por Mara Emília Gomes Gonçalves | nov 14, 2019 | Blog
Era manhã aberta, respirava-se liberdade, mas tinha cheiro de morte por todo lugar. Não estava enganado. Depois que leu a carta de Olívia, soube que as dores e angústias que lhe visitaram nos últimos dias eram prenúncio do pior, nunca mais se encontraria com Fecho.
Lembrou-se de um dia em especial, foi um dia triste, como este. O amigo tinha chegado para vê-lo, tinha as feições assustadas, e antes de tudo pediu duas doses de água-ardente: – bem servidas! Sabia que o amigo sempre tinha uma reservinha para os momentos mais difíceis. Tomou tudo sem falar nada, cusparou um mascado que trazia na boca, e só então começou a a falar das mortes que tinha visto nas ruas naquele dia.
Falava baixo, mas não era medo de que pudessem ouvir-lhe, era outra coisa, pediu ao amigo que tomasse nota de tudo, era preciso o registro das coisas.
Embora sua narrativa pintasse tudo de noite na cabeça do amigo, o narrador acentuava a precisão da claridade, e repetia entremeando os relatos:
– Era sol quente… Tudo muito claro e visto pelas gentes, assistiam sem horror nenhum.
Primeiro falou das pilhas de corpos. Assim que o álcool fez algum efeito sobre a perplexidade do que fora visto e era relatado, fora dando contornos aos horrores: crianças incendiadas em celas, prédios que desabavam sobre famílias, pais de famílias, crianças, mulheres. Pobres sem eira nem beira, no caos.
Depois que despejou as coisas que tinha visto nos últimos dias, propôs fazerem cálculos. Nenhum dos dois amigos conseguia trabalhar com números frios, tratavam de vidas afinal, e cada uma multiplicaria dores tantas.
Pediu que não repartisse aquelas dores com muitas pessoas, sobretudo com as crianças, sabia-lhes capazes de ver as ruínas, mas não queria que elas imaginassem que eles não lutaram pelos dias melhores.
Estava exausto, ver e desver consumia-lhe.
Antes de o amigo ir embora, quis servir-lhe outra dose, mas se apercebeu que o amigo estava faminto, tanto que devorou um pão que estava sobre a mesa, sem sequer pedir e só depois do fim, se desculpou envergonhado: – não comia tinha dois dias. Disse que comesse ainda outro pedaço que restara, e lembrou-lhe a frase dos anos passados, quantas vezes repetida em espécie de contrato: onde come um, comes dois, se tiver uma maçã, ela deverá ser divida para dois, ou quantas bocas tiverem fome.
Ainda uma vez o amigo riu miúdo. Sim, ele sabia.
Nunca tinha visto Fecho com semblante tão endurecido, ele se despediu e prometeu-lhe que voltaria assim que fizesse tempo. E voltou mesmo, vários dias.
Aquele foi outro dia.
por José Kuiava | nov 13, 2019 | Blog
Que momentos históricos difíceis, complexos e controversos do nosso Supremo. O que está em jogo é a garantia do interesse político e não o valor da justiça. Há momentos em que as sessões de julgamentos – condenação, prisão e absolvição – se parecem a cenas de um palco de teatro, com atores e personagens poderosos entogados; outras sessões se parecem a cenas de um circo, com mágicos, acrobatas, palhaços…; e há, ainda, sessões e momentos que se parecem com campos de batalha, com disputas e discussões acirradas.
E como entender e explicar estes espetáculos poderosos e injustos? Qual seria o caminho, o método mais seguro? Existe?
Para entender em profundidade os verdadeiros e reais sentidos dessa história dos nossos dias atordoados – as circunstâncias e o desempenho dos atores, protagonistas e personagens reais e vivos – é preciso examinar e analisar em “profundidade na penetração” os fins ocultos e disfarçados pelas encenações espetacularizadas nas sessões do Supremo e as falas e os gestos obscenos e grotescos do governo populista atual.
Assim, é preciso examinar e analisar a atual conjuntura política, econômica, social e ideológica como campo de batalha sob a hegemonia do bloco no poder, constituído pelas elites mais elevadas do capital.
Primeiro, o que é uma conjuntura? Aqui, vou recorrer a um conceito formulado pelo amigo, sociólogo do IBASE, Cândido Grzybowski. “Considero as conjunturas como momentos históricos específicos de uma sociedade que decorrem do modo como se combinam as propostas, as intervenções, as ações, enfim, a vontade política dos diferentes agentes sociais, com as possibilidades oferecidas pelas suas respectivas bases objetivas de resistência”.
Segundo, como analisar as conjunturas para entender as forças em jogo, em luta? Cândido, de novo. “Analisar conjunturas é analisar a ação, o movimento que resulta, num determinado momento histórico, da intervenção e da correlação de forças do conjunto de agentes sociais […]. Mas não podemos perder de vista que a análise de conjuntura é a análise da história viva, da história acontecendo e não de estruturas passadas”.
Tudo planejado nos bastidores pelos articuladores políticos sempre patrocinados pelo alto capital.
A ´primeira decisão: tirar o PT do poder. Tirar a Dilma da presidência via constitucional jurídica – o impeachment – uma decisão política no congresso nos termos da constituição, portanto legal e legítima. Mesmo sem provas de crimes. Sempre sob as bençãos e a proteção do Supremo.
Depois, impedir o Lula voltar ao poder – à presidência. Como? A Lava Jato. Condenado em Curitiba por decisão política de Moro e Dellagnol. Condenado e preso na Segunda Instância, pois se fosse para o Supremo em Última Instância não haveria tempo hábil para impedi-lo a ser candidato. E, segundo pesquisas, presidente eleito no primeiro turno. Ninguém, antes do Lula, foi condenado e preso na segunda instância. Sem provas de crime, Lula foi impedido de ser candidato. Tudo garantido, agora quase um ano de governo Bolsonaro, há dezenas, centenas de processos de crimes de políticos de direita que precisam ser retardados, postergados para que os criminosos não sejam presos. Inclusive os Bolsonaros – pai e filhos. Se a prisão em Segunda Instância fosse preservada, continuasse em vigor, todos os criminosos teriam que ser condenados e presos.
A decisão no Supremo por 6 x 5 foi uma cena vergonhosa. Revoltante. Inaceitável por força dos valores éticos e de justiça verdadeira. A decisão do Supremo garante os criminosos em liberdade.
Pela esperteza de advogados, os processos serão postergados até a decorrência de prazo, assim, os processos serão arquivados e os criminosos livres.
Primeiro, uma decisão política para prender Lula. Agora, uma decisão política para libertar Lula. O Supremo apenas legaliza as decisões pelo poder das togas.
Lula livre, é mais que justo. E quem paga os prejuízos que o Brasil e os brasileiros tiveram e continuam tendo? E quem paga os prejuízos que Lula teve, preso sem provas dos crimes?
Que Supremo é o nosso Supremo?
por Mara Emília Gomes Gonçalves | nov 13, 2019 | Blog
Minha vontade e meus desejos se alternam impublicáveis, eu sei.
Amenizo e digo apenas que gostaria de entender os números, uma vez que as palavras não me dizem muito.
Não tenho mais vontade de cuspir nos fascistas e tampouco consigo me imaginar socando-lhes as caras, isso é o pior, as caras que estampam o mal, como demônios nervosos e sedentos de la prata…
A cada golpe me torno igual a eles, porque tento fazer o exercício de espelho: penso como devem ter sofrido durante o governo de Lula e Dilma, descoberta do pré-sal foi quase infarto, imagine quando soube da Bolsa-família, redução da desigualdade – com certeza os médicos da família receitaram as estatinas…
Pessoas sonhando perturbam os sonhos dos mesquinhos.
Vejo no espelho o meu semblante de derrota: tendo que sentar ao lado de pobres em voos nacionais e até internacionais, parece rodoviária! – diria a madame que se nega a pagar direitos as empregadas domésticas. Imaginem que abusos e sofrimentos deve ter o coração dessa gente mesquinha e cretina.
Saber do seu filho que cursara as melhores escolas e preparatórios, ao tempo em que não tinha sequer que pegar ônibus, sempre com a comida quentinha, o Nanoninho esperando, estudar com gente de cor, cotistas.
O dinheiro da plástica parcelada tem gosto amargo na fila de espera com gente humilde, sim porque não gosto sequer de usar a palavra pobre, dizem até que dá azar. É como negro: é ofensivo, melhor dizer gente de cor. Esse povo bem nascido e bem criado, ladeado com uma gente que lhes passava na cara que contra tudo e todos estava ali, e vinha pra ficar. Bolsa permanência, pesquisadores, doutores das universidades públicas, porém privadas… Era muito ruim.
Uma indústria crescente, engenharia que rima com soberania, obras de infraestrutura pipocando em todo canto, e por falar em canto, tinha dança, cinema, festas, tudo com uma cultura plural, diversa, com respeito e tolerância.
_ Tem que censurar, de forma enérgica, e se for violenta ainda melhor… Tipo Tiradentes! Marielle!
– Muito triste o que esse povo sofreu, imagina eu?
Imagine.
por João Wanderley Geraldi | nov 12, 2019 | Blog
Os generais brasileiros, aqueles das ‘aproximações sucessivas’ devem estar babando de inveja dos generais bolivianos. Mas terão que engolir a inveja: eles patrocinaram o governo que aí está; eles estão no governo como nunca estiveram (na ditadura militar havia menos militares nos ministérios do que hoje, e lembrem que na época havia três ministérios militares: Exército, Aeronáutica e Marinha!).
Já escrevi aqui que os ventos do Pacífico poderiam não ser bons… Os ventos da Bolívia são putrefatos, porque um golpe militar na América Latina estava fora das possibilidades segundo a maioria dos analistas. Pois não está fora dos horizontes. As ditaduras militares não estão fora do horizonte, para dizer mais claramente, pois a sanha se espalhará entre generais golpistas, que os há em todos os países.
O mapa da América do Sul nos mostra uma região em ebulição. Venezuela na frente: um governo que se sustenta em sua base popular, apesar do boicote norte-americano e da direita fazendo pressão contínua. No Paraguai e depois no Brasil houve golpes com arremedos de institucionalidade. No Equador, o governo eleito com os votos dos progressistas trai o programa que o levou ao poder e começa a implantar a política econômica neoliberal: o povo foi para as ruas. O Chile em convulsão, depois de 40 anos de arrocho neoliberal. E não se enganem: a dívida pública chilena cresceu durante todo o período dos ajustes e dos pagamentos de juros (mas parece que o Paulo Guedes não gosta de olhar números macroeconômicos dos países que quer imitar com sua política suicida).
Ainda estávamos respirando os bons ventos da reeleição de Evo Morales na Bolívia e de Fernandez na Argentina; torcendo pela Frente Ampla do Uruguai, que vai a segundo turno disputando com a direita e com Lula fora da cadeia depois que o STF aprendeu a ler a Constituição e a maioria apertada da corte deixou os punitivistas legisladores e autoproclamados constituintes em minoria (entre eles o execrável Faschin, com essa grafia para lembrar o fascista que é).
Pois os generais exigem a renúncia de Evo Morales. Enquanto porta-vozes da direita, faziam exigências; mas o grupo político de sustentação, o fundamentalista de direita Camacho e seus companheiros incendiavam as casas do vice-presidente, do presidente do Congresso boliviano, e assim por diante. Mesmo com o povo nas ruas, os soldados tendo que enfrentar irmãos e pais, o golpe de estado foi dado!!! E os generais estão assanhando outros generais, podem crer.
O Brasil escapará desta ‘moda’ que vai pegar? O capitão já não governa, somente faz bagunça. Paulo Guedes tenta entregar tudo… mas nem o capitalismo pretolífero está querendo entrar na canoa furada deste palavrão Bolsonaro. Há instabilidade provocada pelo próprio presidente e seus filhos e seus milicianos (ou alguém não percebeu o recado do Queiroz para o presidente, falando em empregos nos gabinetes do Legislativo?).
E Lula irá para as ruas e levará gente para as ruas. Como reagirão os generais?
por João Wanderley Geraldi | nov 11, 2019 | Blog
A soltura de Lula, que não foi uma vitória da sua inocência, mas resultado do reconhecimento dos ministros do STF de que andaram errando na interpretação da letra da lei constitucional, representará uma mudança de patamar na discussão política. Algumas de suas primeiras afirmações depois da soltura com o cumprimento da Constituição por quem a deve salvaguardar mostram que Lula trará algo novo para o marasmo das reações cotidianas aos descalabros vocabulares e aos descalabros na economia brasileira.
Em primeiro lugar, seu apreço pelo resultado das eleições de 2018: aceitamos o jogo, devemos aceitar os resultados. Tivemos candidato derrotado. Seu respeito pelos votos chega à beira da incompreensão para quem foi retirado do cenário eleitoral por um juiz que, nas palavras do presidente eleito, estava cumprindo uma “missão”: por na cadeia o candidato que venceria as eleições.
Assim, reconhece Lula que tendo sido afastado e tendo tido seus direitos desconsiderados por todas as cortes – do Superior Tribunal Eleitoral ao Supremo Tribunal Federal – mas tendo apresentado candidato, não pode deixar de reconhecer o resultado do pleito.
No entanto, reconhecer o resultado não é aceitar o processo: ele apontou a falcatrua das mentiras, a que se deu o nome bonito de Fake News, que circularam durante o processo eleitoral; ele denunciou o não cumprimento da lei – quer pelos financiamentos não confessados quer pelo STE, então presidido pela impávida Rosa Weber. Neste tribunal, houve até um ministro que recusando investigar as Fake News e as mentiras propaladas nas redes sociais chegou a trazer o argumento inacreditável de que nas redes sociais uma mentira pode ser desmentida pelo adversário, de modo que nada precisava ser investigado. É de se perguntar se este mesmo ministro, se acusado de ter violentado a própria filha, não consideraria a mentira uma injúria que não necessitasse de investigação e condenação do ‘internauta’. Provavelmente ele se contentaria com um desmentido feito por ele mesmo, e tudo estaria encerrado, seguindo a lógica do seu voto naquele momento.
Em segundo lugar, Lula mostrou que não se pode baixar o nível na discussão política. Se o atual governo e seus seguidores ou mentores tem pelo palavrão sua preferência, não cabe à oposição usar o mesmo vocabulário. A bronca de deu do alto do caminhão de som quando o público começou a mandar o Bolsonaro a tomar no cu é exemplar. E mais digno de nota ainda é ter dito: Bolsonaro já é em si um palavrão!
Em terceiro lugar, ao alcunhar o todo poderoso Paulo Guedes de destruidor de sonhos, mandou o recado de que não rezará pela cartilha do neoliberalismo, que está se mostrando inviável em todos os cantos do planeta, coisa que o ministro de abissal ignorância não consegue perceber… afinal, convivendo com colegas que acham que a Terra é plana e com outro que se tornou um capacho sem coluna vertebral, neste ambiente a incapacidade de enxergar o mundo deve ter influência sobre a cegueira de Paulo Guedes, para quem as pessoas que vivem com uma renda de R$ 413,00 têm o grave defeito de não economizarem… e entregarem sua economias ao ricos banqueiros.
Em quarto lugar, Lula pôs cada “i” debaixo de seu pingo: este é um governo de milicianos para milicianos. Somente o ex-juiz não enxerga, não pode enxergar e jamais enxergará: ele depende do amante dos milicianos para permanecer no posto.
Por fim, fiquemos de orelha em pé e olhos abertos: Lula não foi inocentado; Moro não foi declarado parcial – e pelos votos já dados na segunda turma do STF, não será declarado parcial, anulando os processos que julgou. Lula poderá voltar para a cadeia pela mão dos facchins, barrosos, carmens e fux, secundados por toffolis e rosas…
E mais: os milicianos não mandam matar. Matam! E Lula nas estradas do Brasil será alvo fácil para profissionais da morte. Tenhamos, pois, cuidados e alegrias contidas.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | nov 10, 2019 | Blog
A Escola de Pais, fundada em Sambaíba, no Maranhão, não deu os resultados com que se sonhava. O estabelecimento tinha pouca frequência, e os pais iam beber no botequim próximo. A direção da escola achou conveniente experimentar novos métodos, e colocou a responsabilidade do ensino nas mãos dos filhos dos alunos.
A princípio o aproveitamento foi extraordinário, pois os adolescentes que passaram a controlar a casa exerceram disciplina severa, exigindo dos pais o máximo de aplicação, pontualidade e aproveitamento. Depois, a disciplina foi abrandando, e havia meninos que convidavam seus pais e os pais de outros meninos a trocar a aula por futebol, no que eram atendidos.
Ao fim do semestre, a Escola de Pais tornara-se Escola de Pais e Filhos, sem programa definido, despertando imitação em outros pontos do estado e até no Piauí. Era uma escola festiva, em que os macacos, as borboletas, os seixos da estrada não só faziam parte do material escolar como davam palpites sobre a matéria, por esse ou aquele modo peculiar a cada um deles.
O entusiasmo foi tamanho que pais e filhos chegaram à conclusão que melhor fora transformar o estabelecimento, já então sem sede fixa nem necessidade de tê-la, numa escola natural de coisas, em que tudo fosse objeto de curiosidade, sem currículo, e surgiu a escola da natureza, sem mestres, sem alunos, sem decreto, sem diploma, onde todos aprendem de todos, na maior alegria e falta de cerimônia, até que o Incra ou outro organismo civilizador qualquer se lembre de dividir as terras de Sambaíba em fatias burocráticas e legais.
Será a escola perfeita?
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