Encontro da cultura universitária com a cultura popular: Clisertão

Encontro da cultura universitária com a cultura popular: Clisertão

Nos últimos anos, dificilmente aceito convite para participar de eventos. Penso que já dei minha contribuição possível, sempre abaixo do desejável, e que a partir da idade em que estou somente conseguiria me repetir, me repetir.

Mas como sou cidadão honorário de Petrolina, no sertão pernambucano, não pude deixar de aceitar o convite da Universidade de Pernambuco, na pessoa do Prof. Genivaldo Nascimento, criador do Clisertão, para participar de sua quarta edição. Preparei meu texto, A literatura e a esclerose da sensibilidade, já publicado neste blog (11.05.18). E lá me fui para Petrolina mais uma vez.

E as surpresas foram chegando… já no trânsito do aeroporto para o hotel, vou com um pai e filha que chegavam de Roraima. Venezuelanos. Ele tocando arpa, ela tocando tricordino, se não me falha a memória. Vinham para atividades culturais nas escolas públicas de Petrolina que eram parte da programação do Clisertão.

Cheguei de madrugada, e no dia seguinte me encontro com Eric Nepumoceno! Vinha falar sobre “Escrever na América Latina, escrever a América Latina”, uma fantástica conferência proferida na tarde de quarta-feira (9.5.18). Falar da América Latina é impossível sem tocar também em sua realidade política. Como o Memória de Todos Nós (Record, 2015) narra várias episódios de torturas, houve uma pergunta do coordenador da mesa: por que não relatos de torturas no Brasil, e a resposta foi espantosa: porque Eric Nepumoceno diz que os torturados do Brasil não foram respeitados, com a anistia aos torturadores… e que enquanto não se fizer justiça aos torturados, não incluiria estes relatos embora conhecesse muitas destas histórias e era amigo de muitos dos torturados.

E já que falo de torturas, tive longa conversa com o escritor e poeta paraibano,  Políbio Alves. E me emocionei muito. Políbio veio para o Rio em busca de emprego. Tornou-se professor no Calabouço… e estava lá quando assassinaram Edson Luís em 1968. Lutou para ficarem com o corpo de Edson Luís que queriam ocultar. Participou da passeata. E obviamente foi preso… e torturado com consequências físicas que carrega até hoje!!!

Depois tive o prazer de conhecer a escritora Maria Valéria Rezende, uma freira da Teologia da Libertação, com experiência de trabalho social pelo país inteiro. Hoje autora de livros de contos, de literatura infantil. E sempre engajada e lutadora.

Com Carlos Barros conheci seu “Buffet de Poesias”: uma exposição de poemas impressos em folhas soltas, de vários poetas populares, que você lê e escolhe aqueles que desejar ter, organizando uma antologia própria, cuja capa também é fornecida na hora: você sai do encontro com um livro que compôs junto com o poeta. Uma ideia brilhante.

Conheci também a escritora e poeta Zita Alves da Silva. Sua história de vida é exemplo de luta. Moradora da “vila de papelão”, espaço em que flagelados da seca se estabeleceram, depois tornada o bairro José e Maria de Petrolina, escrevia muito. Um agente social alemão a conheceu na Vila de Papelão e lhe deu uma máquina de escrever. Aprendeu datilografia, e tudo o que escreveu foi datilografado e tornado “livro” manuscrito, encadernado com capa dura, com recursos que conseguia indo a programas de rádio pedindo ajuda… Foram expostos vários destes livros no encontro, trazidos por seu filho. Hoje Zita Alves mora no assentamento Ouro Verde, do MST pernambucano. Embora em cadeiras de rodas, venho ao encontro para ler alguns de seus poemas…

Manuseando seu “As Vizinhas”, datilografado e encadernado, copiei a poesia que aqui transcrevo:

A Matemática

O vaqueiro inventou a chibata

O mecânico inventou o trator

mas o cão da matemática

não sei quem inventou.

 

Contar eu não sei nada

pois nunca fui contador

não conto nem as passadas

que na cozinha eu dou.

 

Somar e Multiplicar

Só entendo em português,

mas é ruim p’ra eu decifrar

a tabuada de vocês.

 

Somar é imaginar

Multiplicar é crescer,

Dividir é separar

Diminuir é emagrecer.

 

Aqui está a minha conta

– Seu moço, que eu sei fazer,

essas outras me desaponta

tento e não posso entender.

 

Seu Professor me perdoe

mas a sua Matemática

até parece que foi

tirada de uma matraca

(Zita Alves da Silva, As Vizinhas)

Um encontro universitário que dá voz à cultura popular e que faz o conhecimento científico da pesquisa universitária, o mundo da cultura, dialogar com o mundo da vida onde se produz e onde se gera a cultura que a universidade sistematiza, é um encontro memorável, não poderá deixar de existir. Que venha a 5ª. edição do Clisertão daqui a dois anos!!!

A Madre Superiora contra os professores

A Madre Superiora contra os professores

A senhora ministra Carmen Lúcia, aquela que sabe português e não aceita ser chamada de “presidenta” e que felizmente deixará o lugar de Abadessa do STF, passando o bastão para outro bem pior do que ela, um tal de Dias Toffoli, pois é: esta ministra bela despachou no processo movido pela APEOESP, que tinha ganho de causa nas instâncias inferiores, contra os professores de São Paulo.

Desde o surgimento do piso salarial para a categoria, mais uma das conquistas sociais do governo Lula, há uma luta intestina nos estados e nos municípios. Trata-se da manutenção da carreira dos professores e o pagamento do piso salarial. Toda vez que o piso é reajustado, para manter a carreira, necessariamente os salários dos demais níveis deveriam receber o mesmo reajuste. Do contrário, a carreira fica sem sentido e o piso salarial, com seus reajustes anuais, acabaria por ser, ao longo do tempo, não mais piso, mas teto salarial dos professores.

Conheço a luta sindical dos professores em defesa de suas carreiras, conquistadas há muito tempo. Acompanho mais de perto a questão no estado de Sergipe, por ser sócio honorário do sindicato dos trabalhadores em educação – o SINTESE.

Certamente há que se fazer ajustes nas carreiras: muitos municípios não conseguem ao mesmo tempo manter o pagamento do piso e as diferenças entre os níveis da carreira. Talvez a diferença salarial de um nível para o outro deva ser revista, para não destruir possibilidades de outros avanços sociais, até que este país chegue a uma sociedade mais justa e menos desigual. Faz parte do caminho histórico descontruir as desigualdades e isso demanda tempo ou revolução direta e com armas. Os professores sabem disso e são os primeiros a defender a redução das desigualdades.

Mas isso não justifica destruir a carreira, negando simplesmente o reajuste que se dá ao piso para os demais níveis da carreira! Uma coisa é a revisão discutida democraticamente da diferença salarial entre os diversos níveis das carreiras; outra coisa é destruir as carreiras, o que resultaria da sonegação do reajuste igual àquele concedido ao piso salarial.

Pois foi assim que entendeu a justiça de São Paulo, na primeira instância e na segunda instância. Mas o candidato à presidência, Geraldo Alckmin, consultada a Opus Dei, não aceitou o reajuste determinado pela justiça de seu estado. E a procuradoria geral de São Paulo recorreu ao STF, lá onde tudo que é direito social é cassado pela “colegialidade”, o novo conceito jurídico que justifica qualquer coisa e qualquer voto.

Não é à toa que em pesquisa recente, 90,3% dos entrevistados considera que a justiça não trata todos de maneira igual. No mesmo STF em que o auxílio-moradia para juízes e procuradores é assegurado por despacho monocrático do punitivista confrade Barroso (a um custo de 817 milhões na lei orçamentária), a presidenta do STF despacha contra o aumento para os professores do depauperado estado de São Paulo.

E pasmem: no despacho diz que tal aumento de salários dos professores – a categoria profissional que exige curso superior para seu exercício que ganha mais ou menos 80% abaixo do que das demais categorias que fazem a mesma exigência) feriria “a ordem e a economia públicas”.

Vejam bem: o salário reajustado dos professores paulistas feriria A ORDEM PÚBLICA!!! Que crie problemas orçamentários no estado, necessitando reajustes na execução do orçamento, é normal (talvez o Paulo Preto possa fazer um emprestimozinho a São Paulo, trazendo um pouco dos milhões das contas suíças! Afinal trata-se do grupo do mesmo partido!). Mas ferir a ordem pública é demais…

Todo mundo neste país sabe que os professores brasileiros são mal pagos!!! Mas reajustes em seus salários fere “a ordem pública”… E quem define o que seja “ordem pública”? Lembro que foi um dos argumentos para a implantação da ditadura militar. Agora é repetido como argumento para a ditadura do judiciário!!!! E o pior que o despacho será seguido por todos os municípios e estados do país!

Acontece que é preciso economizar recursos públicos para pagar os novos auxílios (sobre os quais não incidem impostos, porque são tidos como pagamentos indenizatórios) que juízes e procuradores sonham receber: o auxílio gravata, o auxílio taier, o auxílio refeição (para comer em restaurantes) e o auxílio alimentação (para comer em casa), o auxílio universidade (para manter os filhos nas universidades, mesmo que públicas… Epa! Parece que este já existe.), o auxílio sapato; o auxílio cuecas e calcinhas; o auxílio transporte (mesmo sendo carregados por carros oficiais); o auxílio amante (para manter os casos extraconjugais que ninguém é de ferro); o auxílio camisinha (para evitar gravidez indesejada ou doenças venéreas). A lista pode ser infinita.

Enquanto isso, nada de reajustes nos salários dos professores para garantir suas carreiras. Isso é contra “a ordem pública” segundo a ministra Carmen Lúcia.

SEXO EM MOSCOU, por Mano Melo

SEXO EM MOSCOU, por Mano Melo

Já que hoje todo mundo está publicando poesias singelas pelo dia das mães, procurei um poema comprometido e dissidente para fazer rir e divertir.

Sexo em Moscou (Mano Melo)

Quando comecei a passear meus dedos
Pela sua marighelazinha já ficando molhada
Ela teve medo e recuou na resistência:
_ Stálin! Stálin!

Mas depois deu uma olhada
Viu meu Sputinik pronto a entrar em órbita
E exclamou feliz da vida:
_Que vara! Que vara! Que nikita mais Krutschev!

Eu era o sessenta
Ela era a lunática Rainha Lunik IX
Me senti como se estivesse dando um xeque-mate
No próprio Karpov

E por não ser fidel e nem castro
Lambi sua rosa de luxemburgo
E a linda bolchevique gemia tesudinha:
_Ai, língua de seda, maravilhosa
Me lenine toda meu bem!
Me lenine toda, todinha!

Arranhava minhas costas com suas unhas de mil carangueijos
E sussurrava entre beijos:
_Marx! Marx!

E o colchão de molas rangia:
Mao Tse Tung! Mao Tse Tung!

Fiquei putin.
Trocamos de cama
E a outra cama gemia assim:
Yeltsin! Yeltsin!

Me chamou seu tesão
Maiakovsky do sertão
Engels azul do meio dia
Poeta do real
Sua fantasia.

Olhou-me nos olhos e disse:
_Tu és meu Brejnev!

E ficamos por um tempão
Deitados no colchão de neve
E nos amávamos esperando o intervalo
Entre uma e outra greve.

Trotsky!
Ela tinha uma checheniazinha maravilhosa
Que deixava lamarcas

E quando o êxtase atingiu
Ao seu máximo górki
Quando estava prestes
A acontecer um orgasmo dissidente
Sussurrou rangendo os dentes:
_Chove dentro de mim
Chove, chove
Gorbatchev!

(Disponível em https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=1763865217226323&id=148533653174586)

Nada de liberdade: não há coluna vertebral para tanto

Nada de liberdade: não há coluna vertebral para tanto

Bem que o Walter Pomar me disse: “os caras não vão soltar o Lula”. E me chamou de ficcionista em função da crônica aqui publicada “Lula livre, mas inelegível”. O bem informado e ilustrado Pomar sabia que a coragem dos ministros do STF não chega a tanto…  e que depois desta perseguição toda, o caráter conciliador do Lula teria perdido terreno sob outras virtudes suas.

Pois eu fui levado à análise de que os ministros da 2ª. turma, composta por quatro dos ministros que se manifestaram em plenário contra a prisão sem trânsito em julgado, manteriam a coluna vertebral e não se submeteriam, como fez Rosa Weber, à tal colegialidade, já que se espera de juízes que julguem segundo sua fundamentada interpretação do direito positivo.

Não foi o que aconteceu: todos os quatro eminentes senhores, empertigados mas vergastados pela “colegialidade”, tornaram-se outros tantos Rosa Weber: sou contra, a lei diz que não, mas me inclino subservientemente ao que ditou a escassa maioria, por voto de minerva da Abadessa do STF.

E o recurso apresentava uma razão sólida: o decreto de prisão do apressado Dr. Angélico Sérgio Moro veio antes mesmo do julgamento de recursos em tramitação no TRF-4. Não adiantou! A colegialidade está assim do direito positivo.

Assim, perde o golpe de dar um “golpe de mestre”: acabar com a movimentação em torno da liberdade de Lula. E perde a nação a possibilidade de qualquer conciliação possível. Conciliação que não pode ser capitulação, ao modelo dos quatro ministros da 2ª. Turma do STF, mas produto de projeto para o país sair do atoleiro em que está e do qual poderá não sair mais com o aprofundamento da execução da proposta de governo defendida por Aécio Neves na última campanha eleitoral.

Neste sentido, os batedores de panela mostram também eles que são como os quatro cavaleiros da desesperança: votaram no Aécio Neves, bateram panelas para tirar Dilma e agora estão insatisfeitos com o programa que o verme Michel Temer, acolitado pelo ex-PSDB, agora no PMDB, o fantasma Henrique Meirelles, vem tirando do papel e tornando realidade.

Assim, tenho que reconhecer: errei na análise porque confiei na consistência e na coluna vertebral de ministros do STF. Aprendo a lição: estas coisas não existem nas cortes.

Textos sobre textos: Os desvalidos

Textos sobre textos: Os desvalidos

Quando Francisco J. C. Dantas lançou Coivara da Memória (Cia. das Letras, 1991), o crítico Alfredo Bosi o saudou como o retorno à literatura regional. E neste Os Desvalidos lançado dois anos depois, esta regionalidade se aprofunda, tanto no aspecto do espaço físico em que se desenrola a história, quanto em sua temática – os tempos de Lampião pelo sertão sergipano – e por seu rico vocabulário e formas de construções analógicas e metafóricas.

Como muitas vezes já foi afirmado, a universalidade se atinge à medida que se aprofundam os sentidos do local. O poeta é universal quando canta o fato singular, o amor único, o local. O escritor se derrama pelo mundo quando nos conta a história situada, vivida por um punhado de homens e mulheres, datada num período de duração curta, ainda que de cem anos (lembro Gabriel Garcia Marques e os Buendias, ou Érico Veríssimo de os Terra). É no particular que está, concretamente, o universal, este resultado de abstrações que perdem os liames com o mundo da vida.

Em Os desvalidos, Francisco Dantas nos conta a história de Coriolano, filho de João Coculo. Nascido no Aribé, uma encruzilhada onde o pai comprara um peço de terra bruta e construíra onde a estrada se torna em três, uma casa com grande mansarda. Seus dois irmãos mais velhos caíram na vida e nunca mais apareceram a não ser nas poucas lembranças esporádicas de Coriolano. Este, por sua vez, sonha em abandonar o Aribé e buscar vida noutras paragens.

– Moleque feio atentado, você é minhas vergonhas! É a minha condenação! Já tá se pondo hoimem, e ainda não disse pra que veio ao mundo! Menino vadiadeiro! Inventador de moda! Rape o chão aqui pertinho. Ande! E não saia das minhas vistas!

E se o filho embirrava, fazendo bico amudado, o pai lhe sentava a mão no pé do ouvido: pá! A terra inteira estalava, o chapeuzinho de pindoba avoava e não raro ele caía, com a zoeira das abelhas lhe fervendo em ferroadas no casco da cabeça. Haverá lance mais triste do que se rum menino refugado? (p. 142)

Certa madrugada, foge e deixa o velho pai sozinho, a morrer sem quem o pranteie. Vive um tempo com tio Filipe, em Rio das Paridas. Tio Filipe é amansador de cavalos, de fino garbo e desejado pelas mulheres que o rodeiam. Coriolano, ao contrário, com sua cacunda desde nascimento, é o inverso da cobiça feminina.

Tio Filipe se apaixona por Maria Melona, com quem se casa. Mas infeliz na profissão, macambúzio, acaba sendo incentivado pela mulher para realizar seu sonho: tornar-se caixeiro viajante. É o que faz. E na ausência do marido, Maria Melona é assediada. Dela não conseguem os favores… e então lançam calúnias que chegam ao ouvido do sobrinho. Este não se faz por esperar: quando tio Filipe retorna de viagem, conta-lhe o que se diz no lugar. Maria Melona, melindrada pela desconfiança e sem dever paga, sai de casa para nunca mais voltar. Tio Filipe vende suas terrinhas, mas mantém a casinha em Rio das Paridas. Coriolano fica só…

Sai em busca de outro tio, distante, dono de uma botica em Forras. Toma gosto pelo serviço leve que o afastou da enxada e da terra bruta. O tio não tendo herdeiros, acabou lhe deixando a botica com uma condição: que jamais em suas prateleiras aparecerem estes remédios fabricados longe, estas coisas medonhas da modernidade industrial. Conheceu então seu tempo de regalo e rendas, mas fiel à promessa feita, Coriolano acaba sofrendo a concorrência de farmácias que expõem em suas prateleiras medicamentos em caixinhas coloridas… e obviamente vai à falência, tendo que fechar e entregar sua botica.

Um tempo de papo para o ar, pensando e matutando no que fazer, acaba se tornando aprendiz de coureiro: quer se dedicar à profissão, fazendo à mão os apetrechos de couro dos cavaleiros, os arreios caprichados. Novamente a indústria o bombardeia, com a fabricação em série, produtos lustrosos e vistosos. Outra vez volta Coriolano à miséria, e torna-se mestre de reparos, e fazedor de tamancos.

Sai de Rio das Paridas, em busca de nova vida. Vive um tempo em Propriá, onde lhe dão notícias de tio Filipe. Sai em busca do parente que lhe resta. Pelas bandas de Penedo (do outro lado do rio São Francisco, já em Alagoas), encontra-se com o bando de Lampíão, figura sempre presente nas páginas todas desta história. Como remendeiro, fica alguns dias trabalhando para o bando… e lá encontra Maria Melona, agora Zé Queixada, membro do bando (um Diadorim?), com quem conversa e mostra seu arrependimento pelo mal causado ao dar ouvidos às maledicências.

Pago e libertado, sai espalhando amizade com o capitão Virgulino, o que lhe trará a perseguição dos “macacos” ou “mata-cachorros” como eram chamados os componentes das volantes que andavam sertão adentro caçando Lampião.

Povoam a narrativa os medos dos “desvalidos”, aqueles que não têm um coronel patrão que os salve. Medo dos jagunços, medo dos soldados:

Sabem que é terrível se defrontar com a tropa volante do governo ou com a gente perversa do cangaço, um e outro conduzidos por um governo trágico e cruel. Nessa má hora desgramada a impiedade é um bacilo que a gente pega no ar, onde as punhaladas relampejarão em afrontas insultuosas, e não há como escapar delas quebrando o corpo de lado a malicias recusas. De nada valerá a esperteza. É tudo na mais limpa porretada! (p. 172-173)

Retornado a Rio das Paridas, vai levando a vida desgraçada. Que coisa mais rendo é esta vida! Sonha com retornar a Aribé, o que acaba fazendo e reforma a casa paterna, ajudado pelo amigo Zerramo: torna-se dono de uma estalagem de boa freguesia… e volta a viver com rendas e sem fomes.  Um dia lhe aparece tio Filipe. Passam então os três, Zerramo (também caixeiro-viajante) a viver na estalagem gerenciada por Coriolano, dono proprietário.

Numa madrugada aziaga, aparece Lampião com mais três capangas. Quer fazer de tio Filipe seu fornecedor. Este tenta recusar, Zerramo se oferece para a lida, Lampião de incomoda por não lhe quererem obedecer. Zerramo acaba sendo assassinado. Tio Filipe é salvo por um cavaleiro que o leva para longe. Depois se sabe que é Maria Melona que sempre andara aos redores de seu homem. Coriolano foge para a caatinga, volta a Rio das Paridas, onde a morte do Herodes, do Virgulino, do Lampião o encontra em sonhos de voltar para Aribé, lá onde a vida deveria ter sido e não foi por causa do peste cego. Mas vai ficando, ficando… aparece por lá, já amalucado, tio Filipe que andara pela Bahia, mas lá havia sido encontrado pela volante que o torturara até torna-lo inútil para o que queriam: que dissesse onde estava o bando.

A narrativa zigue-zagueia pelo tempo. Começa com o anúncio da morte de Lampião, termina novamente em Rio das Paridas com tio Filipe que só cobra juízo quando sozinho examina sua riqueza em metais sempre escondida de todos e Coriolano vive a miséria dos desvalidos sociais.

As passagens citadas já mostram o estilo, as surpresas:  a zoeira das abelhas lhe fervendo em ferroadas no casco da cabeça. A obra toda está carregada de passagens em que o discurso direto livre aparece, como quando se relatam reflexões de Coriolano:

Mesmo homem avulso, despareceirado, tendo chochado sem fazer filho, e já agora um ovo indez, vitalino de potência encruada – confere e atesta que este mundo é um viveiro de lembranças! Família quisera ter, se deliciava a fitar as moças alvas, tiradas a espuma de leite: – ah, Aldina de Codorá! Mas montar maridando mesmo, a canseira não deixou, nem era de bom juízo abrir casa de fome. Veio rufiando apenas ao acaso, com uma ou outra de uns buguelos, já tinha virado um mamoeiro macho, passado do ponto de casar. Um pé de pau peco, bichado, é isso aí! Era só precisão que me guiava. Não me sobrou tempo pra mais nada. (p. 215, grifos meus)

À riqueza vocabular se juntam construções que são verdadeiros achados, quer pelo que enunciam, quer pela forma de enunciar. Eis alguns exemplos:

“Coragem não se fabrica, é uma doidura que se desata de dentro, sim senhor, …”

“… o começo de qualquer ofício é um trecho penoso e arrenhento, muitas vezes estirado em desânimo, para não falar nas desistências que aí são frequentes, … “

“Essa vontade encravada na agonia de se fazer caixeiro viajado, vendedor de um lote de quinquilharias e miçangas de armarinho, e outros penduricalhos e metais de algum luxo…”

“Pose, minha gente, quem tira e bota é o zinabre do dinheiro! O resto é conversa fiada!”

“A folhagem do umbuzeiro parada numa fixa estampa de parede” [para dizer que tudo estava parado, sem vento que bulisse as coisas]

“… peguei a dar fé de que a única garantia de avultada semente só podia vir do medo que espalhasse. De todos os caminhos experimentados, via que o mais curto e certo era brutalmente intimidar: aberturava o avarento pelo gogó, ou lhe riscava o peito a bico de punhal.” [reflexões de Lampião sobre os coronéis fazendeiros que encomendavam trabalhos de morte e se recusavam a pagar].

Este é um romance que não deveria ter ficado tanto tempo na prateleira, esperando hora para ser lido!!! Li Coivara da Memória assim que foi lançado. Este, no entanto, ficou aguardando tempo… E ele vale a pena!

A literatura e a esclerose da sensibilidade

A literatura e a esclerose da sensibilidade

O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção. (Walter Benjamin)                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 

 

Introdução

Inicio contando um diálogo com dois colegas da Universidade de Siegen (Alemanha) quando estive lá como pesquisador visitante, hóspede do Prof. Bernrd Fichtner e María Benites. Num jantar, também regado a vinho, tive coragem de fazer uma pergunta que sempre me intrigou e eu queria ouvir a resposta de um amigo cujo pai morreu em campo de concentração porque era o chefe do partido comunista da aldeia em que moravam. E como consequência disso, o Prof. Fichtner, pelo seu sobrenome, teve inúmeras dificuldades para ser contratado depois de concursos em universidades alemãs, muitos anos depois de encerrada a guerra, mas em plena guerra fria. Seu contrato na Universidade de Siegen foi possível porque o reitor de então colocou seu cargo à disposição do Ministério caso a liberdade acadêmica fosse recusada à universidade que dirigia. Nada melhor do que dirigir a pergunta precisamente a um dos que sofreu na infância pela orfandade não da guerra, mas da perseguição ideológica e que continuou a sofrer nos começos da sua carreira universitária pela perseguição política a um sobrenome!

Queria saber “- Como o povo alemão não notou o que estava acontecendo nos tempos de Hitler?”

Recebi uma resposta que me fez calar: “- Como vocês, brasileiros, conseguem caminhar pelas ruas de suas cidades vendo pessoas dormirem no chão das calçadas, sem teto, sem comida, sem nada?”

Desde então, a questão da sensibilidade me fustiga. Como chegamos à insensibilidade? Como construímos relações sociais tais que naturalizam a miséria, que cegam os passantes que não as veem e que segam, ceifam os futuros de milhões de habitantes do planeta?

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  1. As guerras e a bestialidade humana

Aceitemos, antes de tudo, que os horrores das guerras brutalizam os homens; o sangue e a morte nas trincheiras transtornam: a guerra é um espaço impossível para a sensibilidade. Mas as guerras sempre existiram, pode-se responder. Sim, existiram porque o mal, desde a Antiguidade, sempre foi considerado o outro, o estrangeiro; e feios foram considerados seus modos de vida, seus vestuários e indigestas suas comidas: os franceses eram criticados pelos ingleses por comerem rãs; os ocidentais consideram inaceitável que chineses comam cães!

Do medo do Outro, do estrangeiro, associado ao desejo de posse e poder, surgiram as guerras. E as guerras destroem não só as cidades e os homens que nelas morrem: desconstroem a humanidade que o processo civilizatório, a duras penas, foi fazendo emergir em cada um de nós. Estes momentos de catástrofes que continuam a assolar a humanidade nas atuais guerras localizadas persistem e insistem: os bombardeiros teleguiados, os mísseis enviados de longe, tudo não deixa de martirizar o Outro que foi tomado como inimigo. Nos dias atuais, sem sombra de dúvidas, este Outro demonizado são os muçulmanos, cujos fanatismos se aprofundaram precisamente porque foi a única fórmula que encontraram para sobreviver ao martírio constante iniciado desde a Guerra do Iraque, passando pela fabricada “primavera árabe”, continuada no Afeganistão pelo Nobel da Paz Barack Obama e ampliada para a Síria por um demente que governa a maior potência bélica do mundo.

No mundo moderno, que sempre representou o inimigo religioso ou nacional com feições grotescas, nasce a caricatura política. Foram ferozes, na época da Reforma, as caricaturas com as quais protestantes e católicos representavam o papa e Lutero. […] Entre os séculos XIX e XX temos a caricatura anticlerical. (Eco, 2007, p. 190)

Para os brasileiros que estão vivendo estes tempos sombrios e tenebrosos, não é necessário lembrar como a imprensa marrom, entre nós representada pela revista VEJA, vem caracaturizando lideranças populares e políticos que de alguma forma ou outra lutam por outras relações sociais no mundo da capitalismo financeiro.   

Em um romance notável, O Relatório Lugano, de Susan George, jornalista e escritora, toma como seus personagens os supostos cem maiores cientistas do planeta, reunidos no final do Séc. XX, para realizarem as seguintes tarefas (2002, p. 25):

  • a de identificar as ameaças ao sistema capitalista liberal e os obstáculos para sua generalização e preservação à medida que adentramos o novo milênio;
  • a de examinar o presente curso da economia mundial à luz dessas ameaças e obstáculos;
  • a de recomendar estratégias, medidas concretas e mudanças de rumo com o objetivo de ampliar ao máximo as possibilidades que o sistema capitalista de mercado aberto globalizado proporcionará.    

Sob o crivo do grupo, passaram os problemas mais graves do mundo contemporâneo: o crescimento populacional; a crise ecológica, o capitalismo de quadrilhas (que levou à crise ainda não superada de 2007/2008); a exaustão dos recursos naturais; os extremismos de diferentes naturezas – fanatismo religioso ou nacionalismo fascista, etc. A cada dia os cientistas-personagens recebiam as instruções e as pautas de discussão. Tudo num mundo ficcional compreensível. Susan George simula debates, estabelece relações amorosas, construindo um enredo que enreda o leitor.

Mas é surpreendente que a recomendação principal das personagens-cientistas será a redução da população do planeta em, no mínimo, dois bilhões de pessoas, sugerindo que isso se faça por guerras localizadas, em territórios definidos. O ideal para o planeta seria uma população que não ultrapassasse 4 bilhões (hoje a população é de 7,6 bilhões – http://www.worldometers.info/br/). O esforço de guerra, diziam os cientistas, levaria à produção, a indústria continuaria a produzir e a ciranda financeira poderia permanecer por mais uns 100 anos.

  1. A velocidade e a obsolescência

Talvez se possa atribuir às guerras a bestialidade que nos habita, uma suposta violência inata que tornaria letra morta as interpretações de Rousseau e do bom selvagem ou da criança de natureza livre e boa. Mas também ruiria a consciência cristã incutida pelo Espírito Santo na pia batismal que nos permitiria distinguir o bem do mal. E tantas outras interpretações metafísicas do modo de constituição do homem. Restaria sempre pensar nas condições que nos fazem ser o que somos, como chegamos a ser o que somos: retomar, portanto, os estudos dos processos civilizatórios apesar da barbárie que nos circunda.

Para fazer isso, teremos que pôr sob exame os valores da sociedade contemporânea. E entre estes valores, um deles se sobressai: a velocidade. Vivemos um tempo veloz. Ninguém tem tempo de ócio, todos correm. Para onde? Não se trata simplesmente da velocidade conseguida pelas novas tecnologias. Também as tecnologias tradicionais, se examinadas, mostraram que há mais ou menos 150 anos procuramos desenvolver máquinas que nos tornem velozes: desde os carros com alavancas ainda puxados por cavalos, os carros, os aviões supersônicos e os drones contemporâneos. Deslocamentos rápidos. Objetos teleguiados. Se isto foi um bem para a humanidade, trouxe também um efeito colateral que a cada vez se aprofunda mais: o desenraizamento. Com a internet, nos tornamos habitantes do mundo, estamos aqui e em outros lugares. Ou em lugar algum. Tornamo-nos virtuais, velozes e … obsoletos.

Com uma rapidez espantosa, fomos galgando outros patamares graças às tecnologias. Para não ficarmos apenas na literatura, lembremos outra arte: Cinema Paradiso, filme de Giuseppe Tornatore que focaliza os primórdios das salas de projeção nos centros das cidades a que acorriam os habitantes. Era o máximo de tecnologia. E uma vida em comunidade era suspensa durante os filmes, vivendo a ficção da tela por momentos, mas sempre em conjunto de modo que o estar ali vendo era um estar com os outros. No entanto, os cinemas desapareceram das cidades e se recolheram às catedrais contemporâneas, os shopping-centers. Vai-se ao cinema quando se cansa de ficar em casa, porque os filmes que se podem ver estão disponíveis em diferentes canais da TV, no Netflix e outras empresas semelhantes.

Mas nesta área nossa geração passou por mudanças constantes: nem bem sabíamos usar o vídeo – em torno dele surgiram inúmeros negócios que estão hoje esquecidos – passamos para o DVD e nem chegamos a aprender a usar todas as potencialidades do aparelho e já estamos com o Blue-Ray. O cinema veio para dentro de casa; não se vai ao cinema, ninguém se arruma para ver um filme: vê-se filme de pijama em casa, no sofá.

Não se trata de imaginar que estou pensando que isso não deveria ter acontecido! Quanto mais facilidade houver de acesso do povo à arte, melhor será. O que estou apontando como uma consequência tenebrosa é a obsolescência produzida e desnecessária.

Quando o apanágio de uma sociedade se tornou a velocidade, a obsolescência se torna uma necessidade. As novas tecnologias e os novos aparelhos cada vez mais sofisticados vêm criando um lixo eletrônico que o planeta, cujos recursos são finitos, não poderá aguentar para sempre. Talvez uma parada; talvez pudéssemos continuar com nossos telefones celulares sem trocá-los pela mais recente invenção da Apple, da Samsung ou de qualquer outra empresa.

Quando a mercadoria se tornou a marca social; quando o consumo do novo se tornou símbolo de progresso pessoal; quando ao lado da miséria encontramos todas as mercadorias consumíveis no supermercado, quando tudo isso nos aconteceu e nos tornamos nós próprios mercadorias e portadores de mercadorias, chegamos a um ponto em que tudo deve passar rápido. Ora, todo sentimento perdura. Então é preciso jogar o sentimento para a cesta do lixo. E com isso se cumpre o projeto da modernidade: a razão sem sentimentos afastou do mundo a sabedoria, que é o lado épico da verdade como disse um dia Walter Benjamin (1994): “Não há tempo para nada. Todos nos queixamos da falta de tempo. Precisamos seguir velozmente, mas para onde?”.

  1. Desde quando o falso se tornou um valor?

Há pouco tempo estive lendo um livro de Paulo Setúbal – Nos Bastidores da História. Uma leitura deliciosa para os tempos que correm, porque se volta atrás na linguagem e no que ocupava o pensamento das pessoas. O livro é de 1928, mas o que conta como “bastidores da história” é do tempo do primeiro e segundo Impérios e do começo da república. Ele nos soa hoje como se fossem crônicas de fofocas (e elas foram publicadas inicialmente em jornais). Para usufruirmos um pouco destas “fofocas”, tomemos a crônica dedicada a Dona Carlota Joaquina.

O autor explora o fato de que D. João VI e sua mulher, Carlota Joaquina, simplesmente se detestavam! Jamais estavam juntos a não ser quando o protocolo o exigia. Chega a pormenores: quando D. João adoecia, Carlota Joaquina o visitava e cuidava dele; quando Carlota estava doente, D. João não aparecia…  Também é sabido que D. Carlota, nossa primeira rainha, detestava o Brasil, tanto que no retorno, ao chegar a Lisboa, dizem que jogou ao mar (ou ao Tejo?) os sapatos que usava porque desta terra não queria levar nem um grão de pó!  “Não teve ainda esta nossa pobre, inofensiva terra de papagaios, detratora tão azeda e tão feroz…”  A fofoca desta crônica fica por conta dos amores de D. Carlota com Fernando Carneiro Leão, casado com a ciumenta D. Gertrudes.

A rainha fez loucuras pelo moço. Mas Fernando Carneiro Leão era casado e tinha mulher ciumenta. A mulher, D. Gertrudes Pedra, enfureceu-se. Disse coisas tremendas contra D. Carlota. Não houve impropérios, por mais nus, que o ciúme não fizesse espumejar na boca da enganada. A rainha soube daquelas iras. O seu orgulho, evidentemente, não sofreu o ser assim violentamente ultrajada por uma mulherinha. 

Aconteceu um dia que D. Gertrudes é assassinada. D. João ordena que o desembargador Albano Fragoso investigasse. E depois dessa investigação, D. João recebe o desembargador:

– Que apurou, desembargador?

– Senhor! Como juiz, sei quem mandou matar a D. Gertrudes, mulher de Fernando Carneio Leão. As peças do processo não deixam dúvida.

– Muito bem. Então?

– Como homem, Majestade, eu não sei! 

João intrigou-se. Determinou:

– Ordeno que fale!

– Vossa Majestade ordena-me. Não tenho que discutir. Cumpro as ordens de V. Majestade: foi a Rainha, minha senhora, quem mandou o mulato Corta-Orelha assassinar a D. Gertrudes. Vossa Majestade poderá constatá-lo neste processo…

Lá arremata o cronista:

“D. João, aturdido com o que ouviu da boca do desembargador José Albano Fragoso, disse ao juiz:

– Convém que desapareça, para sempre, mais este escândalo de minha mulher.

“Tomou o processo, leu-o, e mandou queimar a papelada. Nunca mais se falou em juízo deste crime.”

Como se sabe, a “fofoca” tem que parecer verdade para fazer sentido, mas também tem que parecer exagero. Ela pode ter um fundo de alguma verdade, mas em geral a fofoca tem por base a invenção mentirosa. A mentira com seus exageros.

Parece que a inverdade passou a valor a partir da “publicidade e propaganda”. O marketing mente, todos sabemos. Em minha cidade, com frequência ouço uma estação de rádio que se apresenta como “a rádio online mais ouvida do Brasil”. Trata-se de uma FM que há poucos quilômetros de distância da cidade desaparece. O marketing da emissora não poderia dizer “a mais ouvida do Brasil” porque isso tornaria o enunciado ridículo e ridicularizável. Mas ao dizer “a rádio online”, o ouvinte não tem a mínima chance de verificar se há alguma verdade no enunciado. Para a dicção do marketing não importa qualquer verificação de verdade. Continuará a dizer de qualquer coisa que é “a melhor” e nossos ouvidos esqueceram de escutar e nosso cérebro de pensar. A falsidade passa por verdade.

Da fofoca para o marketing, do marketing para os vazamentos de informações sigilosas até chegar às Fake News: vivemos num mundo em que a não-verdade se tornou tão comum, tão presente, de convívio constante, que foi preciso cunhar o conceito de “pós-verdade”. Não é preciso trazer exemplos das consequências da eleição do falso como valor social. Suas consequências são gritantes: desde a destruição de sujeitos jogados na lama até guerras moralmente justificadas numa inverdade, como foi o caso das “armas atômicas” de Sadan Houssein com que, sabendo que era mentira, Bush desencadeou a guerra do Iraque. Logo saberemos que o bombardeio da Síria, além de imoral e diplomaticamente desastroso, foi justificado numa mentira.

E o pior é que no mundo da pós-verdade as mentiras deslavadas são apontadas quase instantaneamente e nada acontece! Particularmente as mentiras ou meias verdades da imprensa tradicional. Destrói-se a vida dos “outros”, aqueles que não comungam com o mercado e com o neoliberalismo, e nada, mas absolutamente nada acontece! E na semana seguinte as mesmas capas, os mesmos dizeres. A honra de dizer o apurado, de dizer o mais fielmente possível o acontecido se tornou obsoleta.

  1. A banalização da vida

Para além da circulação do não verdadeiro, da meia verdade ou mesmo da falsidade, algo mais sutil e menos visível vem acontecendo: a banalização da vida pela espetacularização de tudo. Há um acidente com um morto no asfalto, a TV sem autorização dos familiares, filma, divulga, torna ‘acontecimento’ sem sequer pedir licença! Vai mesmo aos empurrões, cinegrafista e repórter estão junto do fato. Não importa a imagem mutilada, o sofrimento ali, presente. Importa a imagem. Importa conseguir uma manchete. Importa chegar ao nacional… e se possível ao internacional: fazer virar notícia. E faz-se tudo em nome do sagrado princípio da “liberdade de expressão”, como se por direito divino o exercício jornalístico desta liberdade permitisse a exploração do corpo e do sentimento das pessoas.

E o pior veio junto: muitos intelectuais fazem questão de estarem “na mídia”. Juízes se tornaram atores mais do que julgadores. Delegados não precisam investigar, basta dar entrevistas… Tudo é uma questão de imagem.

Em prosa poética, Mara Emília Gomes Gonçalves registra a tragédia do 1º. de maio de 2018, o incêndio do Edifício Wilton Paes de Almeida, ocupado por “sem tetos” numa sociedade em que há 100 milhões de pobres e 6 bilionários que detém a mesma riqueza que despossuem estes mesmos 100 milhões:

“A tragédia colocada no Primeiro de Maio anuncia as dificuldades e tormentas de um tempo vindouro muito mais do que a bonita música de Alceu Valença: “tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais…”. E os sinais não são sutis e se apressam pelo tempo da desesperança.

Assistimos entorpecidos pela incredibilidade e pela fúria ensandecida dos que se opõem. Mostram a tragédia invertendo culpas e vítimas, não aproximam as câmeras, não “intimizam” os ângulos de forma que apareçam estragos e ruínas, não precisam estar humanizados.

Aproveitam as imagens do fogo que consome tudo, é ainda o mesmo fogo que queimou hereges, rebeldes, bruxas e curandeiras. Não vasculham sequer a dor das perdas, como se não fossem humanos por não ter: – não perderam nada, os que nada tinham!

E assim figuras blasés pululam em inserções midiáticas com seus comentários realizados em tons elegantes e, por vezes, sofisticados, dotados de sentidos absurdamente envernizados de ordem e bons costumes, um disfarce ideal num mundo desigual para iguais.

O que temos nós se não as vidas? As nossas próprias vidas e de mais ninguém? Teremos tempo? Compaixão? Respeito? Teremos amor? Teremos futuro?  E as perguntas fazem um processo inverso ao erguer de um muro, como se fosse possível cada pergunta encerra em mim um tijolo, e um vazio enche meu peito e cabeça.” (disponível em https://blogdogeraldi.github.io/uma-dor-habitando-meu-peito-e-desabrigada-de-humanidade/?preview=true#.WuuREYS02nM.facebook )

 

O filósofo espanhol José Luís Pardo analisa esta banalização produzida pela mídia a partir da seguinte hipótese: “o significado de uma comunicação audiovisual é um conjunto de diretrizes para seu esquecimento, um convite à amnésia. Neste sentido é irrelevante dizermos que as mídias são banais, é desnecessário recordar suas mensagens, estamos seguros de sua reprodução, tornam supérflua toda memória.”(Pardo, 1989, p.25)

Ora, o que não é memorável, que não merece guarda, é banal, é corriqueiro. Com a tecnologia da produção de mensagens televisivas, e depois com todas as possibilidades de arquivo de tudo, a memória já não é mais corporal, não é interna. A memória é externa, está nos arquivos, no computador e no celular, nas “nuvens”. E por lá ficam à disposição, de modo que o memorável é um arquivo revisitável, não uma experiência irrepetível, um amor abrasador, uma paixão avassaladora, e… uma leitura que nos toca, que nos move, que nos comove.

Nada disso é necessário guardar: ponha no arquivo e esqueça por lá, porque amanhã haverá outras mensagens, aos borbotões; outros arquivos a salvar; outras experiências – outro edifício pegará fogo!; outros amores, outra paixão. Coisas para serem postas “nas nuvens”, desde que não fiquem em nós, não nos incomodem, não nos movam, não nos tirem da rotina do cotidiano corrido. Que sejam apenas informações rápidas, que outra imagem vem logo, outra reportagem. Virem a página! é a ordem que nos dão sem nada dizerem. E no sem tempo… para a sentir a vida se torna superficial.

  1. A violência que nos confina

A construção da esclerose da sensibilidade tem outro fator: a violência. Num mundo em que milhões são postos à margem, e da margem veem pelas imagens o que é a vida dos incluídos, não se poderia esperar que, confinados às periferias, nada os provocasse à revolta. Não uma revolta que ponha o mundo de cabeça para baixo, infelizmente. Mas uma revolta contra o fato de não estarem lá, de haver as mercadorias à disposição, mas não poderem ser adquiridas por seus bolsos ou para seus focinhos! É a inclusão no mercado de consumo, é “ser mercadoria” (Bauman, 2008) que leva à violência física a que estamos assistindo e com que estamos convivendo. No entanto é preciso reconhecer: esta violência é diariamente incentivada pelas imagens da publicidade e propaganda, mostrando um mundo disponível e inacessível.

Provavelmente o melhor romance que retratou recentemente esta triste realidade de vivermos assombrados e de criarmos diariamente os motivos de nosso assombro, é a obra de Isabel Moustakas, Esta terra selvagem. Quando o ódio e a intolerância assombram uma cidade:

“A bandeira está precisando ser lavada”, disse Saulo, como se adivinhasse par aonde eu olhava. “A bandeira. A cidade. O país”.

Abri um sorriso. É sempre engraçado esse tipo de conversa. Passar o Brasil a limpo. Lavar, higienizar. Sempre me lembrava de Travis Bickle antecipando (ou profetizando, vai saber) a “chuva de verdade” que viria (virá?) limpar tudo. O problema é que a “chuva de verdade” desses caras é quase sempre uma mistura de sangue e merda. Mais sangue do que merda, muito mais. Daí que esses papos são engraçados, mas de um jeito perigoso. (p. 49-50)

Numa cidade de assassinatos em que quadrilhas armadas executam à vontade, e com frequência cada vez maior, graças às possibilidades de filmagens amadoras e das muitas câmaras de segurança espalhadas por toda parte vigiando a todos, tem sido possível enxergar policiais executando pessoas a sangue frio. Vale a pena acompanhar as reflexões do repórter, João, o personagem-narrador da história, que anda acompanhando as ações de uma milícia de extermínio na maior cidade do país, ambiente do romance. Um bando que usava “cadarços verde-amarelos. Calças pretas, camisas brancas. Máscaras. Suásticas nas cores da bandeira”.

Tem acontecido um monte de coisas nos últimos meses. Um monte de ações que podem ou não estar ligadas a esse grupo em particular. Quer dizer, pode ser paranoia minha, mas fico pensando no que a Marta me contou, o velho dizendo pra ela que era só o começo, que a hora estava chegando, e isso foi há mais de sete meses. Muita coisa escrota tem rolado desde então. É claro que sempre teve babaca tentando vandalizar sinagoga e espancando gay aqui e ali, mas, sem falar em Marta e nos país dela, esses ataques mais recentes parecem obedecer a um plano, a uma estratégia de ação, algo desse tipo […]

E parece que tem rolado muita merda com os imigrantes, sabe? Não só com os bolivianos, colombianos e haitinianos, mas também com os africanos. Essas coisas são difíceis de apurar porque a maioria é ilegal e, exceto quando morre alguém, eles não procuram a polícia.  (p. 58-59)

Somente num país que perdeu por completo a sensibilidade, podem circular enunciados como “bandido bom é bandido morto”. Somente onde a barbárie, fruto do desaparecimento da sensibilidade, pode um homem bem posto na vida usar chicote para bater, em público, noutro homem pela simples razão de que propõem diferentes caminhos políticos para a sociedade.

  1. A sabedoria: alternância da prosa e da poesia

Edgar Morin escreveu um livro em prosa poética sobre Amor Poesia Sabedoria. Os três conceitos remetem à experiência subjetiva irrecuperável e irrepetível. Como toda experiência estética. O êxtase do amor, o êxtase estético e a escuta da sabedoria somente são possíveis quando racionalidade e sentimento se unem, destruindo o homem partido ao meio a que nos levou a modernidade: o lado da luz, a razão; o lado obscuro, a sensibilidade.

A literatura trabalha com estes dois lados num mesmo texto, num mesmo enredo, contando o que não foi – porque é ficção – para entendermos o que foi ou é. Os liames que ligam personagens ao espaço e ao tempo interno da ficção não deixam de referir ao mundo externo, aquele em que vivem o autor e os leitores. Sem estas remessas ao que lhe é exterior, perderíamos completamente nosso sistema ântropo-cultural de referências e toda obra artística se tornaria não hermética – porque todo hermetismo contém uma chave de acesso – mas improdutiva, porque não permitiria o êxtase estético, e inexistente para o mundo dos leitores e autores, homens e mulheres que vivem no mundo da vida e que o compreendem com o mundo da cultura em que a literatura habita junto com as demais artes e junto com a ciência.

De toda experiência estética, sob pena de alienação, retornamos mais enriquecidos (Bakhtin, 2003), mais humanos e, por isso mesmo, mais sensíveis a tudo que nos rodeia. Vivemos alternadamente entre a poesia (o êxtase estético) e o mundo prosaico da cotidianidade. Ambos nos constituem. Se as catastróficas guerras, se a velocidade, se a mentira, se a banalização conspiram todas para construir a esclerose da sensibilidade, a literatura com as demais artes navega contra esta correnteza que nos afoga. São nossas tábuas de salvação postas em auxílio da humanização do homem, de modo que com a literatura podemos deixar de sermos estes pobres homens com a pobreza de seus conhecimentos e informações, porque “nada é mais pobre que uma verdade sem sentimento de verdade” (Morin, 1997, p.33).

Pode parecer estranho que para falar de literatura, eu tenha falado muito do mundo em que vivemos. Acontece que, quando participei de um encontro nacional sobre Literatura Brasileira, no ano de 1975, na PUC-Rio, num debate academicamente acalorado entre dois críticos literários, ambos estruturalistas, tive a oportunidade de presenciar dois fatos memoráveis.

A mesa-redonda encerrava o evento. E a discussão era tão hermética e somente para iniciados que Clarice Lispector e Nélida Piñon se retiraram entre decepcionadas e indignadas. Ao final, tomou a palavra o escritor Osman Lins para ressaltar: durante todo o evento a palavra “censura”, que rolava solta e bem equipada, prejudicando a produção literária, jamais foi pronunciada durante toda a discussão sobre a literatura brasileira! Vivíamos numa ditadura implacável com as artes, e no entanto professores universitários, pesquisadores, reúnem-se para falar do sexo dos anjos da estrutura e da escritura, do grau zero da palavra impossível, etc. etc.

Desde então, em oportunidades como a deste encontro, cuido-me para não cair na implacável crítica de Osman Lins. E por isso não posso deixar de dizer:

LULA LIVRE!

 

* Texto elaborado para conferência no Clisertão – 4º. Congresso Internacional do Livro, da Leitura e da Literatura no Sertão, Universidade de Pernambuco, Petrolina, maio de 2018.

Referências bibliográficas

Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 2003.

Bauman, Zygmunt. Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro : Zahar, 2008.

Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas, vol. I. São Paulo : Brasiliense, 7ª. ed. 1994

Eco, Umberto. História da feiúra. Rio de Janeiro : Record, 2001.

George, Susan. Relatório Lugano. São Paulo : Boitempo, 2002.

Morin, Edgar. Amor. Poesia. Sabedoria. Lisboa : Instituto Piaget, s/data (original em francês de 1997).

Moustakas, Isabel. Esta terra selvagem. Quando o ódio e a intolerância assombram uma cidade. São Paulo : Cia. das Letras, 2016.

Pardo, José Luis. La banalidad. Barcelona : Editorial Anagrama, 1989.

Setúbal, Paulo. Nos bastidores da história. São Paulo : Cia. Editora Nacional, 1928.