […] As personagens dão a medida e, o que é ainda mais importante, constituem pontos de vista possíveis que, ao ponto de vista real do observador, acrescentam indispensáveis virtualidades.”    

Na angústia do náufrago, do solitário, a constatação do OUTRO como constituinte do EU (1). Com o outro compartilhamos um universo comum de referências, códigos de ética, de comportamentos, etc. e na história do vivido , construímos cumplicidades.

Um exemplo desta cumplicidade, em que o narrador narra a própria construção narrativa, pode ser retirada de “Ópera do Sabão” (p.63) narrando-nos uma cena em que Adriana se autocontempla, levanta-se e vai tomar banho; o narrador abre o seguinte parágrafo:

“Impossibilitado de olhar através da porta que Adriana fechou, levo a minha narração ao bairro da Vila Mariana, para constatações e prenúncios.”

Lá, encontrava-se Manfredo, pai de Adriana, visitando a professora de piano, Deolinda:

“… Então, Deolinda sorriu para Manfredo, sentou-se à banqueta, abriu o piano e começou a tocar Ernesto Nazaré.

O narrador, às vezes, não pode perder tempo com uma boa interpretação musical. Ele, que já fora Ícaro e virara Superhomem, para acompanhar o progresso da imaginação criadora, projetou-se ao centro da cidade, Barão de Itapetininga, onde a Nênfis Propaganda. Agência de porte médio, ocupava dois andares.”

Lá, encontra Benito, filho de Manfredo. E a narrativa retoma seu fio.

Estas colocações iniciais não se pretendem um pano de fundo da discussão que passa a rolar neste encontro. Fragmentos são, antes de mais nada, uma tentativa de construir o caminho para algumas perguntas que também elas podem ou não serem retomadas nas exposições.

  1. Como aqueles que militam na produção artística, na produção jornalística e na produção crítica imaginam os seus leitores e como estas imagens interferem, ou não, na construção de seus textos?
  2. No micro movimento histórico das expressões linguísticas, a cada texto as expressões não são simplesmente retomadas com significados fixados pelos usos anteriores desta mesma expressão, mas a cada vez, na retomada, re-significam e neste movimento as modificam. Seria adequado dizer que o autor de textos jornalísticos “luta com as palavras” para produzir um significado determinado para seu texto, enquanto que o autor do texto ficcional. Liberado das necessidades verticais de referência ao mundo, “luta com as palavras” para produzir significados múltiplos?
  3. Considerando que cada texto é parte de um universo de discursos mais amplo, seria adequado dizer que um dos trabalhos da crítica, face a um novo texto, seria situá-lo na intertextualidade de que faz parte? Caso a resposta seja afirmativa, a remessa a outros textos considera as possibilidades de tais textos serem conhecidos pelo leitor da crítica?

Nota

  1. A Robinson, de Tournier, importa mais o processo da “destruição” do eu constituído com os outros e a construção de outro EU, sem TU. Um eu-Robinson que recusa o retorno, que fica na ilha sem Sexta-feira.

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. Lecture, lecteurs, lettrés, littérature. In. _____ Choses Dites. Paris, Minuit, 1987.

ECO, Umberto. O leitor-modelo. In. __ Lector in fabula. Trad. Attílio Cancian. São Paulo, perspectiva, 1986.

LACERDA, Nilma. Manual de tapeçaria. Rio de Janeiro, Philobiblion, 1986.

REY, Marcos. Ópera de sabão. Porto Alegre, L&PM, 1980.

SEARLE, John B. The logical status of fictional discourse. In. ______ Expression and meaning. Cambridge, Cmabridge University Press, 1979.

TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico. Trad. Fernanda Botelho. São Paulo, Difel, 1985.

O falso prazer das prostitutas do mercado

Em viagem para o interior do Paraná, onde visitei minha mãe com 100 anos e que sofrera um  AVC que – para surpresa de todos – está superando, hospedado num pequeno hotel, entro pela manhã para o café e a TV está ligada. Obviamente, na Globo! O império impõe.

E eis que assisto, mesmo não querendo, a um trecho de um jornal. A âncora com sorrisos e muitas alegrias, anunciava o aumento dos empregos graças ao carnaval. Salientava ainda o empreendedorismo que estava fazendo a economia alavancar! Quem escutou e levou a sério o noticiário, certamente está apostando que o crescimento econômico brasileiro é uma verdade, de causar prazer às prostitutas do mercado. Nem precisa ser prostituta do mercado e no mercado para perceber este “avanço na economia”: aumentou, segundo elas eles, o empreendedorismo, com muita gente vendendo balas e água nas esquinas; entradas de garagens transformadas em “mercadinho” vendendo de tudo um pouco… É isso que saúdam sorrindo da miséria alheia.

Provavelmente a âncora, aos sorrisos de má fé, pensava com seus botões sobre como organizar sua microempresa com CNPJ para prestar serviços à Globo, depois de ter sido chamada ao Departamento de Pessoal que modifica os contratos com base na nova legislação do trabalho, a mesma legislação que ela muito elogiou. O prazer com o suposto crescimento seria real ou falso? O medo de que seu contrato venha a se tornar de trabalho intermitente, com as horas de apresentação do jornal, deve estar mexendo com a cabeça da moça: será uma empreendedora com registro de CNPJ. Tudo pelo mercado, até o falso prazer das notícias analisadas de uma forma quase pueril. Mas os coxinhas gostam, ainda que tenham perdido emprego.

Hoje caminhei pelo centro da cidade, Campinas. A quadra que fica entre um dos lados da Catedral e os bancos do Brasil e Itaú foi transformada em dormitório. Por ali moram os afortunados excluídos do neoliberalismo financeiro. É espantosa a lição: alguns abrigam-se na entrada do Banco Itaú, cujo lucro no último balanço (2017) foi de 24 bilhões, num crescimento de 10,7% em relação ao ano anterior. Mas não se diga que o Banco Itaú não é generoso com os excluídos: oferece-lhes o abrigo curto de sua entrada para serem as novas moradias do crescimento de que as prostitutas e prostitutos tanto se ufanam. E vale uma nota: o orçamento do Bolsa Família em 2017 foi de 17,1 bi. Para 2018, está previsto o valor de 28,2 bi. Realmente, um absurdo para as prostitutas do mercado. É preciso que os rentistas abocanhem este dinheiro que é para milhões, para que os lucros se tornem mais substantivos e sempre na ordem dos bilhões.

Mas também confirmei a notícia da âncora em seu comentário lido no “pronpt” que lhe prepara sua contratante: a presença de infindáveis novos empreendedores, que o ministro-fantasma Henrique Meirelles, aquele que não se cansa de anunciar aos jornais que o mercado insiste que ele se torne presidente da república, que o tal ministro, repito, aponta como sinal de crescimento e confiança na economia brasileira. Diz ele que surgiram muitos novos empreendedores.

São microempresários oferecendo de tudo: “água geladinha! Olha a água geladinha…”; “Olha a bala! Olha a bala!”; “Aqui, aqui! Só 5 reais o pano de prato!”;  mas há também entre estres microempresários aqueles que usam uma voz chorosa e pedem “me ajude, compre esta bala (de goma)”. E por aí vai o crescimento cantado em prosa e verso: uma cacofonia típica de nossas cidades no mundo globalizado do neoliberalismo. Logo, logo, algum fiscal da Receita Federal vai aplicar multas a estes empreendedores que não estão declarando seus vultosos lucros. A mesma Receita Federal que dispensa de pagamentos de valores assombrosos o Itaú, a Globo, e todos mais que os prostituem.

Mas há também os novos empregados, os novos empregos intermitentes, empregados que mostram sorriso nenhum, mas tristeza: entregam papeis impressos oferecendo serviços dos seus patrões provisórios: o sorriso dental; compro ouro; a vidente Professsora X está na cidade; liquidação total de biscoitos… São aqueles papéis que a gente vai pegando para ajudar o que os distribui e que coloca no primeiro lixo que encontra. Tudo gente empregada! Para o ministro, símbolo do desenvolvimento e da confiança na economia brasileira. E as prostitutas e os prostitutos do mercado batem palmas: castas, leitoas e fragas… que agora começaram a resmungar: eleições prejudicam o mercado!!!

PS. Esta crônica já estava pronta antes da intervenção e antes da retirada da PEC da Reforma da Previdência!!! Estas mesmas prostitutas e prostitutos do mercado e no mercado voltarão, agora, a serem urubólogas e urubólogos!!! Não vão deixar barato esta decisão “populista” do Temeroso. Gritarão, gritarão pela Reforma… são mesmo fdp.