por Cristina Batista de Araújo | mar 26, 2018 | Blog
Em muitos dos textos que escrevo, costumo fazer referência ao fato de que o cotidiano escolar poderia ser muito melhor explorado se sua dinamicidade institucional não fosse tomada apenas como uma preparação para a vida, mas sim, se ali se tornasse uma arena para a compreensão de importantes mudanças sociais ocorridas ao longo do século XX e que, ironicamente, orientam as ações para a denominada Escola do Século XXI (Tal expressão faz alusão ao pacto pelo movimento Educação para Todos, estabelecido a partir de duas conferências mundiais, convocadas pela Organização das Nações Unidas, realizadas em Jomtien/1990 e Dakar/2000).
É por essa razão que hoje pretendo sistematizar um pouco do que penso sobre essa possibilidade de escola como a própria experiência, sua possibilidade ética e estética.
Ao pensar em mudanças sociais, podemos mencionar que a mídia atingiu um desenvolvimento gigantesco que promoveu mudanças em nossa relação com a informação, e o que anteriormente era reservado para alguns e registrado especialmente em livros, agora pode ser acessado em diferentes lugares e é extraordinariamente abundante. Essa realidade desestabilizou, por exemplo, a função que a escola tinha de transmitir informações e valores, visto que agora isso é também realizado pela mídia e, muitas vezes, de forma mais eficaz. Diante disso, cabe nos perguntarmos que modificações deveriam ser introduzidas na escola, tendo em vista essa sociedade em mudança. Seria a mera incorporação das tecnologias de informação associada ao aumento da carga horária escolar, o desmembramento minucioso de conteúdos ou a especificação de sua dosagem?
Outra mudança de caráter mais profundo a se destacar é que a democracia se tornou, em alguma medida, uma forma desejável de governo e, em decorrência disso, vimos erigir a demanda pelo respeito aos direitos humanos e às liberdades básicas para todos, tais como a liberdade de expressão, de associação, de deslocamento, de crenças e religião. Mas escolas, que começaram a ser estabelecidas há cerca de cinco mil anos, especificamente dedicadas a transmitir às novas gerações o conhecimento anteriormente acumulado, foi uma invenção que ocorreu em sociedades como a egípcia, a mesopotâmica e a grega, consideradas de tipo escravo e, portanto, longe da democracia que se delineia atualmente. Só no decorrer do século XVII, iniciaram-se mudanças no sentido de estender a educação a todos, em sociedades muito diferentes nas quais se começa a falar sobre os direitos humanos e os direitos universais, que serão formulados explicitamente nas revoluções francesa e americana.
As mudanças vivenciadas na educação já assimilaram tantas características do funcionamento social que chegamos ao prolongamento da escolaridade como uma característica do nosso tempo: a escolaridade obrigatória significa permanecer nas escolas por mais horas e por mais anos, iniciando-se ainda o quanto antes, na Educação Infantil, anteriormente chamado período pré-escolar.
Mas quando penso, por exemplo, em uma educação democrática, acredito que esta deveria estar necessariamente relacionada a certos conteúdos e, sobretudo, a um modo de funcionamento das instituições escolares, porque a democracia não é um conjunto de conhecimentos, mas é antes de tudo uma prática. Muitas vezes, os conteúdos relacionados ao funcionamento das formas políticas, aparecem somente nas disciplinas referentes às ciências sociais, mas isso é insuficiente! Além disso, o modo como são desenvolvidos parece inadequado para a efetiva participação social. A participação em uma sociedade democrática como um membro responsável requer mudanças e renovações na organização da escola, bem como na mudança de papéis.
A escola, instituição social em que o estudante está inserido e ali permanece por horas, tem todas as características de outras instituições sociais e apresenta os mesmos conflitos semelhantes aos que nelas existem. Por que não começar a analisar o funcionamento da própria escola, refletir sobre o que acontece nela e os gêneros discursivos que ali circulam? Se na escola existem fenômenos semelhantes aos que existem nas instituições políticas, por que não estabelecer uma série de normas operacionais, construção de parâmetros para a tomada de decisões ou de arbitragem entre o corpo escolar?
Sem dúvida, quando esses problemas são transferidos para instâncias mais amplas da sociedade, eles são mais difíceis de entender. Por esta razão, é comum que muitos, dentro ou fora da escola, não compreendam a divisão de poderes necessária e simplifique a mobilização de recursos ao estabelecer suas opções e análises. Mas quando os problemas estão relacionados à própria experiência, e surgem como próprios do funcionamento escolar, é possível ver essas questões de maneira diferente e mais realista e, partindo dessa experiência, terá muito mais sentido ensinar sobre o funcionamento político e sobre a história, para ver como as formas de governo e de dominação mudam ou se rendem.
por João Wanderley Geraldi | mar 25, 2018 | Blog
O Melro
O merlo, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar, d’entre o arvoredo,
Verdadeiras risadas de cristal.
E assim que o padre cura abria a porta
Que dá para o passal,
Repicando umas finas ironias,
O melro, d’entre a horta,
Dizia-lhe: “Bons dias!”
E o velho padre cura
Não gostava daquelas cortesias.
O cura era um velhote conservado
Malicioso, alegre, prazenteiro;
Não tinha pombas brancas no telhado,
Nem rosas no canteiro;
Andava às lebres pelo monte, a pé,
Livre de reumatismos,
Graças a Deus, e graças a Noé.
O melro desprezava os exorcismos,
Que o padre lhe dizia:
Cantava, assobiava alegremente;
Até que ultimamente
O velho disse um dia:
“Nada, já não tem jeito! este ladrão
Dá cabo dos trigais!
Qual seria a razão
Por que Deus fez os melros e os pardais?!”
E o melro, no entretanto,
Honesto como um santo,
Mal vinha no oriente
A madrugada clara,
Já ele andava jovial, inquieto,
Comendo alegremente, honradamente,
Todos os parasitas da seara
Desde a formiga ao mais pequeno inseto.
E apenas disto, o rude proletário,
O bom trabalhador,
Nunca exigiu aumento de salário.
Que grande tolo o padre confessor!
Foi para a eira o trigo;
E, armando uns espantalhos,
Disse o abade consigo:
“Acabaram-se as penas e os trabalhos.”
Mas logo de manhã, maldito espanto!
O abade, inda na cama,
Ouvindo do melro o costumado canto,
Ficou ardendo em chama;
Pega na caçadeira,
Levanta-se dum salto,
E vê o melro, a assobiar, na eira,
Em cima do seu velho chapéu alto!
Chegou a coisa a termo
Que o bom do padre cura andava enfermo;
Não falava nem ria,
Minado por tão íntimo desgosto;
E o vermelho oleoso do seu rosto
Tornava-se amarelo dia a dia.
E foi tal a paixão, a desventura,
(Muito embora o leitor não me acredite)
Que o bom padre cura
Perdera… o apetite!
…
Andando no quintal, um certo dia
Lendo em voz alta o Velho Testamento,
Enxergou por acaso (que alegria!
Que ditoso momento!)
Um ninho com seis melros, escondido
Entre uma carvalheira.
E ao vê-los exclamou enfurecido:
“A mãe comeu o fruto proibido;
Esse fruto era a minha seanenteira:
Era o pão, e era o milho;
Transmitiu-lhe o pecado.
E, se a mãe não pagou, que pague o filho,
É a doutrina da Igreja. Estou vingado!”
E, engaiolando os pobres passaritos,
Soltava exclamações:
“É uma praga. Malditos!
Dão-me cabo de tudo estes ladrões!
Raios os partam! andai lá que enfim…”
E deixando a gaiola pendurado,
Continuou a ler o seu latim,
Fungando uma pitada.
…
Vinha tombando a noite silenciosa;
E caía por sobre a natureza
Uma serena paz religiosa,
Uma bela tristeza
Harmônica, viril, indefinida.
A luz crepuscular
Infiltra-nos na alma dolorida
Um misticismo heroico e salutar.
As árvores, de luz inda doiradas,
Sobre os montes longínquos, solitários,
Tinham tomado as formas rendilhadas
Das plantas dos herbários.
Recolhiam-se à casa os lavradores.
Dormiam virginais as coisas mansas:
Os rebanhos e as flores
As aves e as crianças.
Ia subindo a escada o velho abade;
A sua negra, atlética figura
Destacava na frouxa claridade,
Como uma nódoa escura
E, introduzindo a chave no portal,
Murmurou entre dentes:
“Tal e qual… tal e qual! …
Guizados com arroz são excelentes.”
…
Nasceu a lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, aveludado,
Do sorriso dos mártires, dos justos.
Um eflúvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes.
Todas as forças vivas da matéria
Murmuravam diálogos gigantes
Pela amplidão etérea.
São precisos silêncios virginais,
Disposições simpáticas, nervosas,
Para ouvir estas falas silenciosas
Dos mundos vegetais.
As orvalhadas, frescas espessuras
Pressentiam-se quase a germinar.
Desmatavam-se as cândidas verduras
Nos magnetismos brancos do luar.
…………………………………………………….
…………………………………………………….
E nisto o melro foi direito ao ninho,
Para o agasalhar, andou buscando
Umas penugens doces como arminho,
Um feltrosito acetinado e brando,
Chegou lá, e viu tudo.
Partiu como uma flecha; e, louco e mudo,
Correu por todo o matagal; em vão!
Mas eis que solta de repente um grito
Indo encontrar os filhos na prisão.
“Quem vos meteu aqui?!” O mais velhito
Todo tremente, murmurou então:
“Foi aquele homem negro. – Quando veio,
Chamei, chamei… Andavas tu na horta…
Ai que susto, que susto! ele é tão feio!…
Tive-lhe tanto medo!… Abre esta porta,
E esconde-nos debaixo da tua asa!
Olha, já vão florindo as açucenas;
Vamos a construir a nossa casa
Num bonito lugar…
Ai! quem me dera, minha mãe, ter penas
Para voar, voar!”
E o melro alucinado
Clamou:
“Senhor! Senhor!
É porventura crime ou pecado
Que eu tenha muito amor
A estes inocentes?!
Ó natureza, ó Deus, como consentes
Que me roubem assim os meus filhinhos,
Os filhos que eu criei!
Quanta dor, quanto amor, quantos carinhos,
Quanta noite perdida
Nem eu sei…
E tudo, tudo em vão!
Filhos da minha vida
Filhos do coração!! …
Não bastaria a natureza inteira,
Não bastaria o céu para voardes,
E prendem-vos assim desta maneira!…
Covardes!
A luz, a luz, o movimento insano,
Eis o aguilhão, a fé que nos abrasa…
Encarcerar a asa
É encarcerar o pensamento humano.
A culpa tive-a eu! quase à noitinha
Parti, deixei-os sós…
A culpa tive-a eu! a culpa é minha
De mais ninguém!… Que atroz!
E eu devia sabê-lo!
Eu tinha obrigação de adivinhar…
Remorso eterno! eterno pesadelo! …
……………………………………………………..
Falta-me a luz e o ar! Oh, quem me dera
Se abutre ou ser fera
Para partir o cárcere maldito! …
E como a noite é límpida e formosa!
Nem um ai, nem um grito …
Que noite triste! oh noite silenciosa! …”
…
E a natureza fresca, onipotente,
Sorria castamente
Com o sorriso alegre dos heróis.
Nas sebes orvalhadas
Entre folhas luzentes como espadas,
Cantavam rouxinóis.
Os vegetais felizes
Mergulhavam as sôfregas raízes
A procurar na terra as seivas boas,
Com a avidez e as raivas tenebrosas
Das pequeninas feras vigorosas
Sugando à noite os peitos das leoas;
A lua triste, a lua merencória,
Desdêmona marmórea,
Rolava pelo azul da imensidade,
Imersa numa luz serena e fria,
Branca como a harmonia,
Pura como a verdade.
E entre a luz do luar e os sons e as flores,
Na atonia curel das grandes dores,
O melro solitário
Jazia inerte, exânime, sereno,
Bem como outrora a mãe do Nazareno
Na noite do calvário !…
Segundo o seu costume habitual,
Logo de madrugada
O padre cura foi para o quintal,
Levando a bíblia e sobraçando a enxada.
Antes de dizer missa,
O velho abade inevitavemente
Tratava da hortaliça
E rezava a Deus Padre Onipotente
Vários trechos latinos,
Salvando desta forma, juntamente,
As ervilhas, as almas e os pepinos.
E já de longe ia bradando:
– Olé!
Dormiram bem? … Estimo…
Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandíssima ralé!
Então vocês, seus almas do diabo,
Julgavam que isto que era só dar cabo
Da horta e do pomar,
E bico alegre e estômago contente,
E o camelho do cura que se aguente,
Que engrole o sue latim e vá bugiar !…
Grandes larápios! Era o que faltava
Vocês irem ao milho,
E a mim mandar-me à fava!
Pois muito bem, agora que vos pilho,
Eu vos ensinarei, meus safardanas!
Vocês são mariolões, são ratazanas,
Tem bico, é certo, mas não tem tonsura…
E, nas manhas, um melro nunca chega
Às manhas naturais dum padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
É para hoje, olé!… Que bambochata!
Que petisqueira! Melros com chouriço !…
E então a Fortunata
Que tem um dedo e um jeito para isso! …
Hei de comer-vos todos um a um,
Lambendo os beiços, com tal gana enfim,
Que comendo-vos todos, mesmo assim
Eu fico ainda quase que em jejum!
E depois de vos ter dentro da pança,
Depois de vos jantar,
Vocês verão como o velhote dança,
Como ele é melro e sabe assobiar! …”
Mas nisto o padre cura, titubeante,
Quase desfalecendo,
Atônito de horror, parou diante
Deste drama estupendo:
O melro, ao ver aproximar o abade,
Despertou da atonia,
Lançando-se furioso contra a grade
Do cárcere. Torcia,
Para os partir os ferros da prisão,
Crispando as unhas convulsivamente
Com a fúria dum leão.
Batalha inútil, desespero ardente!
Quebrou as garras, depenou as asas
E alucinado, exangue,
Os olhos como brasas,
Herói febril, a gotejar em sange,
Partiu num voo arrebatado e louco,
Trazendo, dentro em pouco,
Preso do bico, um ramo de veneno.
E belo e grande e trágico e sereno,
Disse:
“Meus filhos, a existência é boa
Só quando é livre. A liberdade é a lei,
Prende-se a asa, mas a alma voa…
Ó filhos, voemos pelo azul! … Comei!”
E mais sublime do que Cristo, quando
Merreu na cruz, maior do que Catão,
Matou os quatro filhos, respassando
Quatro vezes o próprio coração!
Soltou, fitando o abade, uma pungente
Gargalhada de lágirmas de dor,
E partiu pelo espaço heroicamente,
Indo cair, já morto, de repetne
Num carcavão com silveirais em flor.
E o velho abade, lívido d’espanto,
Exclamou afinal:
“Tudo o que eixste é imaculado e santo!
Há em toda a miséria o mesmo pranto
E em todo o coração há um grito igual.
Deus semeou d’almas o universo todo.
Tudo o que vive ri e canta e chora…
Tudo foi feito com o mesmo lodo,
Purificado com a mesma aurora…
Só hoje te adivinho,
Ao ver que a alma tem a mesma essência,
Pela dor, pelo amor, pela inocência,
Quer guarde um berço, quer proteja um ninho!
Só hoje sei que em toda a criatura,
Desde a mais bela até a mais impura,
Ou numa pomba ou numa fera brava,
Deus habita, Deus sonha, Deus murmura! …
……………………………………………………………..
Ah, Deus é bem maior do que eu julgava…”
E quedou silencioso. O velho mundo,
Das suas crenças antigas, num momento,
Viu-o sumir exausto, moribundo,
Nos abismo sem fundo
Do tenebroso mar do Pensamento.
E chorou e chorou… A Igreja, a Crença,
Rude montanha, pavorosa, escura,
Que enchia o globo com a sombra imensa
Dos seus setenta sécuos d’altura;
O Himalaia de dogmas triunfantes,
Mais eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos profetas Deus falava dantes,
Entre raios e nuvens trovejantes,
Lá dos confins sidérios do infinito;
Esse colosso enorme, em dois instantes
Viu-o tremer, fender-se e desabar
Numa ruína espantosa,
Só de tocar-lhe a asa vaporosa
Duma avezinha trêmula, a expirar!…
………………………………………………..
……………………………………………….
E, arremessando a bíblia, o velho abade
Murmurou:
“Há mais fé e há mais verdade
Há mais Deus com certeza
Nos cardos secos dum rochedo nu
Que nessa bíblia antiga… Ó Natureza,
A única bíblia verdadeira és tu !…”
Nota [de Guerra Junqueiro]
O fato em que se baseia este poemeto, com quanto pouco conhecido, é absolutamente verdadeiro.
Os meros e algumas outas aves, como os pintassilgos e os rouxinóis, quando lhes encarceram os filhos, envenenam-nos. Muitas vezes, (sarcasmo trágico, crueldade sublime!) deixando-os vivos, arrancam-lhes a língua!
Ora nem todos os melros, pintassilgos e rouxinóis assassinam os filhos, quando lhos prendem. Só o fazem os mais extraordinários, os mais heróicos. O que nos demonstra que a ação é livre e respoinsável, e não um simples produto duma fatalidade orgânica.
É pena que Michelet ignorasse este fato. Que páginas divinas que ele não teria escrito! L’Oiseau ficou incompleto.
Guerra Junqueiro. A velhice do Padre Eterno. Porto : Livraria Lello & Irmão. s/data. Edição em que está aposto em vermelho, na capa a expressão EDIÇÃO POPULAR. Contém um estudo introdutório de Camilo Castelo Branco, datado de 1886 e uma nota no fina do livro de Guerra Junqueiro, datada de 1885. A edição que estou manuseando deve ser da primeira metade do Século XX (certamente posterior a 1919, face ao nome da razão social da Livraria Lello e face à ortografia, aqui atualizada. Possivelmente anterior ao início do regime de Salazar, que teria censurada a edição, em função de seu anticlericalismo).
por João Wanderley Geraldi | mar 24, 2018 | Blog
O escritor português Ascênio de Freitas, nascido na Gafanha de Nazaré, em Aveiro, mas muito cedo foi para Moçambique, onde ficou por trinta anos, retornando em 1977, portanto depois da independência das colônias portuguesas promovida pela Revolução dos Cravos.
Quando comprei seu livro E as raiva passa por cima, fica engrossar um silêncio, coloquei-o na minha estante junto aos livros de escritores africanos. E ao começar a ler os contos que o compõem, fiquei tão entusiasmado que fui ao Google saber quem era o escritor e para minha surpresa descubro que nasceu em Portugal. Comprei outros livros seus, mas por enquanto continuarei a manter este volume junto aos demais autores africanos. E as razões ficarão claras só pelas citações que farei.
Este conjunto de treze contos foi organizado em duas partes: a primeira é composta por contos em que as histórias são narradas por africanos; a segunda parte contém narrativas de “retornados” para Portugal (foram chamados de “retornados” os português e africanos das colônias que decidiram retornar a Portugal quando da independência ou logo após a independência). No conjunto, a técnica narrativa se repete: um narrador que introduz a voz de um narrador-personagem. Em todo conjunto, se desvela uma linguagem oral carregada de matizes próprios da modalidade, com a presença das marcas da dialetalização do português nas colônias, no caso, Moçambique. Já no título do livro, uma única marca de pluralidade aparece. Aliás, o autor abre o livro com duas epígrafes precisamente sobre a linguagem:
E nem pela simples razão de o português fundamental, lógica e fatalmente se retransformar no uso quotidiano dos países africanos de língua portuguesa (…) dialectizando-se, nem por essa razão a comunidade linguística se empobrece, antes se enobrece. (Manuel Ferreira)
O escritor, como todo verdadeiro artista, não usa uma língua, e sim uma linguagem. (Assis Brasil)
Consideremos os contos:
Quando a gente de nosso gente foi-se embora. O narrador é o régulo Makombe que nos conta da luta pela libertação – Nós precisa sofrer cada um sua liberdade… – que iniciada por seu povo, não foi acompanhada pelos povos vizinhos, de modo que Régulo Makombe já sabe: não vai mais guentar lutar, porque tempo de cacimba vai cabar água no rio e os outro régulo, terra de Sena, e Chemba, e Manica, e nem até Gorongosa, não que quer judar. A história é desta tomada de decisão: a fuga para longe, onde outros povos estão em guerra contra o domínio português, cujos os soldado branco bedece com ordem má de comandante dele, ficar cortar os cabeça de homem quando encontra pra matar, está enfiar cabeça nos pau e está ponhar ali na temba. E está falar é exemplo. Exemplo o quê?
Os princípio de cada coisa. Trata-se aqui de um episódio de morte por vingança envolvendo dois grandes amigos, Binha Sacuzi e Juô Assene. O primeiro pedira três escudos emprestados. O segundo cobra da mãe nada menos do que trinta escudos, quando Binha não estava em casa. Quando se encontram, Binha bate em Juô e pega o dinheiro de volta, pagando-lhe o que de fato devia. No entretanto, Juô faz queixa na polícia alegando roubo de oitenta escudos, mas a polícia prende a todos – os dois contendores e as testemunhas – pondo-os em trabalho forçado por dias. Saídos da prisão, Binha fica de tocaia e mata Juô.
E as raiva passa por cima, fica engrossar um silêncio remete a dois temas: a miscigenação e a exploração do branco. O ambiente é de plantação de algodão: os trabalhadores pedem aumento do preço que a companhia pagava. Todos se reúnem no pátio da administração, pois o Governador e a polícia haviam chegado e todos esperavam a notícia do novo preço que a companhia pagaria pelo algodão. Esperança frustrada, pois o governador diz ser impossível o aumento… os trabalhadores resmungam, reclamam e a polícia abre fogo: morria, que morria gente, gente dos muene que chega até no mar e nos matotodo de mais distância, ninguém sabe porque está matar. Este é pano de fundo para a voz do velho sô Zico insistir branco, com preto, é as distância. Acontece que a filha de sô Zico é mulher de um branco, sô Pulino, com quem tinha um filho. Sô Zico insistia: eles teriam que ir embora, porque chegaria o dia em que a dominação colonial acabaria. E também seu neto deveria ir embora, pois filho de branco. Reconhece que Sô Pulino trata bem da filha, mas não arreda pé de suas convicções. De quando, é as funda estrada da vida – e as curva das ideia maluca caminhando nas boca da gente? Sem querer. Ou as micaia, que está picar. Sô Pulino falou, exclamado: – “Pai Zico que és racista!…” – demiração de sô Pulino, cadavez mais as raiva dele, causa de ser branco e cocuana[velho] sô Zico está falar sua palavra também sem falar sô Pulino é muito bom. Ou o quê, então? Neste conto aparecem dois ditados com que sô Zico aponta para a revolta que virá: “Passarinho que come carne não tem pago, não.” e “Sono da jacaré faz parte com chão, mas quando que zanga… uá! Estes branco não tem medo?”
Chove chuva, choverando – Dia que Titinha morreu. Trata-se aqui de um parto, que se junta a outros pequenos fatos que engrossam o silêncio que retumbará nas lutas pela libertação. Como Titinha não conseguia dar à luz porque o bebê não estava em posição correta, pedem a sô Pire para levar à administração em busca de recurso. Narra-se a viagem pela floresta, nos arremedos de estradas e da chuva que cai pesada. No meio do caminho, chegados a cantina de Mamudo: Causa de uma mulher preto?”. Convida sô Pire para tomar umas cervejas até que a chuva passe, antes de seguir viagem. Neste ínterim, Titinha morre. Uns dias, tempos, a gente pode que ficar com branco por ajuda em tudo, junto falar tu com tu, outro branco, porque aquele sô Pire, não. Branco malandro, aquele! Está falar pra capitão Dodôlo:
– Seu sacana de merda! … Então eu está vir até aqui com chuva, fazer trabalho de graça, por causa de mulher que está morto? Mulher que está morto? Porque não enterrou logo?… Não é nada…
E a mais diferente noite. E o dia que preto Xaviè morreu. Um mineiro morre, e um companheiro – Xaviè – fica com o defunto enquanto sô Martin vai ao Posto para registrar com o chefe a morte de Bêjami. Anoitece e Xaviè vai ganhando medo, um medão do escuro, da floresta, dos bichos até amalucar… Enquanto isso, sô Martin chega ao Posto e o chefe decide antes jantar para depois ir ver o morto e fazer autópsia. Exige que sô Martin vá junto para testemunhar a “autócia”. Quando sô Martin chega, Xaviè, enlouquecido pelo medo, briga com ele e o joga no fogo, depois foge para a floresta. Quando chegam o chefe, enfermeiros e polícias, Xaivè é morto. Já viu? … Castigo grande, matar assim mesmo, causa de nada. Mas como vai fazer? A gente se envelhece sem si mesmo, com coisa assim, o vivido mau da vida. Enormes da vida, os espropósito, fica pricisão de achar o poder demudar tudo, os mando das pessoa. Não é? Nosso sabe tem branco bom. Mas praquê outros branco manda matar os preto assim, mesma coisa é cabrito? Ou é inhoca? Ou é um bicho qualquer? Não vê que a gente só levanta nas lembrança o que rebrilha de mau e as migalha fica a crescer, a crescer? … depois, olha, eu não sei como que vai ser, não, pensar gela a gente por dentro e nosso fica com medo. Medo grande, memo…
Tudo era aquela parte de terra de fronteria. Trata-se aqui de um fiscal branco designado para trabalhar na fronteira. Alfândega. Era quando que não custava marrar as pessoa pra ir trabalhar no contrato, marrar pra ir voluntário – maneira que muzungo falava – e gente ia assim mesmo, com porrada, os dia demorado, só sofrer. Desterrado em longínquas terras, o fiscal enlouquece e quando os brancos vão embora, chegam à aldeia para trazer o fiscal que é escondido pelas crianças. Ninguém sabe onde ele está. Como vingança, os colonizadores em debandada embarcam no caminhão os pretos amarados. Alguns caem e morrem na estrada. Por razão que eu contar agora, só nas palavra triste que cresce no coração, o resto que era o que aconteceu acontecido, lá – as morte. Cadavez a culpa de sô Minstrador e de ser os branco de um lado e os preto de outro lado, na vida o que se dá de ser mania de os branco só querer ser os manda-chuva, lgo os dono-patrão de tudo, só o que se dá de ser o dinheiro, menos as pessoa.
Lukutúkuè. Um régulo, em aldeia que tem cantina, igreja, polícia, quartel, mulher puta, de soldado… Envelhecido, toma seu vinho português na cantina. Seu filho Zeca oi para a guerra. Lukutúkuè, sua muita tristeza!… Filho Zeca foi embora, ficou escondido na mato – agora a mesma coisa ele é bicho, agora mesma coisa ele é mabandido, filho Zeca, agora Likutúkuè que nunca há-de ver outro vez seu filho, nunca que há-de de ouvri voz dele falar outro vez sua gingação, parece é mesma coi8sa seu filho Zeca morreu… Os pide chegam: querem saber onde está Zeca. Levaram o régulo e sua filha Matina até sua casa: lá estavam os mortos, muitos. Ele precisava reconhecer o filho Zeca. Enxerga-o entre os mortos mas nada diz. Sua filha, no entanto, abraça-se ao irmão, chorando. Lukutúkuè perde o medo: cota o pênis de seu filho e joga-o aos pide toma pra vocês, toma… vocês precisa… Lukutúkuè morre, mas na mata os passarinhos quando cantam estão dizendo lukutukuè, lukutukuè…
História qual como muzungo Emilo Firipe é que sabe – e os preto. Uma história de tortura praticada por pides. Inicia-se a narrativa com a expropriação feita pelos pides das rendas agrícolas da família de Coringe. Depois, querem saber onde o irmão escondeu armas. Como ninguém sabe, prendem um dos irmãos e levam para a cadeia o irmão Tomás. E eis a cena de tortura:
E agora aquele sô Manuer estava ali falar pra ele:
– Você gostas de fumar, não é?
E ele, coisa que falou:
– Não senhor, eu não fuma.
– Não fumas? Mas agora vias fumar. – E foi que Tomás não conseguia mesmo pra entender, proque foi que o tal branco sô Manuer tirou as carça de outro irmão, pegou embôlo [pênis], sabe?, pichota dele, e cortaram-lhe com as navalha. Ele já nem que chorava. Mesmo – só que coração da gente assim fica é xidôco, de tyoda a gente com malvadia fica mais é sozinho com medo. O-quê que mano de Tomás fez com quem, tão mal? Vingança de branco. O-quê que os branco vai querer com vingança dele só de graça?
[…]
– Olha, agora é que tu vais fumar.
– Então isso de meu irmão é que é o cigarro?
– Sim senhor, isso ´=e que é cigarro.
Então puseram no arcoor esnaturado e puseram-lhe depois na boca, cender com fosco.
Maniato Paulino e sô Basilo, os dois que tem Nazareia no meio. Este último conto da primeira parte mostra os abusos sexuais praticados por brancos. Maniato Paulino é noivo comprometido de Nazareia, mas sô Basilo cobiça a beleza da moça, ainda virgem. Obriga-a a uma relação sexual e depois insiste para que Basilo também a usufrua. Querer dos branco é maldar dos preto, seu atormento, esprezar, aí tem sua alegria!… Basilo se recusa ao estupro e sô Basilo manda que Nazareia urine na cabeça dele. Basilo chama outros para baterem em Maniato Paulino, mas todos fogem para não bater em companheiro. Assim foi o querer do branco Basilo, até que um guerrilheiro, que eles chamavam de turras, chegou e castigou feio porque preto estava ficar com força: cortou ele com a faca em pedacinhos.
A segunda parte do livro é composta por quatro contos, todos narrados por “retornados”, lembrando tempos de África. Cão cantador é a história de um cão tão inteligente que aprendeu a “cantar”, isto é, imitar os leões. À noite, o cão cantava e chamava outros leões e leoas: o dono ficava na espreita e os matava, vendendo coros de leão com que enriqueceu. Depois que começou a guerrilha, quando já brancos não moravam por perto, os guerrilheiros atacaram-no e durante três dias trocaram tiros. Até que ele mandou o cachorro imitar leão. Os turras fugiram, porque todos têm medo de leão. Com isso ele próprio se salvou, viajando no dia seguinte para a cidade …
Em A caçada, como contam todos os caçadores, canta este sua valentia na caça de búfalos. Em uma destas caçadas, um búfalo o atacou, jogou-o ao alto e ficou esperado para nova cornada, mas ele conseguiu segurar-se nos galhos de uma árvore. Assim ficam por dias seguidos: nem o búfalo se afasta, nem o caçador consegue descer. Até que ele percebe cheiros e corvos a voar nos altos. Acontecera que o búfalo morrera na espera… Esta narrativa é simplesmente espetacular: só lendo para usufruir. Um resumo, como todo resumo, estraga o trabalho estético.
Bicho desabusado tem o seu tanto de literatura fantástica: o narrador viaja atravessando a floresta para encontrar na aldeia do outro lado uma rapariga – eu andava encanizanado nuns tratos de cama com uma mulatinha com quem havia que ter muito aprumo. Depois de atravessar os matos, chega a um descampado e vê o por do sol e se encanta com a beleza natural de África. Deita-se encostado numa árvore e quando o sol se põe começa a sentir um friozinho… Mas como o frio da perna direita estava aumentando muito, olha e percebe que sua perna está sendo comida por uma “gibóia” … tacou da faca e a cortou inteira.
As almas é a história de um grande pecuarista em África, rico com muitas terras e muito gado. Vendia para abate cabeças e mais cabeças. Em certo dia, de repente, todo seu gado some… Quem provocou isso, para o narrador, foram as almas das vacas mortas pela ganância de ter mais dinheiro no banco! … se fiquei sem nada foi por maldades minhas de querer só guardar dinheiro, porque as minhas vacas se vingaram, as almas das que mandei matar vieram buscar as outras pra que não lhes sucedesse o mesmo… Agora, retornado, o governo quer lhe dar umas 100 vacas para que volte a criar, mas ele depois desta experiência, quer distância de vacas cujas almas estão sempre o amedrontando.
Referência: Freitas, Ascênio de. E as raiva passa por cima, fica engrossar um silêncio. Lisboa : África Editora, 1979.
por João Wanderley Geraldi | mar 23, 2018 | Blog
Textos de Arquivo XXV: O professor como leitor do texto do aluno
Nota prévia
Publicado no livro Questões de Linguagem (Maria Helena Martins (org). São Paulo, Contexto, 1991), este texto resulta de uma exposição oral no Congresso Brasileiro de Alfabetização, realizado em São Paulo, entre 13 e 15 de setembro de 1990. Na época, havia recém defendido da tese de doutoramento (junho de 1990), de que resultou, sem um dos capítulos da tese, o livro Portos de Passagem (sem o subtítulo que lhe havia dado, que seria Linguagem, trabalho e ensino). Aqui retomo um texto de aluno que também usei na tese, não para pensar suas reescritas possíveis, mas como ponto de partida para uma breve enquete com professores de um projeto em que estava envolvido na cidade de Campinas (professores de 5ª. a 8ª. série). Aqui são apresentadas as respostas dadas por professores e graduandos em letras diante do texto do aluno.
O professor como leitor do texto do aluno
Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado de sua vida,
regular como um paradigma da 1ª. conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito assindético
de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas
expletivas, conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
(Paulo Leminski. “O assassino era o escriba”. In. Caprichos & Relaxos)
Publicando textos produzidos por professores e registrando debates realizados entre professores, o livro Quando o Professor Resolve, organizado por Regina Maria Hubner, não apenas documenta um trabalho possível e aponta soluções construídas no decorrer do processo. Mais do que isso, constitui-se num “poço” de questões, de ideias, de possibilidades. Dele retiro uma passagem em que um texto de um aluno de 4ª. série é citado, e sobre o qual há uma conversa entre os professores envolvidos no projeto.
Não pretendo reproduzir o debate havido. Tomo a passagem como inspiração para a reflexão que se segue.
… Quem começa? Regina, por que você não fala dos textos que você trouxe?
… Tudo bem. Vou entar na pele e contar a história de uma professor que conheço…
(E a personagem entra na roda da conversa).
… Eu queria que meus alunos escrevessem bastante, então, disse a eles para colocarem no papel tudo o que havia acontecido durante o dia.
… Você pensou em partir da experiência da criança?
… Pois é, mas não gostei dos resultados. Vejam por exemplo esse aluno, Luís. Vocês acham que eu poderia dar nota numa coisa dessas?
Nome: Luís Augusto A. Soares, 26/02/1987 4ª. C
MEU DIA
Eu acordei e fui escovar os dentes e depois fui toma café. Ai eu fui arrumar a minha cama. E depois fui jogar bolinha e depois fui joga bola. E depois eu fui anda de bicicleta e depois eu fui au moça ai e fui asidi televisão. E depois eu tomei banho e fui fazer a tarefa e depois vim prá escola.
FIM
Testando leituras (e leitores)
Considerando que o texto de Luís respondia a uma solicitação da professora (colocar no papel tudo o que havia acontecido durante o dia) e considerando que nossa personagem não gostou dos resultados (Vocês acham que eu poderia dar nota numa coisa dessas?), não resisti ao desejo de testar outras leituras do texto. Estava trabalhando com alunos do 3º. ano da graduação em letras e ao mesmo tempo estava envolvido com um grupo de professores da rede municipal de ensino de Campinas (professores de 5ª. a 8ª. série). Na primeira oportunidade que tive, li para meus alunos e para os professores a passagem transcrita acima; transcrevi o texto de Luís no quadro, e provoquei com a seguinte questão:
- O que você faria se fosse o professor desse aluno?
Pedi aos dois grupos que dessem suas respostas por escrito. Como minha pergunta foi considerada insuficiente, a primeira manifestação que tive no grupo de alunos foi:
- É para dar uma nota?
Respondi que deveriam anotar o que fariam, imaginando-se professores do aluno.
No encontro com os professores, a questão não surgiu dessa forma. Uma das professoras afirmou ser impossível qualquer resposta, já que não sabia para que o texto havia sido produzido e, em consequência, não poderia imaginar o que fazer pois, na sua opinião, nada pode ser feito com um texto de aluno se não se souber para que foi escrito.
Mas houve respostas. Apresento a seguir o resultado das observações feitas, agrupando-as em função dos objetivos do texto, problemas apontados, análises desses problemas, trabalhos propostos e preocupações explicitadas pelos sete alunos e pelos catorze professores com os quais conversamos sobre esse texto.
- Quanto aos objetivos do texto
- O texto do aluno seguiu a proposta feita Sim para 4 alunos e 5 professores
- O texto é bom e adequado aos objetivos Sim para 4 alunos e 5 professores
- Problemas apresentados
- Erros de ortografia 7 alunos e dez professores
- Erros de concordância 1 aluno
- Repetição da mesma forma de conjugação
Verbal (ir/infitivo) 1 professor
- Repetição dos articuladores temporais 2 alunos e 13 professores
- Falta de detalhes nas informações dadas 1 professor
- Razões para os problemas apontados
- Influência da oralidade
– sem explicitar como comprová-la 2 professores
– pela ausência do ‘r’ nos infinitivos verbais 6 alunos
– pelo uso de articuladores temporais típica-
mente orais como “e depois” e “aí” 2 alunos
– pelos “erros” ortográficos 4 alunos
– pelos erros de concordância 1 aluno
b) Falta de leitura 2 alunos e 1 professor
c) Falta de atenção, já que oscila na ortografia dos
infinitivos verbais 2 alunos
- Atividades propostas para tentar resolver os problemas apontados
- Leitura do texto em voz alta pela criança 1 aluno e 2 professores
- Sublinhar todas as palavras repetidas, excluindo-as
numa segunda leitura 1 aluno e 9 professores
- Sublinhar os infinitivos para tomar consciência
da oscilação na grafia 1 aluno
- Ler outros textos (narrativos) para melhorar as
Produções futuras 1 aluno e 2 professores
- Corrigir os erros ortográficos explicando 1 aluno e 10 professores
- Estudar com os alunos a diferença entre a oralidade
e a escrita (esta obedece a convenções e não é simples
transcrição da fala) 5 alunos
- Estudar com os alunos a diferença entre língua culta e
Língua popular (nesta teria sido escrito o texto) 2 professores
- Organizar exercícios para o aluno perceber que se pode
dizer a mesma coisa de formas diferentes 1 aluno
- Organizar uma dramatização do texto, para mostrar que
há necessidade de detalhar as atividades relatadas 1 professor
- Estudar conjugação verbal 1 professor
- Organizar trabalho em grupo para os alunos reescreverem
- texto de forma a transmitir as ideias de forma mais
agradável 4 professores
- Estudar a função do parágrafo 1 professor
- Salientar a necessidade de os alunos relerem seu texto
Antes de entregar para constatar os próprios erros 1 professor
- Não fazer nada 1 aluno
- Preocupação básica de qualquer atividade proposta
- Diferenciar oralidade da escrita 1 aluno
- Deslocar a noção de erro para a compreensão das
Diferenças entre língua padrão e língua não padrão 1 aluno
- Cuidar-se pra que as atividades não inibam futuras
Produções dos alunos 2 alunos e 4 professores
Embora em alguns casos os problemas detectados e as atividades propostas possam ser considerados irrelevantes para o texto analisado, alunos e professores foram coerentes entre as atividades propostas e os “problemas” que selecionaram. Pode-se observar nos dados que a grande distinção entre os dois grupos está na forma de interpretação para os problemas apontados: enquanto os sete alunos atribuem os problemas à influência da oralidade, dois deles acrescentando a falta de leitura e outros dois acrescentando a falta de atenção, os professores, de um modo geral, não arriscaram explicações para os problemas que apontaram no texto: um se referiu à falta de leitura e apenas dois observaram a influência da oralidade sem, contudo, explicitar a correlação entre essa influência nos tipos de problemas apontados. A correlação fica, em seus textos, por conta do leitor e é de supor que seja a mesma estabelecida pelo grupo de alunos.
Duas outras observações relevantes:
- Todos os professores apontaram como problemática a repetição dos mesmos articuladores temporais, enquanto o mesmo fenômeno só chamou a atenção de dois alunos.
- O grande número de atividades propostas pelos professores, enquanto os alunos somente conseguiram apontar sete atividades, cinco delas também presentes nas propostas dos professores. Nesse particular há, contudo, um registro necessário: os professores propuseram estudos de assuntos tradicionalmente desenvolvidos em aulas de língua portuguesa (conjugação verbal, ortografia, parágrafo), sem que tais assuntos fossem relevantes para esse texto específico.
Não se trata, no entanto, de comparar as reações dos dois grupos envolvidos. Preocupa-me que apenas um propõe uma atividade que toma as informações contidas no texto: a dramatização. E com esta notariam seus alunos que haveria necessidade de detalhar as atividades relatadas.
Que dizer, então, das leituras feitas? Trata-se de leituras de professores, e estas leituras revelam como o professor lê os textos produzidos pelos alunos: para toma-los como um espaço de trabalho sobre a linguagem, esquecendo-se do trabalho que se faz com a linguagem. Os alunos, ao explicitarem as razões dos problemas detectados, foram além, considerando o próprio trabalho da linguagem e sua presença no manuseio dos recursos expressivos escritos utilizados. Mas as atividades propostas acabam esquecendo esse mesmo aspecto. (Geraldi, 1991)
E se, de fato, o professor quisesse saber como foi o dia do aluno?
O quadro dentro do qual a tarefa é realizada pelo aluno é bastante claro. A professora queria que os alunos escrevessem bastante… por isso, partiu da experiência vivida. Mas seu desagrado pelos resultados revela que, de fato, não havia interesse sem saber da experiência relatada. Também “meus leitores”, em suas observações, tomaram o texto sem qualquer interesse demonstrado em saber o dia de Luís. As informações dadas lhes forma suficientes. E a partir delas listaram enorme quantidade de atividades… Como são insuficientes (apenas enumeram atividades feitas, sem opinar, sem sentimentos, sem detalhes) e como qualquer dos “meus leitores” não se preocupou com isso, posso concluir que meus leitores não foram absolutamente curiosos. E nosso aluno Luís, já na 4ª. série, sabe que, de fato, não se quer saber nada de seu dia. Quer-se, apenas, que escreva (bastante, se possível). A tarefa que se lhe propõe, portanto, é de um relato que não valerá como relato para alguém interessado no que ele fez durante o dia; é um relato que deve mostrar que manuseia recursos expressivos sem que do outro lado haja alguém que considerará os resultados de tal manuseio, mas que tomará os próprios recursos expressivos como objeto de leitura. Opacifica-se o texto, pois não importa com que intenções se trabalhou com a linguagem; importam, na leitura, os esmiuçamentos dos recursos, nada mais.
Se houvesse qualquer curiosidade no leitor, no mínimo algumas perguntas seriam possíveis:
- Afinal, você acordou no horário de sempre? Alguém o chamou? Como você acorda?
- Que pasta de dentes você usa ao escovar os dentes?
- Você perdeu ou ganhou no jogo de bolinha?
- Com quem você jogou bola?
- A que horas você saiu de casa para vir para a escola? Como você veio?
As respostas a tais perguntas, evidentemente, determinarão uma reescrita do texto em que as operações do leitor provocarão operações linguísticas de adição, de substituição, de detalhamento, etc. As pesquisas com base em rascunhos de textos têm apontado algumas dessas operações como fundamentais na construção de novas versões de textos, e por isso operações necessárias para a construção de textos (Fiad, 1990).
Note-se, pois, que a leitura dos textos dos alunos pode ser o primeiro caminho para um trabalho sobre a linguagem. Um trabalho que, por querer efetivamente saber o dia do Luís, acaba por ser mais útil à própria compreensão dos recursos expressivos manuseados na construção de textos.
Referências bibliográficas
Hubner, R. M. (org). Quando o professor resolve. São Paulo, Edições Loyola, 1989.
Fiad, R. S. “Operações linguísticas presentes nas reescritas de textos”. Comunicação apresentada no IX Congresso Internacional da Alfal, Campinas, agosto/1990.
Geraldi, J. W. Portos de passagem. São Paulo, Martins Fontes, 1991.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | mar 22, 2018 | Blog
Nos últimos dias, a velocidade de acontecimentos inimagináveis no cenário político brasileiro parecem querer causar um torpor ou uma letargia nas pessoas, e assim, ainda sem conseguir reagir sob o efeito de uma pancada, você ganha outra, e outra, e mais outra, e outra até que surrado você e eu, todos nós, vamos às cordas.
No meio dessa luta de rua, sem limites e sem regras, vale tudo. Pelo menos para um dos lados. Essa é a parte boa da lógica da dualidade, correto? Préééé! Errado! Ninguém é só bom ou só ruim, somos cheios de pulsações e ânimos que nos movem em vários sentidos, e nem sempre as setinhas e vetores apontam apenas para um lado, mas na maioria das vezes o conhecimento e as reflexões profundas garantem um caminho mais saudável no sentido de resguardar a nossa existência. O que não significa que a escolha do caminho, e o próprio caminho não sejam tortuosos, sempre me lembro do período em que Jesus se retira, e em meio as tentações e agonias, decide o caminho a seguir.
Como explicar o avanço do conservadorismo, a venda do setor elétrico, mulheres presas e agredidas por lutar contra a privatização das águas, apagão, assassinato de liderança política de defesa dos direitos humanos, divulgação de comentários fascistas de alguém que deveria ter equilíbrio para cuidar e zelar pelas leis e bons andamentos do país, proposta de educação no ensino médio com carga horária de 40% em EAD, revogação de livro em escola por temática africana, descoberta de que o facebook além de monitorar nossas informações, vende para companhias que alimentam propagandas presidenciáveis e sim elegeram Donald Trump e sabe lá para quem estavam trabalhando no Brasil. Não acabaram aí as porradas, temos na ordem do dia, um barraco protagonizados por suas excelências, ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barroso no STF, acredito que não preciso explicar qual seria a função desta instituição no país, mas sobre a troca de insultos é preciso fazer um, dois destaques na fala de Gilmar Mendes:
– “eu tenho vocação para mudança, eu quero mudar isso”… Mude para o congresso, consiga voto!
– Nós já temos as mãos queimadas, as nossas intervenções no processo eleitoral deram errado.
Tivéssemos tempo hábil antes do próximo solavanco, deveríamos nos ater a essas duas frases, mas o próximo round já chegou e parece-nos será dado pela recusa de um Habeas Corpus para ex-presidente Lula seguir fazendo campanha e conquistando votos, aqueles necessários para fazer as mudanças caso ganhasse as eleições, se tiver eleição e se tiver governo, por que conforme o segundo destaque da fala de Gilmar Mendes, tendo tido uma vez as mãos queimadas, permitam-me substituir a expressão por sujas, não parece muito certo que pretendem devolver o país aos desígnios populares, então melhor que Lula não faça campanha e que se negue o HC.
…
Ontem recebi um presente bastante inusitado, e quero compartilhá-lo neste texto. No bilhete de felicitações, e não era meu aniversário, estava escrito com letras bordadíssimas: E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará. João 8: 32. Aliás hoje estou bem religiosa, não é? Deve ser a proximidade com a semana santa, período de reflexão. Não, não ganhei uma bíblia. E não, não tinha cartão e nem estava escrito isso…, mas é como se estivesse. O presente foi à história do Acre. Vocês conhecem a história do Acre? Sabem o porquê de a capital ter o nome Rio Branco? Bem a história é um presente, em especial para os dias atuais. Mas como disse Luís Fernando Verissimo, que amo de paixão, em sua crônica Os ovos, ao descobrirmos que uma informação não nos foi dada, ou pior foi dada errada, devíamos exigir indenização por dia de felicidade que aquela informação real nos daria.
Fato é que o mito do povo pacato, não insurgente, embora resiliente sempre me fora entregue nas aulas de história: no máximo uma balaiada, canudos, sabinada e a farroupilha que pelo desfecho para o povo negro eu dispenso. E assim estava eu esperando as horas, acalmando o coração com minhas possibilidades hereditárias de no máximo um quilombo para chamar de meu. Porque vamos combinar que Palmares foi um bagulho bem louco!
Não a escreverei aqui a história do Acre, mas deixarei o link para os que desejarem saber um pouco mais sobre o Acre, o Látex, Rio Branco, Estados Unidos, Bolívia enfim vale muito a pena ler como o Brasil impôs uma derrota aos americanos.
https://www.infoescola.com/historia/tratado-de-petropolis/
….
E por falar/escrever sobre conhecer a história, quilombo, e resiliência e também para forçar no texto uma coesão, aqueles que começam a me ler agora já devem ter notado que essa qualidade não é o meu forte, vou voltar ao assunto do livro Omo-Oba – História de Princesas, de Kiusam de Oliveira. Isso porque no texto de ontem, adiantei que hoje escreveria sobre isso. Para quem não acompanhou essa discussão é preciso dizer que o Sesi de Volta Redonda adotou a obra citada e depois retirou, alegando que alguns pais não teriam aceito o teor do livro por este tratar da história das Orixás, divindades africanas.
Muito bem, muito bem. A Lei 10.639, que é de janeiro de 2003, completou 15 anos, e trata do ensino de história e cultura afro-brasileira, torna-o conteúdo obrigatório tanto no ensino fundamental quanto no médio, em todas as escolas: instituições públicas e privadas. Digo isso para que a gente entenda que não basta a legalidade para que haja mudança na sociedade, existe a Lei, no escopo desta, a importância de trazer as pessoas descendentes, afrodescendentes no caso, um pouco de seu legado e da forma como seus antepassados enxergavam o mundo, as tradições e as contradições, as razões, a mística, a literatura, a oralidade, a música, a coletividade. E os pais reclamaram? Sério? E de racismo ninguém reclama não? Porque será que eu conheço a história de Hércules? O mito de Ícaro? As teias de Ariadne? As Ninfas? Não, eu não estou reclamando. Só quero saber porque o alarme só dispara quando a cultura é da África, parecendo porta giratória do banco, não tem uma vez que passo sem parar.
E não é pouco o que este livro representa, porque é muito o que é negado, e por muito tempo. É enfim você dizer para as crianças e jovens que seus traços, sua cor, seu cabelo, sua roupa, suas danças, sua alegria, seu banzo, sua amorosidade, seu ritmo não são frutos da escravidão, não são feios, não são ruins, tampouco mascarar dizendo que as pessoas não podem ter práticas racistas porque é crime, isso é muito pouco! As pessoas precisam respeitar, entender, aceitar e conviver, e se isso exigir um esforço sobre-humano, que se faça!
Em tempos de explicitação do ódio em guetos conservadores, a educação cumpre o papel de fortalecer as pessoas, dotando-as de conhecimento. É preciso saber das dores da escravidão, das sequelas e marcas que foram deixadas resultantes das favelas e miseráveis, da marginalização dos pobres e negros, mas é preciso conhecer a força de um povo que luta, numa outra lógica, e que por isso nem sempre, quase nunca, ganha dentro da lógica branca colonial, mas resiste. E, que de outra perspectiva, conhecendo um pouco das tradições africanas, perder não é ruim, aliás, não existe bom e ruim apenas (parece muito com a gente e com tudo, não é?), mas que a cada dia precisamos buscar caminhos para o enfrentamento uma vez que existe um genocídio em curso e os demônios do fascismo a espreita.
Mara Emília Gomes Gonçalves escreve neste Blog às quintas-feiras.
por José Kuiava | mar 21, 2018 | Blog
“Dei um golpe de mestre”. Com cara de vaidade mascarada e em atitude de nobreza de data vencida – fora de moda e de época – Michel Temer, ufanado e orgulhoso, proclama o “golpe de mestre” diante dos holofotes da mídia. Em tom de deboche, diz que as medidas que tomou já produziram resultados positivos junto à opinião pública brasileira. É justa e verdadeira a autorreferência elogiosa – de si mesmo, a si mesmo, por si mesmo – “golpe de mestre”, digna de um golpista talentoso só como ele mesmo. E pior, já por conta do talento brilhante singular, quer ser candidato à reeleição. Fico imaginando um(a) estudante perguntando ao professor em sala de aula: “professor, como é possível alguém se reeleger para presidente do Brasil se sequer foi eleito?”. Com certeza o professor vai dizer: “se alguém souber a resposta, por gentileza, diga para todos nós”. Aí o silêncio se faz sepulcral, ou, a sala vira um estrondo de risadas. Dependendo da genialidade do professor, ele chamaria ou um juiz, ou um promotor, ou um ministro – todos do Supremo – para dar a resposta. Os alunos ouviriam a aula da prolixidade mais enfadonha e a verborragia mais fútil, sem nexo e sexo, quer dizer, sem responder a pergunta: como é possível reeleger – eleger de novo – quem não foi eleito sequer uma única vez?
A resposta mais certa seria: “é mais um golpe de mestre de um especialista em praticar golpes”. E assim, de golpe em golpe, as tragédias humanas – execuções, assassinatos, prisões, intimidações, ameaças a moradores de periferias e favelas – estão cada vez mais brutais.
Por conta e força da intervenção militar no Estado do Rio, as forças militares e as forças policiais podem usar da violência sem limites, sem obedecer a leis e sem respeitar direitos para execução explícita ou sigilosa e oculta daqueles que lutam pelos direitos de todos, pela justiça, pela igualdade e liberdade dos oprimidos. As forças policiais executam, às escondidas, principalmente aqueles que tem a coragem de desmascarar a face perversa da própria polícia.
Estamos assistindo desalentados diuturnamente – aterrorizados – uma violência política pública de quem tem a obrigação constitucional, ética, moral, profissional de proteger e preservar a vida de todos. As lições da história de que “a violência gera violência” são muito antigas e verdadeiras. Se matar aquele que matou alguém já é crime, imaginemos, então, matar aqueles que lutam em defesa dos explorados, injustiçados, discriminados, escravizados…
É da história, também bem antiga, a violência militar-policial contra os escravos, contra os negros, contra os favelados, contra as mulheres negras, contra aqueles que lutam pelos direitos sociais de todos. As forças militares – exército, marinha e aeronáutica – foram inventadas, criadas, organizadas, mantidas pelo estado para defender e proteger os ricos no poder. Até quando?
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