por Mara Emília Gomes Gonçalves | Maio 10, 2018 | Blog
O texto hoje é vitimismo puro. Daquele tipo que afirma sempre que a carne mais barata é a carne negra. Quem liga, não é mesmo? Talvez o William Waack.
Texto carregado dessa conversinha que é mimimi de gente preta: racismo, preconceito, pobreza, miséria, assassinatos, eugenia, escravidão, servidão, humilhação, negatividade, situação preta, mercado negro, favela.
Acalmem-se! Não é a bobagem de novela global que aborda uma Bahia branca, tampouco é sobre a demora na resolução do assassinato da mulher negra e empoderada Marielle Franco, também não é sobre a renúncia de Joaquim Barbosa na sua candidatura à presidência da república, também não é sobre o assassinato de Matheusa, jovem não binário e afrodescendente, ou dos corpos negros e pobres que são retirados dos escombros do incêndio do Edifício abandonado no centro de São Paulo que servia precariamente a cerca de 200 famílias.
A parada aqui neste texto é mais sinistra. É sobre tudo isso que está acima no texto e muito mais, é de repente você se dar conta do que está por trás de ações organizadas que tentam ridicularizar ou expor de forma pejorativa queixas legítimas de determinado grupo, que faço parte, sobre fatos que cotidianamente nos afetam.
A intenção desta prática é a de voltar ao tempo passado e que começara a ser desconstruído ainda muito recentemente: cabeças baixas, choro contidos, solidão, nós nas gargantas, raras representações políticas, ser e principalmente parecer “gente de bem”, poucas incursões no ensino superior, aniquilamento de nossas culturas e costumes ancestrais, tempo de apagamento dos os traços físicos e étnicos com cabelos majoritariamente alisados ou domados (como queiram), afilamentos de narinas, branqueamento de nossas peles, acizentamento de nossos coloridos. Tudo em nome do silenciamento e da invisibilidade que revelam muito mais sobre a sociedade.
Quando você bate em alguém, esse alguém é vitima. Quando se rouba toda uma herança, quando se violenta, estupra, mata, dizima, oprime, marginaliza, humilha, inferioriza, e pratica todo azar de maldades inimagináveis com alguém, esse que sofreu os destilares de ódio será vítima. Ninguém aqui está se vitimizando, nos tornamos vítimas sem pedir, merecer, ou querer.
Chegamos aos cento e trinta anos de abolição da escravidão neste ano, e até isso recebeu cores e formato de concessão branca, uma benfeitoria branca e não o resultado de luta, resistência e enfrentamentos diários que se têm registros. Quero perguntar aos repetidores do termo mimimi: – Devíamos ser gratos à princesa?
Afinal, em uma canetada (tinta e pena) ela colocaria fim a 300 anos de escravidão, navios negreiros, mortes, torturas, espancamentos, correntes e grilhões, chibatas, estupros (vou repetir o termo para que não paire a dúvida sobre o tipo de relação que se dava entre donos e escravas, não me fale em consenso quando o que está em jogo é a própria existência) e tudo mais que veio no pacote “full” da escravidão brasileira.
Há alguns dias escrevi que tenho sentido que coisas ruins estão chegando, e agora quero acrescentar algo que não disse naquele texto, talvez tenha dito meio de soslaio como boa capoeirista da linguagem: seremos nós! Punhos cerrados e em riste.
Entendam do que estou falando, não haverá mais arrastar de correntes, nem silêncio. Não voltaremos caladinhos para as senzalas, não emprestaremos nossas mães e o leite de seus seios para fortalecer sua cútis, não estamos em liquidação, não tentem enfiar em nossas goelas abaixo suas vontades escravocratas, não achem que nossa alegria e samba servem ao seu prazer, não acreditem que nossos corpos devem ser objetos de seu prazer e descarte, não faremos negociações. Não pensem que minhas palavras são amargas, só não têm a leveza e poesia dos versos de Cartola: deixe me ir preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar… Mas posso afirmar que ninguém ainda viu nada. Sabe a capa de invisibilidade que recebemos de presente? Serve muito bem aos nossos propósitos de organização. Obrigada!
E por falar em novidade, e esperança (tudo bem, eu sei que não estava falando sobre isso, ou será que estava?) – eu quero sempre ser a mensageira de boas novas – é preciso ouvir a jovem Iza, deixo como sugestão ou proposta de intervenção uma parceria dela com Falcão, chamada Pesadão:
Ooh ooh-ô-oh
Dão, dão, dão, dão
Ooh ooh-ô-oh
Vou reerguer o meu castelo
Ferro e martelo
Reconquistar o que eu perdi
Eu sei que vão tentar me destruir
Mas vou me reconstruir
Vou ‘tá mais forte que antes
Quando a maldade aqui passou
E a tristeza fez abrigo
Luz lá do céu me visitou
E fez morada em mim
Quando o medo se apossou
Trazendo guerra sem sentido
A esperança aqui ficou
Segue vibrando
E me fez lutar para vencer
Me levantar e assim crescer
Punhos cerrados, olhos fechados
E eu levanto a mão pro alto e grito
Vem comigo quem é do bonde pesadão!
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh
Ainda erguendo os meus castelos
Vozes e ecos
Só assim não me perdi
Sonhos infinitos
Vozes e gritos
Pra chamar quem não consegue ouvir
Do Engenho Novo pra Austrália
Pronto pra batalha
Cabeça erguida sempre pra seguir
Se tentar nos parar, não é bem assim
Ficaremos mais bem fortes do que antes
Do sul ao norte sonoros malotes
Música da alma pra sábios e fortes
Game of Thrones com a gente não pode
Minha ostentação é nosso som
Iza e Falcão são do bonde pesadão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Pesadão-dão, pesadão-dão
Pesadão-dão, pesadão-dão
Pesadão-dão, pesadão-dão
Pesadão-dão
Se o deles é chique
Nosso é pau a pique
Que não mata o pique
Fortalece equipe
O som do repique
Peço que amplifique
Toca da Rocinha
Chega em Moçambique
Sábias palavras da sua companhia
Muito espaço, passo no seu caminho
Atitude, bolo um rap pesadão dialeto
Repique como um raio atingi
Iza como imperatriz
Amizades e elos
Novos castelos
Iza e falcão são do bonde bonde bonde pesadão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Compositores: Pablo Bispo / Izabela Lima / Marcelo Falcão
por José Kuiava | Maio 9, 2018 | Blog
– Você acredita nos nossos políticos?
– O que? Eu acreditar nos políticos de hoje? Pensa que sou tão idiota assim?
– Mas você não votou neles?
– Que nojo! Nojo! Tenho vontade de vomitar até as tripas quando me lembro que votei neles!
– Você não confia neles?
– Eu confiava. Acreditava que eles iriam trabalhar honestamente, se empenhar para o bem do povo, para uma vida melhor de todos, principalmente dos mais necessitados. E o que eles fizeram e continuam fazendo? Roubaram e roubam o que é de todos. Seus nojentos!
– Sim, mas estão indo pra cadeia!
– Quem tá indo pra cadeia? Quantos? E porque estes poucos estão na cadeia?
– Então, você não acredita mais na política, nos políticos, nos partidos políticos… em ninguém desta turma?
– Quero ficar longe de tudo isso! Vou viver minha vida. Quero ficar longe dos canalhas. Quero me livrar destes velhacos. Ficam promovendo promotores, nomeando juízes, desembargadores, procuradores – todos grandes amiguinhos – para serem protegidos amorosamente dos crimes no poder supremo. Lá, onde se condena e prende os trabalhadores e se liberta os engravatados de colarinho branco.
– Sim, mas hoje tem gente de colarinho branco na cadeia.
– E você não percebeu que é mais um golpe! Um espetáculo para o povo acreditar neles. Uns anjinhos!
– Mas, os partidos políticos, como escreveu Antônio Gramsci, são o “Príncipe Moderno”, necessários para o caminho da democracia, quer dizer, são indispensáveis para a construção do estado democrático.
– Então, quer dizer que temos 34 “Príncipes Modernos” no Brasil de hoje? Que fortuna! Para mim, partidos políticos são verdadeiros “currais de esgoto”, cheios de excrementos humanos. A cada golpe, pintado de ouro falso, que eles praticam contra o povo, desbundam a galera televisiva, que fica cada vez mais depressiva. É claro, por que omissa!
– Você, então, não faz parte de nenhum partido político? Porque?
– Claro que não! Deus me livre desta podridão fedorenta! Que se fodam todos, mas longe de mim.
– Mas, se os partidos são currais de esgoto humano, quem vai limpá-los? Ou, quem vai criar, organizar e manter outros partidos limpos, de águas cristalinas potáveis, puros?
– Bodeguero! me traga mais uma doze da marvada! E bem cheio, viu. Único alento que me sobra.
Esta conversa imaginária, nada honrada sobre política e políticos, não acontece somente no mundo alentador dos botequins pelo Brasil afora, ao sabor de cachaça, vodka, cerveja… Acontece, e muito, nas ruas, praças, nas fábricas, nas lojas, nas escolas, nas universidades, nas igrejas, nos estádios, enfim, esta conversa acontece na boca do povo.
Não acreditar em alguns políticos, desonestos e corruptos, na multidão de políticos e partidos de uma nação, é um estado salutar e alentador das massas populares de uma sociedade. É uma prova de conhecimento, discernimento e de consciência política do povo, que sabe distinguir os políticos corruptos, desonestos, mentirosos, golpistas dos políticos honestos, éticos e comprometidos com o bem estar da sociedade e defensores do bem comum – a democracia viva, participativa.
Agora, quando uma sociedade, quase por inteiro, não acredita nos políticos, que elege, em sua totalidade e, consequentemente, não acredita na política como condição essencial e imprescindível da democracia “substantiva”, aí já é uma depressão generalizada, contagiante e transmissível oralmente de boca-em-boca pela sonoridade do linguajar popular. Em estado crítico, se torna uma epidemia generalizada pela omissão. Contestar, protestar, denunciar, indignar-se com os golpistas e os golpes que eles praticam diuturnamente, é uma condição necessária, é fundamental e é essencial, mas não é suficiente para garantir as mudanças para as transformações sociais, políticas e econômicas, necessárias ao bem estar de todos de uma nação.
Primeiro, e acima de tudo, é preciso a participação efetiva, permanente e continuada da população na política do país.
por João Wanderley Geraldi | Maio 8, 2018 | Blog
O golpe é de mestre. A justiça, aparentemente fazendo direito e escrevendo torto, realiza parte da demanda popular que se manifesta pelo país desde a prisão de Lula. Julgará favoravelmente o recurso impetrado pela defesa de Lula e na sexta-feira, tudo indica, Lula sairá do cárcere em que foi isolado por muitos dias por um juiz e uma juíza que recusou visitas até de um Prêmio Nobel da Paz.

Um golpe de mestre: Lula sai mas é inelegível. O golpe se aprofunda, e os movimentos populares que estavam nas ruas refluem, os acampados voltam para casa, o delegado Gastão Shefer Netto (como gastão, teria gastado muito na véspera?) poderá dormir em paz. Ficaremos livres de ver cenas repugnantes, como a da segurança que ofereceu a PF ao seu colega Gastão, que depois de criar tumulto, voltou ao acampamento para fotografar descaradamente os manifestantes, num gesto típico da polícia nazista, numa ameaça do tipo “vou te pegar!”.
Com uma só cajadada, o golpe do judiciário terá dois resultados: a desmobilização popular pelo desaparecimento do apelo de Lula preso; e a inelegibilidade garantida pelos mesmos ministros, para acalmar os ânimos das patentes maiores e dos rentistas menores. Golpe de mestre: liberta aprisionando; cala tirando a esperança.
Quem perderá com o julgamento que libertará Lula? Antes dos ganhos, registremos duas derrotas: do juiz Sérgio Moro e da juíza Carolina Moura Lebbos. O primeiro por sua arrogância e absoluto desprezo pelo direito positivo; a segunda porque perderá seus objetos de prazer sádico, os requerentes visitantes a que deu solenes NÃOS e o visitado que, assim recusadas as visitas, estava de fato em isolamento, numa solitária. Tinha TV? Por deus, que TV livre é um tormento… Já imaginaram Lula vendo o JN?
Quem ganhará? Em termos humanos, Lula sairá alegre e carregado nos braços do povo, como foi carregado foi quando se apresentou para ser preso. Fará em Curitiba outro discurso histórico a ser paginado junto ao discurso proferido em São Bernardo. A liberdade é uma conquista, não jurídica, mas popular.
Mas estará feliz o homem que quer voltar à presidência para reacender a esperança de um povo que somente teve um espasmo de vida decente durante seu governo? Como a justiça não anulará o arremedo de processo conduzido por Deltan Dallagnol e Sérgio Moro, como mostraram as fotos do MTST de dentro do famoso tríplex, como o manterá e o usará para barrar a candidatura de Lula.
Barrada a candidatura e com os movimentos sociais recolhidos à rotina cotidiana da aparente insensibilidade social, restará avançar no balão de ensaio que teve em Jacques Wagner o protagonista principal. Ninguém me convencerá que um político experimentado como ele tenha agido de “motu próprio” indo ao encontro de Ciro e Delfim Neto (que assinou o AI-5 e é amiguinho da direita malufista) e que tenha aventado a possiblidade de um PT unido a Ciro Gomes. Ora, ora… Jacques Wagner esteve na primeira lista de visitantes (depois que a Dra. Carolina Lebbos foi desmoralizada pela reportagem da revista OIA). Por quê? Alguns dizem que foi para ser enquadrado por Lula… minha hipótese é outra: foi dar conta da rejeição ao balão de ensaio da conciliação.
Aí está a palavra-chave. Conciliação. Politicamente ela encontrará o alfaiate principal: Lula. Para costurá-la até outubro, Lula precisará estar livre. Uma grande Frente Ampla – ao estilo do que foi a Frente Ampla pelas Diretas-já – reunindo gregos e troianos, para uma “pacificação” do país e seu reencontro com seu destino glorioso, aquele sempre no horizonte mas que jamais se concretiza porque nada se muda, os sobrenomes de famílias continuarão os mesmos; 6 bilionários continuarão a ter a renda de 100 milhões de brasileiros.
Minha esperança é que da Frente Ampla não venha participar FHC, que anda calado precisamente para estar disponível nesta costura!!! Afinal, todos sabem que FHC não gosta muito de Geraldo Alckmin – que diante da Frente Ampla poderia até desistir da candidatura em troca de algum ministério.
Isto tudo se algum comandante do exército não mandar a Madre Superiora da Abadia do STF suspender toda uma turma e convocar os outros punitivistas da corte a darem uma lição de socos verbais aos quatro juízes que se atreverão, na sexta-feira, à insubmissão ao Chefe do Judiciário Nacional, toda fonte da lei, o Dr. Angélico Sérgio Moro, a que até o comandante se submete mesmo sem saber.
Que deus nos livre do comandante e da Frente Ampla que inclua até mesmo o PMDB de Michel Temer (afinal, não se pode dizer que não haja entre os rufiões e ladrões gente digna como o Senador Requião); o PSDB de José Serra e FHC (históricos “homens de esquerda” que voltariam às origens sem culpa nem arrependimento); o PPS de Roberto Freire e Cristovam Buarque (estes servis ‘comunistas’) ; o PDT de Ciro Gomes (homem forte da antiga Arena); o PSB de Marina Silva (a mais abjeta de todos). E tudo como se fosse uma “frente de esquerda”.
por Cristina Batista de Araújo | Maio 7, 2018 | Blog
Em pleno Maio de 2018, me vejo interpelada pelo Movimento Estudantil que ocupa o Campus Universitário do Araguaia, da Universidade Federal de Mato Grosso, em nome de uma luta pela garantia de políticas de assistência estudantil. A questão que desencadeou o Movimento foi o aumento do preço do Restaurante Universitário, principal assistência estudantil de muitos estudantes: a alimentação.
E não sou eu quem falará sobre esse assunto. Simbolicamente, é um estudante, que vive a realidade do desmonte da educação brasileira, quem nos dirá o que pensa sobre a necessidade da resistência em tempos de perdas.
(Fotografia de Jessé Santos. Texto do acadêmico do Curso de Jornalismo Marcelo Almeida Duarte.)
Resistir é existir
Qual a relação entre os movimentos estudantis e a postura filosófica de Michel Foucault? Para tal reflexão iremos direcionar o nosso olhar para o movimento estudantil da UFMT-CUA, onde os alunos ocupam o espaço da universidade desde o dia 20/04 em protesto contra o aumento de 400% no valor do restaurante universitário, que passaria de 1,00R$ por refeição para 5,00 R$.

A resposta talvez não esteja em um determinado livro como a História da sexualidade e sim no fato do porquê Foucault escrevia livros. Escrever para Foucault é tomar uma postura diante do mundo. Por essa razão é que olhamos para uma estética de existência desses alunos, a postura adotada diante da vida dos encontros e desencontros com o mundo, não é apenas ocupar é dizer aos poderes instituídos que não se aceita mais essa forma de se fazer política, que existem outras possibilidades.
A ocupação da universidade é a forma encontrada por eles para se fazer existir e se constituir enquanto sujeitos, é mostrar que a liberdade só existe no confronto, na possibilidade de novas formas de relações de poder. É se posicionar diante da vida e assumir os riscos de uma vida que se materializa no confronto diário para que o seu modo de ser no mundo seja reconhecido.
Não é preciso buscar uma origem na racionalidade que diga o porquê do movimento estudantil ocupar os espaços da UFMT-CUA ou uma universalidade que justifique a postura dos alunos. O que os alunos propõem é uma autonomia de si, é sair da posição sujeito-aluno que necessita da tutela de alguém que lhe diga, o que fazer, como fazer e os motivos que lhe movem a fazer algo.
Olhando para essa busca pela autonomia de si é que nos deparamos com a interpelação de Foucault a Aufklärung de Kant, muito mais que um momento histórico, Foucault advoga que ela é uma postura diante do presente, ao ocupar a universidade a uma transgressão do que foi imposto os discentes efetivamente mostram que se pode ser muito mais do que fizeram deles.
Se resistir é existir, os alunos estão promovendo um desdobramento sobre si, se colocando em outro lugar, lugar este que desafia o fazer de si juntamente com a vida a se tornarem uma obra de arte, a onde serão atravessados pela questão que perpassou Nietzsche, Foucault e tantos outros “ o que estamos fazendo de nós mesmo? ”
A insurreição dos alunos não se dá apenas pelo aumento exorbitante do valor do Restaurante Universitário, ela é uma junção de várias lutas que ressoam entre si, desde as questões de gênero até a reforma agrária. É insurgir diante dos retrocessos das políticas direcionadas a educação, erguer-se contra poderes que tentam disciplinar, normatizar e a sujeição as formas de subjetividade e submissão.
Rebelar contra a universalidade que o poder impõe, é respeitar as singularidades que estão emergindo desse confronto, é nessa relação agonística entre estudantes e a reitoria da universidade que se rompe o instante, é o acontecimento, que não é um fato ou dado é o choque entre duas vontades de potência que ao se confrontarem, faz emergi uma singularidade essa por sua vez vai produzir novas formas de ser e estar no mundo.
Essa luta dos estudantes pela permanência do Restaurante Universitário a um valor acessível, transpassa os muros da universidade indo muito mais além, é confronto que se faz também pelo “povo por vir” por aqueles que ainda aguardam o seu momento, sejam os secundaristas ou qualquer outro que deseja adentrar a universidade.
Revoltar-se não é inútil atrevendo a responder a pergunta feita por Foucault no Le monde em 1979, a resistência dos alunos é um embate contra as microfísicas do poder, não deve ter a pretensão de universalidade ou de totalidade, muito menos o desejo de inspirar uma hierarquia de liderança que guie os até a terra prometida. É uma resistência que deve aspirar ares de uma vida além das formas de vidas aceitas, compreendendo que mudar é necessário.
Que a movimentação dos alunos não tenha a pretensão de produzir uma verdade, muito pelo contrário que dali possa sair inúmeras formas de intervir na política e na própria representação da vida, que acima de tudo eles não se deixem se seduzir pelo poder, como alertou Foucault.
Para se viver uma vida como uma obra de arte, para transformar uma resistência em um modo de existir no mundo, talvez seja preciso seguir o que Lou Salomé uma mulher muito além do seu tempo disse “Se você quer uma vida, aprenda…a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é.”
por João Wanderley Geraldi | Maio 6, 2018 | Blog
Este livro
Este livro é de magoas. Desgraçados
Que no mundo passai, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo… e compreendê-lo.
Este livro é para vós. Abençoados
Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!
Bíblia de tristes… Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!
Livro de Mágoas… Dores … Ansiedades!
Livro de Sombras… Névoas e Saudades!
Vai pelo mundo … (Trouxe-o no meu seio…)
Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!…
Tortura
Tirar dentro do peito a Emoção,
A lúcida Verdade, o Sentimento!
– E ser, depois de vir do coração,
Um punhado de cinza esparso ao vendo!…
Sonhar um verso de alto p0ensamento,
E puro como um ritmo de oração!
– E ser, depois de vir do coração,
O pó, o nada, o sonho dum momento…
São assim ocos, rudes, os meus versos:
Rimas perdidas, vendavais dispersos,
Com que eu iludo os outros, com que minto!
Quem me dera encontrar o verso puro,
O verso altivo e forte, estranho e duro,
Que dissesse, a chorar, isto que sinto!!
(Florbela Espanca. Livro de Mágoas. In. Sonetos. Chiado (Lisboa) : Bertrand Editora, 2002.)
por João Wanderley Geraldi | Maio 5, 2018 | Blog

Esta excepcional novela de António José Branquinho da Fonseca com narrativa em primeira pessoa de um suposto inspetor das escolas de instrução primária constrói uma personagem mítica, somente designada por Barão, um representante da aristocracia decadente possivelmente dos inícios do século XX português (o fim da monarquia portuguesa ocorre em 1910).
A forma da estrutura da narrativa coloca o leitor em contato quase direto com o Barão, conduz ao mesmo cenário – a maioria do tempo no vasto salão do palácio perdido numa aldeia do interior de Portugal. Os fatos narrados – rememorações do Barão e do inspetor – entrelaçam-se com um enredo quase fantástico do que vai acontecendo enquanto o Barão fala de si e, depois de um momento orgástico, também o inspetor diz de seu amor passado.
A narrativa se inicia com a apresentação que faz de si o narrador – o inspetor – dizendo de seu desejo de sedentarismo que a profissão não lhe permite. Segue, pois, em viagem de inspeção e ao chegar à aldeia busca lugar para se acomodar. Entra a professora, que desaparecerá junto com a escola por completo da narrativa, marcando sua visita para o dia seguinte. Para resolver os problemas de hospedagem e transporte, ela manda recado para o Barão.
Este, chegando à estalagem, convida o inspetor para sua mansão e insistentemente continuará convidando-o para que se demore em sua casa. A todas as recusas, vinha o enunciado que caracterizará um dos aspectos sociológicos do Barão:
– Quem manda aqui sou eu!
A chegada ao imponente casarão, suas incontáveis janelas e cômodos, começarão a aparecer nas descrições sucintas. De fato, eles se dirigem diretamente ao salão, onde o Barão começa a beber e a contar suas histórias do tempo em que viveu em Coimbra como estudante de Direito; suas relações com o pai e com as amantes de ambos; as trocas de mulheres que faziam… e bebia, bebia. O inspetor o escuta e frequentemente perde o fio da meada, porque uma fome aguda o espicaça.
O Barão percebe a desatenção, e convoca a criada e lhe ordena
– Manda chamar a Tuna!
Entre a ordem e a chegada da Tuna – que o leitor nem o narrador sabem o que seja – ocorrem outros eventos: a criada serve o jantar, quando também o inspetor começa a beber; uma caminhada pelos longos corredores; a chamada da criada para que sirva mais vinho… de modo que quando a Tuna começa a chegar, nem o leitor e o narrador já a esperavam:
… neste momento ouvimos ao fundo do corredor, ainda longe, um barulho como o rolar de um trovão que se aproxima. Ele [o Barão] estancou com um sorriso satisfeito. Eu fiquei atónito e imóvel. Recuou de repente e, puxando-me, levou-me arrastado até ao outro extremo da sala de jantar. Eu não sabia que barulho era aquele nem percebia estes vaivéns em que o Barão me trazia.
Era a Tuna. O grupo entra encapuçado, organiza-se em círculo e cada um retira de baixo de suas capas seus instrumentos e começa a tocar. Enquanto isso, as personagens bebem, bebem. Até começarem a dançar, num rito orgástico. Como tal, este sempre demanda excessos, e estes acontecem com a comida e com a bebida, mas contrariamente ao comum das orgias, o sexo apenas aparece sublimado pelas coisas que se contam um ao outro.
Dispensada a Tuna, o Barão convida para irem a casa da Bela-Adormecida, a outra e única mulher que ele havia amado. Saem ambos do salão, mas no meio do caminho o Barão retorna. Seu convidado fica sozinho, no escuro, irritado por ter sido deixado a sós. Começa a caminhar em sentido contrário, perde-se pelos jardins até encontrar a criada, que tenta seduzir. É conduzido ao quarto, onde deita e acende um cigarro. É acordado por um Barão salvador, já que havia fogo na cama em que dormia. Aqui aparece uma referência aos Infernos, imagem que se coadunará com o conjunto dos amores não realizados! Sair do inferno…
E novamente encetar a caminhada até a mansão da Bela-Adormecida. Vão ambos ao jardim colher flores, decide-se o Barão por uma rosa branca. Caminham juntos até os portões da amada, mas somente o Barão pula os altos muros. Novamente o inspetor-narrador se vê sozinho. Caminha a esmo, faz digressões filosóficas – já havia afirmado no início da narrativa “Para pensar bem é preciso estar quieto”.
Distancia-se e perde-se, mas o acaso de um moleiro que vinha pela estrada lhe permitirá comprar toda a farinha e o burro, que monta e retorna até a mansão. Lá surpreendido quando o criado lhe diz que seu patrão sofrera um acidente e estava de cama. Vai ao quarto, encontra-o estendido na cama e este lhe diz:
– Mas ficou… na janela…
O leitor deduz: ao escalar a mansão da Bela-Adormecida, o Barão caiu. Mas lá deixou sua rosa branca.
…
Mais tarde tive notícias dele. Mandava-me dizer que lá me esperava.
Sim, Barão!… Hei-de voltar, um dia. E havemos de tornar a perder-nos pelos caminhos sombrios do nosso sonho e da nossa loucura; e mais uma vez havemos de cantar às estrelas, e dar a vida para ires depor outro botão de rosa na alta janela da tua Bela-Adormecida!…
Estes dois parágrafos finais, em tom irônico, fazem retornar do mundo mítico que Branquinho da Fonseca criou: tanto no que concerne à narrativa em si, quanto à figura principal de sua personagem, o Barão.
Ao lado da decadência da aristocracia, de que o Barão seria um representante; se ao lado dos sonhos e loucuras da busca do amor, da busca da mulher-tigre, da mulher que se ama e que amedronta e que se domina; se ao lado da construção psicológica de uma personagem perdida em si mesma e no tempo de outrora, outra temática, como apontou o crítico português David Mourão-Ferreira, aquela do sedentarismo como possibilidade de pensar se apresenta e é desfeita pelas incongruências do pensar do Barão. Pensa-se bem, também no comboio e em movimento…
O autor, nascido no início do Século XX (1905), participou, como coeditor, da revista Presença (que reuniu escritores como José Régio e Migue Torga). Foi um moderno e sua produção literária se inicia quando ainda nem tinha vinte anos. O Barão é uma novela de sua maturidade. Prova de sua espetacular capacidade de ficcionista. Meu exemplar vem acompanhado de um estudo crítico elogioso de David Mourão-Ferreira.
Referência: Fonseca, Branquinho da. O Barão. Lisboa: Portugália, 1969.
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