A paz enfurecida, de Ascêncio de Freitas

A paz enfurecida, de Ascêncio de Freitas

Mias uma vez o escritor português nascido na Gafanha de Nazaré nos leva para Moçambique, país em que viveu por mais de 30 anos e ao qual, pela literatura que dele conheço, está intimamente ligado. Seu ambiente é a África, e nela, Moçambique. Os contos que compõem E as raiva passa por cima, fica engrossar um silêncio tem o mesmo ‘topos’, ainda que em seus dois conjuntos remetam a tempos e lugares distintos da vida de seus narradores: África e Portugal.

Neste romance há um só narrador onisciente, que nos conta uma história como se estivesse falando. E como bom narrador, entremeia o enredo com reflexões sobre os acontecimentos em que estão envolvidos seus personagens. São dois os personagens principais:

Nuno Sabino, branco nascido em Moçambique. Jornalista (de uma cidade do interior, não em Maputo) que defendeu sempre a independência do país, que sonhou com a justiça e com o convívio das diferentes culturas num espaço de soberania e liberdade;

Comandante Damião, na verdade o ex-padre Gaspar Mouzinho Chivale, negro, guerrilheiro da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), idealista e libertário.

Do ponto de vista cronológico, o enredo remete a quatro períodos distintos da história: 1. a guerra da independência; 2. o primeiro governo da Frelimo (Presidente Samora Machel); 3. a ‘paz enfurecida’ da guerra civil, comandada pela Renamo (Resistência Nacional Moçambicana); 4. o processo de negociação de paz conduzida pelo governo de Joaquim Chissano, sucessor de Samora.

A narrativa se inicia com o espanto do narrador e sua tentativa de compreender a razão de Nuno Sabino ter buscado a morte em alto mar. Desde já este é apresentado como um branco que tinha amizade com os pretos, que queria a independência, que não deixava de sonhar com a liberdade para todos. Encontrar a compreensão das razões de Nuno Sabino será o desenvolvimento da história, e vamos encontrar a personagem em meio à luta pela independência, que já durava anos. Nuno Sabino viaja pelo país, muito frequentemente ausente de casa. Eis a razão para sua mulher, Dona Jorogina, abandoná-lo. Mais tarde ela voltará para Portugal com seu filho Miquelito.

Por seu turno, Nuno decide por uma ausência ainda maior: quer entrevistar o Comandante Damião, no meio da floresta. Será aí, no campo de batalha, que ambos se conhecerão e estabelecerão uma amizade que perdurará ao longo de toda a narrativa. Quem patrocina o encontro é um amigo comum: Zé Pedro, um civil que apoiava a Frelimo, estabelecendo elos entre os guerrilheiros e a cidade.

Deste encontro dos dois heróis, extraio da conversa uma passagem de seu diálogo:

[do Comandante Damião] … Quer saber uma coisa? … Por propensão natural minha, não gosto da guerra… Sou de lua recolhida no que respeita às grandezas do poder… e as armas de fogo são como um relâmpago que cega todos asqueles que as apontam ao seu semelhante. Elas dão-nos um incerto poder, mas sempre me deixam duvidando da minha sensatez. Daí é que penso que a guerra é o que mais mostra o pouco que valem os homens – o fio de sua vida e o seu egoísmo, o seu coçar para dentro, como o macaco.

A guerra da independência unia todas as forças moçambicanas, incluindo descendentes de portugueses. Com a Revolução dos Cravos em Portugal, rapidamente se encerra a chamada “guerra colonial” e Moçambique torna-se independente. Samora assume o governo, e se inicia o processo de implantação do regime socialista, com apoio soviético. E novas atrocidades, em nome do “marxismo leninismo” são praticadas, com uma plutocracia. Serão inúmeros os episódios contados. Foi neste tempo que apareceu o Comandante Damião na casa de Nuno Sabino e lhe disse:

– O Comandante Damião vai morrer amanhã, para eu poder ressuscitar. A propósito, o meu nome verdadeiro é Gaspar. E com esse meu nome que eu vou renascer: Gaspar Mouzinho Chivale. E quero ver se consigo renascer sem ódio de ninguém, com uma vida completamente nova pela frente, mas sem ser senhor de certeza nem de verdade nenhuma. Renascer… como quem sobe dos infernos e vê a luz do sol pela primeira vez. Mas por enquanto o meu verdadeiro nome é só para você conhecer … e mais ninguém. Para saber que tem um amigo chamado Gaspar Mouzinho Chivale – só isso.

Das prisões realizadas pela Frelimo, escapam alguns dos antigos guerrilheiros que discordavam dos rumos dados ao país. E formam a Renamo, que retoma a guerra nos campos e florestas, ajudados primeiro pela então Rodésia e pela África do Sul, sem que o governo de Samora tomasse providências. Com a independência da Rodésia, que passa a se chamar Zimbabwe, e com os acordos com a Tanzânia, Zâmbia e Botswana, pensava Samora que a guerra civil iria acabar. Não acabou, como se sabe, e durou mais de quinze anos.

Inúmeros serão os episódios que serão narrados de uma vida cotidiana em que era preciso sobreviver em meio ao fogo cruzado de dois inimigos: a implantação a ferro e fogo do socialismo e a guerra levada a efeito pela Renamo nos interiores do país, deixado de lado porque somente nas cidades viviam os “proletários”…

Sobreveio a grande seca – e uma barriga com fome não tem lei – recrudesce a guerra civil. Quis o Comandante Damião fazer frente à Renamo: conversou com o Presidente Samora que não lhe autorizou um ataque de guerrilha aos adversários do regime. E assim cada vez mais a Renamo avançava no território, praticando torturas, queimando machambas (pequenas lavouras), roubando e estuprando as mulheres das pequenas aldeias. Enquanto isso, o governo fazia sua pregação:

Ah! Mas com aquilo do marxismo-leninismo o governo e o Presidente Samora fizeram a mais maior confusão. Por causa que o povo não conhecia mais o que era o verdadeiro de ser. Vinha uma pessoa, fosse o governador da província ou fosse mesmo o Presidente Samora, propriamente, fazia banja e falava, falava, falava, permanecido no seu discursar. E perguntava: “Vocês sabem o que é o socialismo?” Toda a gente ficava-se calado – em motivos que ninguém sabia nada daquele assunto. E ele teimosava, muito chateadíssimo, com a voz de zanga: “Sabem ou não sabem?” Xi! Assim sem ninguém de primeiro estar em acordo, só em causa do medo todos e todos falavam igual resposta: “Sabemos!”. Mas aquilo eram as enganadoras palavras. Então – o povo quando que está a falar falsamente uma coisa, como passarinho pequeno mal-acordado na sua vida e nas ignorâncias do canto, está a conhecer direito o pio que à-toa assopra no seu bico? Não pode! Por causa que o pintoinho quando que começa o seu fino piar não pode, xi!, não aguenta cantar como galo. Mesmo quando que ouve o seu pai cantar as madrugas ele nunca que vai conseguir de cantar igual sem crescer-se primeiro.

Começa aí a grande decepção do Comandante Damião e do jornalista Nuno Sabino. Afinal, não fora para isso que lutaram na guerra da independência. Em função da ideologia, todos passavam a reacionários e crenças e costumes tinham que desaparecer:

… Se uma qualquer pessoa tem desejo de falar só a sua língua e praticar sem nenhum temor a religião da suas velhas famílias antespassdas, ou só guardar o costume das suas tradições por querer desacostumar de acietra os sofrimentos do tempo do mando dos brancos, e mesmo sem sonhar de conseguir nenhuma vingança com ninguém – isso é ser criminal e reacionário?

Um dos redatores do jornal que Nuno Sabino vinha dirigindo desde a independência é demitido por ter feito crítica aos desacertos do governo. Nuno toma para si as dores: demite-se do jornal e agora, todos os dias inventa a coragem de novas formas de sobrevivência. Em sua casa vive também o Comandante Damião. Como a Renamo avançava cada vez mais, cometendo inúmeras atrocidades, o comandante decide que irá até o quartel-general do atual dirigente, já autodeclarado Presidente, o generalíssimo Dhlakama. O Comandante Damião some nos matos, decidido a fazer justiça matando o chefe dos matsangas (os guerrilheiros da Renamo receberam este nome derivado do nome de seu primeiro presidente, André Matsangaíza). Nuno fica sem notícias dele e vai levando a vida, agora num novo romance com Lili, que fora salva dos campos de reeducação por influência de seu amigo comandante, e depois fora trabalhar no jornal que ele dirigia.

Depois de mais ou menos 11 anos da independência, Samora faleceu em 1986 e foi substituído por Chissano, que não enfrentou a Renamo, mas iniciou as negociações de paz, conduzidas por Roma.

Como Lili fica muito doente e resolve voltar para Portugal, Nuno Sabino fica solitário, mas recebe surpreso a visita de seu filho Miquelito, já homem feito. Veio passar as férias com o pai, para conhecê-lo e se conseguisse, convencê-lo a voltar para Portugal.  Não consegue e quando retorna, deixa novamente Nuno solitário. Este resolve, então, procurar seu amigo, o Comandante Damião, e para passar pelo cerco de sua segurança, alega que quer entrevistar Dhlakama, porque com o avanço das negociações de paz, ele se tornaria o futuro presidente de Moçambique.

Consegue chegar ao acampamento. E lá ouve a voz de seu amigo, falando em Latim, repetindo sempre as mesmas frases – memórias de seu tempo de Pe. Gaspar. Ele fora encontrado pelos matsangas completamente louco e trazido para o acampamento. Dhlakma poupou sua vida, pois reconheceu nele o velho companheiro da luta pela independência.

Assim, descobre Nuno que já nem seu amigo “existia” no corpo magro, barbudo e cabeludo, que frente as crianças ensinava “Gloria in excelsis Deo!…. Firmum in vita nihil…” e as crianças em coro repetiam “Glorinselsideu… Firminvitanilo!…”.

Retorna Nuno mais triste do que foi: embarca numa canoa de pescador e perde-se no meio do oceano.

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Esta narrativa é acompanhada por inúmeras reflexões filosóficas, políticas, sociais, independência, autodeterminação, relação entre o indivíduo e a sociedade, multiculturalismo moçambicano, etc. Esta uma das razões por que este livro não pode ser lido de um fôlego só: o enredo ficcional serve ao autor para colocar na voz de seu narrador um conjunto extenso e complexo de informações, de reflexões e de decepções com a independência dos países africanos.

Mas há também, para aqueles que gostam da linguagem, paradas obrigatórias. O autor domina a linguagem, conhece a fundo os modos de falar moçambicanos, enriquece a língua portuguesa tanto em seu léxico quanto em sua sintaxe. O convívio com a linguagem de uma obra de arte somente pode ser realizado pelo leitor, num contato direto com a obra. Impossível chegar a qualquer ‘êxtase estético’ pela voz de um comentário: é preciso ir à obra (seja ela da natureza que for). Assim, apenas para dar água na boca, eis algumas passagens:

… e em trabalhos de fogo começou de despejar balas no ar – feito fosse o esfrio de um enxame de muitas abelhas em ameaço de doida ligeireza para picaçar o mundo todo inteiro.  

desdormiu-se, completo, quando que sentiu o afogo de ouvir a manhãzinha também se acordando, maravilhã, auroreal, xi!, a luz se ressurgindo-se das trevas do mundo – tempo de viver! Diversagem de passarinhos piavam seguidamente os seus milpios, madrugantes, entodados uns nos outros feito como que era musiquinha caprichada-bonita de boa paz e assossego.

… a noite sempre é o desamadrugras e o anoitecer.

… Não dizem que aos poucos e pouco o escuro da noite se clareia é amanhecendo?

… mas é falsamente que a gente aprende as alegrias do viver, por causa que ninguém aguenta de ficar sempre a mesma pessoa quando que está no meio da tristeza.

… Consigo falava sozinho, meditabundante.

… todo bicho, enquanto vivo, raiva silêncios quando que perde a sua liberdade.

… Ele queria se demitir do viver e por em causa disso tinha ido sembora à procura de uma morte qualquer? Feito a correnteza de um rio que parece conhecer que sempre vai dar ao mar para deixar de ser, e nunca que pára para evitar-se do que está adiante no seu caminho?

… na vida da gente o vento assopra em remoinhos, e tudo fica em escuridões quando que ele alevanta suas poeiras.

… A vida da gente nunca que ninguém pode adivinhar, antescipado, como que ela vai ser no seu termo real. […] … nossa vida sempre podem mais a dor e a alegria do que essas novidades dia-diárias que fazem a doidagem do viver.

… Segundo o que, no seguinte amanhecer, escutou que não se ouvia nem um riso de passarinhos nem o corioquê-quê dos galos – só vozes de gente desadormecida em dormência de um silêncio aquase por completo.

… E nunca que se sabe qual que é o poder das palavras que cada um solta na sua boca – os azares da vida.

… O outro, pela mansa, como desbulhando camisa de maçaroca de milho, para depois, numa brama de ordens, mandar forte castigo nele, prisionar definitivo em malvadeza de tratamentos de corpo – quem sabe até matar sem maiores artiofícios?

Lendo estas passagens, quem não lembra de Guimarães Rosa, de Mia Couto e de Manoel de Barros?

 

Referência. Ascêncio de Freitas. A paz enfurecida. Lisboa : Editorial Caminho, 2003.

Um conto sem valor algum

Um conto sem valor algum

Naquela noite, ele tinha chorado muito.

Completava cem noites assim, cada uma equivalia há anos, mas agora mais rápido, e difícil. Tudo exigia muita agilidade, os que não fossem assim deviam se meter com coisas poucas, sob o risco de não cumprirem sua sina. Esses momentos repetitivos sempre lhe traziam lembranças e alguma outra história de seu amigo Fecho.

Ele não era pessoa de grandes feitos, mas tinha sempre muitas histórias. Como a do dia que tinha lhe ensinado a não ter lágrimas, e nisso estava certo, pois naquele tempo era preciso: secar por fora, para afogar-se por dentro.

Ademais, a água já era preciosidade, verter lágrimas em nome de confusão boba era como que cortar os pulsos de alguém, que já estaria morto de qualquer modo: – e serviria de que afinal?

Fecho não era dado a religiões, tampouco as igrejas e crenças. Não tinha sido assim sempre, ele dizia: – Algumas coisas não são opostas, outras até que são, é melhor ir observando e aprendendo.

A fresta de luz que inundava todo o quarto, e rompia o pensamento que se fazia longe. – Quantas manhãs ainda teria fé? Isso não sabia. E também não sabia a diferença entre incrível e inacreditável, conjecturou durante horas sobre isso, parecia mesmo que a resposta para tal questão teria a chave mágica, aquela capaz de transportar todas as coisas para o fantástico, até que nada daquilo fosse bom. Achava as pessoas, as coisas, incríveis. Já as ações eram inacreditáveis.

– Isso aconteceu pouco depois de trocar o seu enxergar do outro pelo espelho.

Talvez as duas palavras, assim uma do lado da outra: incrível e inacreditável, pudessem se anular… Já sabia que não é assim. Tem tempo que sabia tanto, e não queria saber. Antes, pensava se tratar da mesma coisa, ou o que aqueles homens das ciências chamariam de pertencentes ao mesmo campo semântico. Daquele modo as pessoas não entendiam o que tinha sido dito.

Em defesa de Fecho e de si, explicou que o errado não é o não certo. Existem vários caminhos. Era mesmo difícil isso de entender. Como aqueles que fazem algo, os que fazem nada, caminham na mesma direção, irmanados pelo fim que não se pode fugir. Nenhum, e ninguém, seria apartado. É o destino.

Para o amigo, era preciso tomar a fortuna nas mãos, foi à última frase que lhe ouviu, e pensou, ante sua miudeza, que o outro falava de dinheiro, tesouro, todavia a roda que fazia com os dedos, um giro horário e depois anti-horário era que os indicadores desenhavam no ar: o saber exato.

A roda gira e as coisas caem sem sair do lugar, e voltam: uma hora em cima, outra embaixo, sem equilíbrio nem nada, apenas se a roda é viva, e é gente.
Agora isso: sem crer ou acreditar, estava posto no lugar.

O amigo tinha saído, resolvido a dar conta de sua natureza, não se despediu nunca, tampouco tomou benção, para o que queria, reza não dava jeito, e, então, como era dado a novidades, fez coisa mais original quando segredou em voz firme:

– Não se aquiete que o tempo se demora, no sol daqui, esperar tanto adormece a esperança, e isso é a morte toda.

Tinha ainda aquela outra história de Fecho para contar, quem sabe outro dia.

O presidente com medo das Hienas

O presidente com medo das Hienas

A autocomparação e autoproclamação pelo Jair Bolsonaro das semelhanças entre o leão, rei das selvas nas savanas – atacado e acossado por hienas vorazes – e ele, o presidente do Brasil, tem elevadas matizes e elementos de verdade política e moral.
As semelhanças analógicas entre os seres leão e presidente diferem, na essência, quanto à imagem, à anatomia biológica, à estrutura fisiológica e genética na escala da natureza vital. Um – leão das savanas e outro, leão do Palácio do Planalto.
Já as hienas vorazes, animais carnívoros, concorrentes do rei leão, diferem das “hienas” rotuladas humanas de oposição e inimigas do presidente, pela natureza de posições e posturas éticas na disputa pelo poder, pelos bens e pelo modo de vida.
O fato inédito, original, inventivo, criativo é o ato do próprio presidente de se autodenominar “leão atacado por hienas”. Em vídeo, postado nas redes sociais por si mesmo, o leão apavorado aparece rotulado de presidente Jair Bolsonaro e as hienas rotuladas de STF, imprensa, OAB, PT, PCdoB, CNBB, ONU e outras mais, todas muito vorazes atacando o leão, quer dizer, o presidente. Ele mesmo se autoproclamando de vítima da violência selvagem, porque criticado pelos opositores.
A moral da analogia – identificação de semelhanças – que o Bolsonaro quis inculcar à opinião pública, é a imoralidade e a inverdade das críticas cada vez mais contundentes, segundo ele, que vem recebendo pela imprensa e pelos opositores – nacionais e internacionais.
Acontece que, pelas leis da natureza dos animais, as hienas não atacam o leão para devorá-lo, mas para espantar, afastar da vítima abatida, a carniça, que elas não conseguem abater pelas próprias forças, alimento vital que elas roubam do rei leão.
Ainda pelas leis da natureza, prevalece a lei das selvas, do mais forte, o leão, animal mamífero mais poderoso nas savanas. Mas tem um detalhe vital: o leão macho não caça. Ele não corre atrás das presas. Ele fica postado em lugar mais elevado, em cima de pedras enormes ou troncos de árvores, bem calmo e seguro, de olho nas presas. Quem fica de butuca, que corre atrás das zebras, antílopes, veados, guinus, búfalos, zebus, são as leoas – as fêmeas do leão. E quando elas apanham uma presa e sufocam pelo pescoço até morrer, aí o leão macho – rei leão – se aproxima e solta rugidos bem fortes e ameaça morder as leoas. Para não dar briga em família, as leoas se afastam e deixam a carniça para o leão comer, o bastante e o melhor da caça – o filé mignon.
E as hienas? Bem, elas são bem pequenas e frágeis, por isso se organizam em volta da carniça e dos leões, em número bastante elevado. Aos poucos, vão chegando perto da carniça e mordendo a bunda das leoas. Quando atacadas pelos leões fogem em alta velocidade. Mas voltam em seguida. Fazem esse jogo – combate – na luta pela disputa da carniça até os leões e as leoas – já alimentados e com medo – irem embora. Aí, as hienas fazem a festa.
Este linguajar analógico tem semelhança, identificação entre a fala do planalto e o rugido das planícies das savanas. Mais uma bizarrice política para o povo achar graça – um populismo grotesco para despertar confiança do público ingênuo. Uma ignorância mútua consentida.
O leão ruge para afastar as hienas da carniça nas savanas. O presidente fala impropérios para intimidar e aniquilar os opositores e críticos do seu governo.
Ele esqueceu, bem ou mal-intencionado, de rotular mais três hienas: Carlos, Eduardo e Flávio. Mas, como eles são leões machos não podem ser hienas, mas filhos, concorrentes da propriedade – dos bens comuns, bens de todos.
Diante destas histórias estarrecedoras da nossa política neoliberal destrambelhada é preciso não esquecer que os fatos reais sempre são maiores, mais verdadeiros e de maiores lições a aprender do que os fatos narrados, denunciados e criticados.
Precisamos urgentemente combinar, no horizonte dos escritos de Antônio Gramsci e Ítalo Calvino, o “pessimismo de inteligência” com o “otimismo da vontade”.
É assim? Penso e sinto que precisamos perseverar e nos manter sempre no plano da luta e da ação política. Precisamos lutar contra a realidade terrível do governo que temos e da sociedade que fazemos parte, mesmo a contra gosto.

Aqui na empresa, não!

Aqui na empresa, não!

Estou atravessando o Largo do Pará, uma praça no centro de Campinas. Como sempre se faz, não caminho em linhas retas, mas sigo os passeios previstos sem pisar na grama que morre por falta de chuva e água. Vou à Padaria do Nico buscar leite. Dois litros. Para dois dias.

Quando estou chegando ao final da travessia, à minha direita um carro puxado à mão, carregado de material reciclável, principalmente papelão, mas outras coisas também. Cinco homens estão descansando à sombra das árvores. Uns sentados. Está calor. Dois deles, de pé, discutem. Não presto atenção ao que dizem. Continuo caminhando vagarosamente.

De repente, os dois homens se estranham. Ficam frente a frente: encaram-se rancorosos. Irão ao que chamamos, não sei bem a razão, “às vias-de-fato” como se fato fosse o soco e o pontapé. Será que as vias da discussão não são vias-de-fato?

Estão ambos sem camisa. Calças sujas, arremangadas nas pernas. São calças claras, de cor indefinida. A pele branca queimada pelo trabalho de recolher o descartado, o sol castigando. Nada de bronzeamento artificial ou aquele do descanso praieiro.

Impressionante ver: os peitos estufam. Os olhos faíscam. Os músculos retesam. Estão ambos sem camisa. A fala grossa se esvai, tem intervalos, retorna – “que você está pensando?” entreouço. O enfrentamento é inevitável. Afastam-se, aproximam-se novamente. Pertíssimo: os olhos brilhando e o semblante de raiva dizia que não era um jogo de amor. Mas de ódio e briga.

E eis que dois dos homens que estavam sentados levantam. E um deles grita:

Aqui, na empresa, não! Querem brigar, vão lá pra fora!

Os dois se interpõem. Separam os olhos raivosos. Cada um toma conta de um dos peitos estufados. Mas o olhar de raiva que se dirigiam permaneceu.

Que terá acontecido depois? Não soube. Já estava para além do “território da empresa”, quase na esquina, pronto para atravessar a Rua Duque de Caxias. Esperava o sinal abrir.

Mas penso com tristeza: Henrique Meirelles e a múmia ambulante que responde pelo nome de Paulo Guedes e todos seus economistas neoliberais perderam a grande oportunidade de estarem presentes e terem seu merecido – e talvez único – gozo efetivo: os catadores de lixo se têm por empresários. E a sede da empresa, se os economistas neoliberais quiserem conhecer – fica no Largo do Pará, quase na esquina em que se cruzam a Francisco Glicério e a Duque de Caxias.

A visitação é livre e gratuita. Alerta: na empresa não se briga, somente lá fora.

Amor – Pois que é palavra essencial, Carlos Drummond de Andrade

Amor – Pois que é palavra essencial, Carlos Drummond de Andrade

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O amor natural. Rio de Janeiro: Record, 1994

Um voluntário da pátria, de Zuenir Ventura

Um voluntário da pátria, de Zuenir Ventura

Depois de quarenta anos do fim da ditadura militar, a Cia. das Letras iniciou uma coleção de pequenos relatos sobre os acontecimentos do golpe: foi em busca das ‘vozes do golpe’, nas memórias dos que o viveram.

Zuenir Ventura escreveu este pequeno volume – é uma coleção de pequenos volumes – numa narrativa que se iniciaria em 31 de março de 1964 e terminaria dia 1 de abril, quando tomou um avião saindo de Brasília, acompanhado da esposa grávida, retornando ao Rio de Janeiro.

Em verdade, a narrativa de um dia somente tem sentido quando ancorada em fatos anteriores e posteriores a este dia. Assim, impossível que o jornalista que viaja de fusca com mulher e mais outro casal, para assumir um cargo de professor na escola de Comunicações da UnB, precisamente no dia 31 de março e que chega à capital quando ferviam os boatos e fatos do golpe.

O título “um voluntário da pátria” remete ao alistamento voluntário de pessoas que defenderiam a democracia e o governo, a quem seriam dadas armas – aquelas que a direita brasileira dizia que o governo de Jango dispunha, mas que de fato inexistiam. Na fila do alistamento, pergunta o alistador a Zuenir: que arma sabe manejar? Depois de minutos de branco, lembrou sua vida de recruta e disse que manejava um fuzil Mauser 1908! Ninguém sabia o que era… mas assim mesmo foi alistado, ficou no Teatro Nacional, como muitos outros candangos, aguardando as armas que não vieram: o que veio foram sanduíches trazidos pelos estudantes da UNB para aqueles que seriam os combatentes.

Também o que outros disseram em suas memórias aparece aqui, principalmente Darcy Ribeiro (Confissões), então chefe do Gabinete Civil de Jango, que não conseguiu que o presidente reagisse provocando uma guerra civil. Jango, como se sabe, preferiu o exílio a deflagrar uma guerra.

Impressionante, também, é ler a jactância do General Olímpio Mourão Filho, que de Juiz de Fora sai para tomar o Rio de Janeiro com sua tropa de recrutas… “Segundo dona Maria [esposa do general], o comício do Automóvel Clube era o estímulo de que o marido precisava para desencadear o levante. Às cinco horas, ainda de pijama e roupão de seda vermelho, ele começou a agir. Isso permitiu-lhe escrever mais tarde, “com orgulho e originalidade”, que fora o único homem no mundo que “desencadeou uma revolução de pijama”.

Também registra a reunião havida entre Jango, o então senador Juscelino Kubitschek e o general Bevilacqua. Nas memórias deste:

Bastava que nesse momento, ouvindo a mim, que era amigo do Mourão, e também o Juscelino, que era amigo de infância do Mourão, ele tivesse me dito: ‘General, eu lhe peço que viaje imediatamente para Minas Gerais, vá se entender com seu amigo Mourão e convide para ir em sua companhia o senador Juscelino Kubitschek’. Estou certo de que teria sido obtida imediatamente uma solução política para aquela gravíssima crise em que estava submersa a República.

Mesmo nas memórias, ainda a incompreensão do golpe militar. Mourão Filho, de fato, foi uma espécie de fanfarrão de direita – como aqueles que estamos acostumados a ver no exercício do poder atualmente. Mas o golpe tinha outras raízes, e assim nenhum personalismo e amizade entre personagens estancaria o que era um projeto de submeter a América Latina ao capitalismo, cuja matriz eram os EEUU, em plena guerra fria. Se na América Latina continuassem a aparecer outras tantas revoluções “cubanas”, a história a ser vivida e a história a ser contada seria outra…

Creio que esta coleção das “vozes do golpe” seja extremamente útil para o momento atual, para que jovens estudantes secundaristas compreendam como se deu o passado, para trazer de lá elementos com que compreender o que está se dando no presente.

Referência. Zuenir Ventura. Um voluntário da pátria. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.