por José Kuiava | jun 20, 2018 | Blog
Quem sabe, faz.
Quem não sabe fazer, vai ensinar.
Quem não sabe fazer, nem ensinar, se mete a criticar quem faz e quem ensina.
Não sei quem inventou esta sutil brincadeira de aparência inocente e estilo irônico, meio sem graça, parece. Talvez, uma brincadeira de sutil maldade por que mal intencionada num nível de inteligência bem elevado. Razão por que ainda não se constituiu num dístico popular vulgarizado. Eu ainda não vi esta brincadeira escrita na forma original como está aqui formatada. A sensação é que os inventores deste dístico não popular são aqueles que fazem e aqueles que ensinam, mas não gostam de ser criticados e não admitem ser criticados por aqueles que não sabem fazer e nem ensinar.
Sem dúvida, é uma brincadeira intrigante e instigante. Particularmente, para os que ensinam – as professoras e professores. Eu mesmo já me atormentei durante os meus 47 anos de professor, quando ensinava metodologias de ensino, métodos e didáticas de alfabetização aos estudantes de pedagogia – futuros alfabetizadores e futuras alfabetizadoras – sem nunca alfabetizar crianças. Alfabetizei, uma vez na vida, adultos pelo método de Paulo Freire. Fico pensando nos professores doutores e PHDs de economia ensinando aos universitários os mais variados e complexos modelos teóricos históricos de economia, sem nunca planejar, organizar, montar, manter e administrar uma entidade, um órgão empresarial de fins econômicos – bancos, indústrias, agronegócios, lojas, casas comerciais… Enfim, a brincadeira se aplica a todas as áreas do ensino profissional tecnológico e universitário – campos das ciências e das tecnologias aplicadas à vida real material ao longo da história.
Fico, também, intrigado com a questão: o que é mais importante para os seres humanos – individualmente e socialmente – saber fazer ou saber ensinar? Primeiro, apreender fazendo ou estudando? Uns proclamam , acima de tudo e tempo todo, que é preciso ensinar aos seres humanos desde criancinhas, ainda bebês, até a idade da juventude e da vida adulta como viver bem e se dar bem na vida. É claro, me incomoda muito também a concepção, a postura e atitude daqueles e daquelas que se dão o direito de só criticar os outros, mesmo não sabendo fazer e ensinar decentemente.
A brincadeira fica mais complexa e danosa quando examinada no campo político. Quer dizer, aplicada aos seres humanos que fazem política sem terem sido ensinados a praticar a política ética para o bem social de todos. E mesmo quando ensinados, praticam uma política antiética de benefícios próprios por meios ilegais, ilícitos. Eles, sim, os políticos corruptos e corruptores não gostam e não toleram os críticos. Aí eu pergunto: para criticar os políticos – que fazem política e enriquecem de política – é preciso fazer política? É uma condição sine qua non? E os juízes, desembargadores, ministros do STF, para criticá-los é preciso ser um deles? Só eles podem se criticar? Pelo menos teríamos uma autocrítica salutar e beneficente.
Eu já pensei, e até me convenci, que para entender esta brincadeira – quem sabe, faz; quem não sabe fazer, ensina; quem não sabe fazer e nem ensinar, critica – é preciso tomar as relações na sua totalidade e em situações invertidas. Examinar as ambivalências, os paradoxos e as contrariedades dialéticas na vida real dialética. Só não vão entender o tom irônico da brincadeira aqueles que não fazem a autocrítica de suas vidas reais e não aceitam a crítica dos outros.
E, para não dizer que não falei de futebol da copa 2018, aí vai um fato real. No domingo passado, 17/06/2018, após o jogo Brasil e Suíça, o Felipe, neto de 8 anos, falou: “vô, o Neymar quebrou o Brasil! Uma vergonha para todos!” – “Felipe, o Neymar depois que virou topetudo não sabe mais jogar bola e fazer gols! Ele só sabe cortar o cabelo, pintar o cabelo e pentear o cabelo”, eu falei. – “Vô, ele não penteia o cabelo. Tá todo despenteado. Parece um monte de macarrão no topo da cabeça!” – “É verdade, Felipe, você tem toda razão”.
Se para criticar o Neymar precisa jogar bola como ele, então…
por João Wanderley Geraldi | jun 19, 2018 | Blog
Abala todos nós sabermos que um cliente de restaurante num shopping da Bahia foi praticamente impedido de realizar um gesto humano. Tratava-se simplesmente de uma refeição para uma criança de no máximo 10 anos. Os seguranças não quiseram permitir que a criança comesse!!! O dinheiro não sairia do bolso deles nem do dono do restaurante e muito menos dos donos do shopping.
Parece ser uma questão de princípio: pobre não deve comer em lugares destinados aos “clientes-compradores”! E os seguranças, provenientes que são de classes não abastadas, ganhando salários miseráveis para as funções que executam porque vivem correndo riscos de vida, agem como cães de guarda do capital que sequer os sustenta com dignidade! Trata-se de vassalagem, pura e simples? Infelizmente se fosse apenas isso, intolerável, representaria apenas falsa consciência. Mas não: o que está por trás das atitudes dos seguranças é algo muito pior: é o fascismo cotidiano que conduz as ações de muitos brasileiros nestes tempos de infelicidade, em que sequer uma Copa do Mundo é capaz de criar qualquer entusiasmo.
E este fascismo dos gestos cotidianos se revela em toda parte. Ontem, véspera de viagem, caminhava apressado para ir ao banco e agendar o pagamento do e-social referente ao mês de junho… e eis que assisto atônito a algo semelhante à atitude dos seguranças do shopping.
Carregando uma armação em canos galvanizados, formando uma espécie de carrinho de mão não empurrado, mas puxado na frente, vinha um catador de lixo reciclável. Moro numa cidade de montanhas de universidades, orgulhosa de si própria, mas que não tem coleta seletiva de lixo! E dela vivem muitas pessoas, diariamente fuçando nas lixeiras em busca do que possa ser reaproveitado.
O senhor – mais ou menos uns 60 anos – vinha puxando seu “carro” como um cavalo!!! O peso era evidente, e na descida ele quase não o controlava. Sofria, era óbvio. Fazia força. Ele falava, defendia um trabalhador que todos sabem preso em Curitiba, e reclamava da corrupção da quadrilha que nos governa.
O sinal para pedestres fechou. Paramos todos. E ele queria dobrar à esquerda e pede licença a duas raparigas (no sentido português do termo) que sequer lhe dão atenção e não saem do lugar, de modo que o catador de lixo teve que fazer um esforço tremendo para não atropelá-las. Ajudei a segurar o carro. E recebemos, ele e eu, os olhares ameaçadores, de xingamento, das duas meninas-moças…
Não resisti! E respondi. “Poderiam ter dado licença! Vocês gostariam de ver seu pai catando lixo para sobreviver? Lembrem-se que isso é uma possibilidade para qualquer um de nós”.
O ódio que enxerguei nos olhos destas raparigas (sempre no sentido português do termo) revela a que ponto chegou o fascismo cotidiano: ele é sem qualquer comiseração! Recordei imediatamente o vídeo de O mundo segundo Ana Roxo que trata dos pobres de direita. A gente deveria voltar a ele sempre que os fatos o confirmam (https://www.youtube.com/watch?reload=9&v=bL72gZ_EXRM )
por João Wanderley Geraldi | jun 17, 2018 | Blog
TRISTEZA DA RUA
A tristeza da rua
vem dos que vêm e que vão.
Dos que não querem chegar aonde vão
e vão andando.
Dos que não têm aonde ir
e vão andando.
Dos que não têm pra onde voltar
e vão voltando.
Dos que voltam sem trazer
o que foram buscar.
(Geraldino Brasil. Poemas útiles. Seleção e versão livre [para o espanhol] de Jaime Jaramillo Escobar. Edição bilíngue. Madri : Pre-textos, 2003)
por João Wanderley Geraldi | jun 16, 2018 | Blog
Este é um livro da década de 1950, escrito pelo prêmio Nobel de Literatura, o escritor guatemalteco Miguel Ángel Astúrias. Faz parte do ciclo da literatura fantástica sul-americana que chegou até nós nos anos 1970.
Neste livro, a história acontece numa plantação de bananeiras em algum país da América Central: não há indicações do país, pois até mesmo viagens à capital, esta aparece nominada apenas como “capital”.
O romance se inicia com as derrubadas das florestas no lado do Oceano Pacífico, em clima húmido, carregado de mosquitos e doenças. Os pioneiros transformaram estas terras em terras cultiváveis. Os trilhos foram avançando à medida que a terra ia sendo “dominada”. Seguiu-se o plantio das bananeiras. E obviamente uma grande companhia era dona de tudo: das terras, dos bananais e das vidas de seus trabalhadores. Chamavam-na de Tropicaltaneira, mas seu registro jurídico era Tropical Bananeira S. A., com seus acionistas distantes, “a gente de lá” em Chicago, anônima e invisível para os trabalhadores explorados.
No mundo irrigado pelas chuvas torrenciais, pelos mosquitos, pelas doenças dos primeiros tempos vão sobrevivendo alguns dos trabalhadores, outros retornam a suas origens doentes, carcomidos, terminados. Mas há os que sobrevivem. Adelaido Lucero acompanhará toda a saga deste enredo. Trabalhador devastador da floresta, participa do plantio do bananal e nele se torna capataz, recebendo nas terras da Tropicaltaneira outros trabalhadores vindos dos vales do Atlântico em busca de trabalho, dinheiro e sorte.
No mesmo ambiente vivem os estrangeiros, mas compartilham com os trabalhadores apenas as agruras do sol e do calor. De resto, são vidas distintas e não interpenetráveis:
“Peões, capatazes, agregados, administradores, até aos administradores pode-se dizer que chegava a organização humana, a partir daí começava com outros homens a maquinaria cega, implacável que convertia tudo em cifras nos livros, inalterável, precisa, cronométrica.” (p.18)
Noutra passagem, mais explícita se faz a diferença:
“As casas de vocês têm quatro metros de largura, as casas deles quatrocentos metros só de jardim. Nas de vocês tudo falta, nas deles sobra tudo. As mulheres de vocês andam vestidas com roupas de dentro ordinárias, as deles com roupas de seda tão finas como asas de borboleta. Não somente vocês, mas os bichos da seda também trabalham para eles. S.O.S. dez couraçados, seis destroyers, nove torpedeiros a todo vapor para desfazer esse mau pensamento de que não somente vocês mas os bichos da seda também trabalham para eles.” (p.40-41)
No enredo, as vidas das personagens se entrecruzam e todas elas mantêm uma relação com a exploração da multinacional norte-americana. De um lado, os trabalhadores e de outro lado os administradores, representantes da “gente de lá” que efetivamente comanda.
O primeiro administrador que se dá conta de que os “ventos podem mudar”, John Pyle, volta à matriz e entrega seu relatório: para ele a companhia deveria deixar de ser a dona dos bananais, porque as leis trabalhistas estavam assegurando alguns direitos. Seria mais lucrativo comprar diretamente as bananas de agricultores independentes. Seu relatório não foi levado em conta. Antes de retornar, John Pyle perdeu a mulher, que estava por somente em férias, mas que acabou se apaixonando por uma personagem típica do “realismo mágico”: um vendedor de tudo o que a costureira precisa, que aparecia sempre com sua gargalhada. Assustava e fazia rir e nada vendia. Chamado de Cosí, numa de suas aparições na casa de Lucero se encontra com Leland, a mulher de Pyle. Conversam em inglês… e acabam ficando juntos, como se fossem agricultores independentes plantando seu próprio bananal.
Quando os preços oferecidos pela companhia se tornaram aviltantes, e as recusas constantes sem que os critérios ficassem muito claros, houve revolta abafada pela polícia. Muitos dos pequenos produtores foram presos. Será Cosí, agora com o nome assumido de Lester Mead, que os tira da cadeia e com eles forma sociedade. Compram um caminhão e começam a vender a banana para consumidores locais. Fustigados pela companhia que passou a distribuir bananas gratuitamente na capital, vão perdendo seu negócio. Então Lester importa máquinas com que fazer “farinha de banana” salvando assim os camponeses dos jogos de preços e recusas de compras com que a companhia os explorava.
Lester Mead viaja para Nova York acompanhado de Leland. Hospeda-se num casarão e vai a encontro com seus advogados. Alega que a casa é de amigos que estão viajando. Em carta noite, todos os amigos se reúnem para uma festa e então Leland fica sabendo que Lester na verdade é um dos grandes acionistas da companhia, e que estava por lá para trazer um relatório a um grupo de acionistas que não concordavam com a política que vinha implementando o Papa Verde, o diretor presidente da Tropicaltaneira.
Do relatório do agora Lester Stone, duas passagens muito significativas:
‘Os que afirmam que a riqueza é produzida por empresas mercantis nas quais não cabe o mais pequeno sonho, a menor fantasia ou fábula, ignora a existência de explorações que são como grandes sonhos, e esta é uma delas, Anderson sonhou com estas plantações de banana e os donos agora pensam sonhar quando leem as cifras fabulosas dos lucros…” (p. 99)
“Por alguns punhados de dinheiro, pelo domínio destas plantações, pelas riquezas que embora fragmentadas em dividendos anuais são milhões e milhões de dólares, perdemos o mundo, não a dominação do mundo, essa nós temos, mas a posse do mundo que é uma coisa diferente, agora somos donos de todas essas terras, dessas tentações verdes, somos senhores mas não devemos esquecer que o tempo do demônio é limitado e chegara a hora de Deus, a hora do homem…” (p. 102)
E é com esta hora do homem que o enredo chega ao fim: o xamã Rito Sou Perraj entra no Campo Santo repetindo Sugusán, sugusán, sugusán até receber um sinal: desenterra o corpo de Hermenegildo Puac, decepa-lhe a cabeça e sai até o mar. Invoca seus deuses e um furacão se forma destruindo tudo, matando peões e administradores, não poupando sequer Lester e Leland… Tudo é destruído!
Acalmado o furacão – o vento forte – tratava-se de verificar o que sobrou de homens, terras e plantas para um recomeço do tempo, do tempo do homem.
Voltar à literatura do realismo mágico nestes anos de fins da segunda década do Séc. XXI talvez seja invocar forças semi-adormecidas e necessárias para enfrentar o mundo neoliberal de hoje, quando a exploração já não é mais somente do trabalho, mas de toda a vida – inclusive espiritual – de todos em benefício de alguns poucos. Talvez o Vento Forte se vêm formando nos movimentos sociais que percorrem o mundo, pois não há satisfeitos nele, só há uns poucos olhos perdidos nas cifras de suas rendas virtuais que financiam a guerra e a morte. E são olhos vidrados de fantasmas que esqueceram que um dia foram homens.
Referência: Miguel Ángel Astúrias. Vento Forte. Tradução de Antonieta Dias de Moraes. São Paulo : Editora Brasiliense, 1971.
por João Wanderley Geraldi | jun 15, 2018 | Blog
Na escola em que nos formamos e à qual retornamos por opção profissional, há uma arraigada tradição de ensino dos chamados conteúdos gramaticais, já que caberia à escola, supostamente, sistematizar o conhecimento resultante da reflexão assistemática, circunstancial e fortemente marcada pela intuição de todo falante da língua, propondo-se esta sistematização como um suporte necessário a um melhor desempenho linguístico dos estudantes.
Sabe-se, no entanto, que tal sistematização não se dá, na prática de sala de aula, de forma tão sistemática. O simples manuseio de alguns livros didáticos, ou de materiais alternativos produzidos para substituí-los, nos mostra que a sequência em que são trabalhados tais conteúdos gramaticais dificilmente permitirá, ao final de oito anos de estudos, que o aluno tenha um quadro sinóptico de ao menos uma proposta gramatical. O conteúdo é distribuído, nas diferentes séries, de uma forma tão irracional que a uma lição sobre o plural de substantivos compostos pode-se seguir uma lição de análise sintática. Qual é, então, a sistematização que se oferece à reflexão prévia do estudante? Tratar-se-ia de uma sistematização a cada vez local? Por conta de quem ficaria, então, a construção de uma visão geral da teoria gramatical estudada? Por conta do estudante?
Acrescente-se a estas questões um problema que subjaz a toda esta prática escolar: ela se dá como se a escola estivesse sistematizando uma reflexão que lhe fosse prévia. É bem verdade que todo falante realiza, em suas atividades linguísticas, atividades epilinguísticas, em que avalia os recursos expressivos que utiliza: se são apropriados para a ocasião, se exprimem oque se deseja, o que é preciso silenciar e o que é preciso dizer, quais os conhecimentos que é preciso tomar como compartilhados etc. No entanto, as atividades de ensino dos conceitos gramaticais não constituem, na prática escolar, a desejável continuidade destas reflexões epilinguísticas, mas se apresentam, ao contrário, como a verdadeira e única reflexão sobre os recursos expressivos de uma língua. E, ainda pior, as análises resultantes das teorias gramaticais que inspiram os conteúdos de ensinados são respostas dadas a perguntas que os alunos (enquanto falantes da língua) sequer formularam. Em consequência, tais respostas nada lhes dizem e os estudos gramaticais passam a ser “o que se tem para estudar”, sem saber bem para que aprendê-los.
Assim, apesar da distância temporal que nos separa de Rui Barbosa, ainda permanecem atuais algumas de suas observações sobre o ensino:
Na escola atual, o ensino começa pela síntese, pelas definições, pelas generalizações, pelas regras abstratas. […] O fruto desse processo irracional é digno do método, que sistematiza assim a mecanização da palavra, descendo-a da sua natural dignidade, para a converter numa idolatria automática do fraseado. […] é de definições, de classificações, de preceitos dogmáticos que se entretece todo esse ensino. Em todo esse longo e penoso curso de trabalhos que nos consomem o melhor do tempo nos primeiros anos de estudo regular, não se sente, não há, não passa o mais leve movimento de vida. (Rui Barbosa. “Métodos e programa escolar” in. Reforma do ensino primário e várias instituições complementares da instrução pública. RJ, Ministério da Educação e Saúde, 1946 (Obras completas de Rui Barbosa, 1883, vol. X, tomo II)
Em estudo anterior (Portos de Passagem, SP, Martins Fontes, 1991) defendi o ponto de vista de que na correlação entre o trabalho de ensino e o resultada da reflexão científica processa-se a fetichização da ciência e seus produtos. Interessava-me, naquele momento, contrapor à prática tradicional do ensino de conteúdos gramaticais uma prática baseada em textos enquanto uma alternativa cujas preocupações fundamentais fossem as operações de construção de textos. Neste texto, pretendo avançar tal estudo, especificando, através de exemplos, como poderia se dar um estudo, inspirado na mesma concepção de linguagem e de seu ensino, de micro-operações (nível da palavra e da frase) de construção de textos.
Exemplo 1: estudo de uma questão ortográfica
Como se sabe, o fonema /s (ch)/ pode ser grafado, em português, ora com x, ora com ch. São clássicos os exemplos de palavras homófonas xá/chá; xeque/cheque, xarada/charada [neste caso, homófonas e sinônimas]. Todos nós professores já convivemos com as dificuldades de alunos, às vezes de séries avançadas do 1º. grau, em relação à grafia correta de palavras como enxergar/enchegar? enxame/enchame? enxoval/enchoval? enxente/enchente? enxarcado/encharcado? Registro aqui uma experiência de sala de aula em que os alunos, passo a passo, foram tentando construir uma regra prática para resolver suas dúvidas.
(a) Face à ocorrência, em textos dos alunos, de uma ambiguidade ortográfica em palavras como enxergar/enchergar, enxada/enchada, enxame/enchame, foi lhes feita a proposta de estabelecer, diante de tais exemplos, quando deveria ser ch ou x. (1) A primeira resposta dos alunos foi o estabelecimento da seguinte regra geral: Sempre que há um n antes, usa-se x.
(b) Diante de tal regra, a professora acrescentou à lista de palavras problemáticas mais alguns itens lexicais, como gancho, rancho, inchume. Face aos novos dados, os alunos reformularam sua regra para: Sempre que há en antes, usa-se x.
(c) Novamente a professora somou aos dados novos itens lexicais, como enchente, encharcado, encheção. Surpreendentemente, os alunos estabeleceram a seguinte regra, face aos novos dados: Sempre que há en antes, usa-se x, menos quando já existia a palavra, antes, escrita com ch.
Solicitados a explicarem a regra, os alunos disseram que enchente vem de cheio; encharcado vem de charco; e encheção vem de encher que quer dizer “deixar cheio”.
Mais do que a aplicabilidade geral da regra formulada (há no mínimo uma exceção, enchova aliás a única que conheço), importa considerar o processo de trabalho, em que os alunos, a partir de uma dificuldade real, foram postos diante de dados para com eles elaborarem uma reflexão sobre uma questão, muito específica, da língua portuguesa. Obviamente, esta primeira reflexão ofereceu a oportunidade para o estudo de processos de formação de palavras, já que os alunos fizeram uso de seu conhecimento implícito a propósito, fazendo menção à derivação na regra que formularam.
Exemplo 2: estudo a propósito de uma classe gramatical
Longo tempo se gasta na escola para estudar as classes gramaticais, sem que o aluno consiga, a partir dos exercícios que lhe são propostos, entender que, tomando os próprios recursos da língua, está fazendo o mesmo raciocínio classificatório, tão comum em seu cotidiano, ao separar objetos, ao guardar roupas no armário, ao selecionar seus brinquedos etc. E não consegue entender porque, nas ações cotidianas, ele faz toda separação com base em critérios fornecidos pela sua experiência, pelos seus objetivos etc. Ora, as classes gramaticais lhes são apresentadas a partir de definições, sem que os critérios de classificação sejam explicitados e sem que os objetivos da própria classificação sejam considerados. Aprende nomes de classes, definições, faz exercícios, mas não consegue entender a razão de tais classificações. Obviamente, a teoria gramatical tradicional que embasa os estudos escolares não tem critérios muito precisos – ora os critérios são morfológicos, ora semânticos, ora sintáticos. Além disso, toda classificação responde a algum objetivo teórico (em língua não há classes naturais e aquelas que construímos respondem a alguma necessidade do estudo teórico que as produziu), e este objetivo nunca é explicitado no ensino da gramática (a classificação parece ter um valor em si).
Registro aqui a experiência de discussão com minha filha, quando aluna de 5ª. série. Em aula, a professora havida dado uma definição tradicional e escolar de verbo (palavra que exprime ação, estado ou fenômeno da natureza). A lição de casa, é claro, foi identificar os verbos de um texto (um uso comum e pobre de textos na escola).
Diante da tarefa a realizar e com base na “definição” estudada, o texto ficou bordado de “sublinhados”, traços que ela fez em diferentes cores (encontrando ao menos alguma coisa de lúdico na tarefa). Mas desconfiou: eram muitos verbos! Entre eles: felizes, ontem, doente, plantação etc. Pediu-me que olhasse a lição. Explicou-me a razão de cada palavra sublinhada não entendia porque eu insistia que devia sublinhar é e estão, recursos muito frequentes no texto. Sugeri-lhe um outro critério: sublinhar somente as palavras que lhe permitissem, quando estivesse falando, dizer nós + …mos (nós comemos, nós trabalhamos, *nós felizemos).
O número de palavras diminuiu sensivelmente, mas permaneceu um problema: os substantivos deverbais e alguns adjetivos permanceram sublinhados (no caso, trabalho, engano, alegre). Como dar conta destes casos, face à ‘regra’ que havia dado? Percebi que não bastava ter um critério morfológico para garantir uma correta identificação de verbos num texto. Era preciso considerar também o contexto de cada frase, para excluir casos como
… O trabalho foi difícil…
… o engano foi de Pedro…
…a moça ficou alegre…
Sugeri-lhe, então, que colocasse no lugar da própria palavra sublinhada “a fórmula” que havíamos combinado, para ver se resultava em algo que ela diria:
…O nós trabalhamos foi difícil…
A reação foi imediata: é claro que não vou dizer isso! mas também não vou dizer … “eu nós encontramos os colegas… e aqui [eu encontrei os colegas] você disse que eu acertei!
Embasbacado pela reação, tentei explicar que, na verdade, para identificar os verbos, era preciso imaginar uma outra fase, onde aparecess “nós + …mos. Ela aceitou a explicação, mas eu fiquei com um problema até hoje: como, na lógica que estava propondo, encontrar uma saída para alegre já que qualquer outra frase que ela tivesse imaginado no momento poderia conter nós alegramos (Nós alegramos a festa).
O resultado de todo o trabalho foi que ela achou muito difícil identificar verbos e não sabe para que fazê-lo; eu fiquei com uma questão para resolver. Nos novos exercícios, ela foi ‘quebrando o galho’, acertando aqui, errando acolá. Infelizmente, até hoje, não entendeu para que classificar as palavras… (e nem eu entendo para que ela deve saber fazer isso…).
Exemplo 3: estudo de uma questão pragmática
Em encontro com professores, tenho usado, com certa frequência, o exemplo que vou expor a seguir. Ao construí-lo e usá-lo, dois são meus objetivos: a) mostrar que se os alunos conseguirem (por algum meio que me escapa…) identificar classes gramaticais, o estudo não pode parar neste patamar; b) mostrar que a gramática que vimos manuseando não responde a todas as nossas questões e que, portanto, há assuntos ainda por pesquisar. O estudo é construído nos seguintes passos:
(a) Dada seguinte sequência
(a’) Ontem comprei um livro. O livro é ótimo e você deveria lê-lo.
Tratando-se do mesmo livro, como explicar a ocorrência de “o livro” e a impossibilidade da ocorrência de
(a’’) Ontem comprei um livro. Um livro é ótimo e você deveria lê-lo.
A resposta imediata tem sido expressa na seguinte regra intuitiva:
R1: Sempre que se trata de um mesmo objeto de que já se falou, na segunda vez usa-se o artigo definido.
(b) Face a esta regra, contraponho:
(b’) Ontem comprei um livro. Um livro ótimo que você deveria ler.
A reação imediata dos professores tem sido:
1) Indicar o fato de que em (a’) há uma frase (o livro é ótimo).
2) Indicar que a razão para o uso de um em (b’) pela ausência de pronome oblíquo.
3) Mais raramente, justificar o emprego de um com base no fato de haver uma oração relativa em (b’).
(c) Ontem comprei um livro. O livro que você me indicou.
(d) Ontem comprei um livro. Um livro que você me indicou.
(e) Ontem comprei um livro. Um livro que você me indicou e minha mulher pretende começar a lê-lo logo.
A verdade é que a R1 precisa ser reformulada, embora ela nos forneça uma pista fundamental para o emprego do par o/um.
Apesar dos conhecimentos gramaticais, os constantes exercícios de análise sintática, a distinção das modalidades oral/escrita, diante de dados simples como estes, dificilmente os professores manuseiam seus conhecimentos para tentar obter uma regra mais especificada do que aquela já formulada. Este fato me mostra que também os professores que justificam o ensino gramatical com base na necessária (?) sistematização, quando confrontados com dados linguísticos, não percebem correlações entre um tópico da gramática com outros tópicos da mesma teoria gramatical.
Deixo para os leitores a construção de uma solução para o exemplo 3 porque, repito-o, mais do que encontrar um resposta, o que vale na reflexão sobre a língua é o processo de toma-la como objeto. As tentativas, os acertos e os erros ensinam muito mais sobre a língua do que o estudo do produto de uma reflexão que se estuda. Com os três exemplos, penso ter mostrado a distinção fundamental na atitude de ensino/aprendizagem de língua na escola, o que permitiu o próprio título deste texto, colocando em contraponto o ensino gramatical e a reflexão sobre a língua.
Nota
A revista Dois Pontos. Teoria e prática em educação, vinculada ao Sistema Pitágoras, encomendou-me um texto sobre o ensino de gramática. O texto foi publicado no Vol. 2, n. 15, primavera de 1993. Posteriormente fui convidado a participar do II Congresso Qualidade em Educação, realizado em Belo Horizonte, 28 de julho a 1º. de agosto de 1993, sob os auspícios do Sistema Pitágoras. Estava em terreno minado! O Sistema Pitágoras tinha um projeto pedagógico próprio: Qualidade Total em Educação. Lembro que iniciei minha fala dizendo que não há qualidade em si, mas qualidade em relação a algo: a um projeto de educação que não pode estar desvinculado de um projeto de sociedade. Qualidade não se mede pela quantidade de conhecimentos já dados e “adquiridos” na escola. A qualidade deveria ter no horizonte os dois projetos e ser considerada em função dos sujeitos sociais que ajuda a formar para construir e concretizar o projeto social. E desviei minha fala para questões sobre estes sujeitos sociais que estão sempre em formação. No vol. II, n. 16 da revista saiu uma reportagem sobre a mesa-redonda de que participei – Leitura e escrita: um processo sempre em desenvolvimento. Nenhuma palavra sobre o fato de que “qualidade” é uma expressão semanticamente relacional. Mas foram fieis ao pequeno texto que escrevi e lhes entreguei: transcreveram-no no corpo da reportagem. É um texto que recorta outros e que apenas serviu para sustentar uma fala: por isso não o considero um texto que tenha publicado. Transcrevo aqui o texto publicado no número anterior da revista.
(1) Obviamente, a professora poderia ter incluído nesta reflexão também pares como deixar/deixar; caixa/caicha/cacha/caxa ampliando os dados para além daqueles que tiveram ocorrência nos textos dos alunos.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | jun 14, 2018 | Blog
Talvez um dia as pessoas não saibam mais o que quer dizer a expressão cobrador de ônibus. É verdade, juro!
Talvez já agora, os mais novos por certo não reconheçam que antes, coisa de 20 anos ou mais, existia uma pessoa encarregada por receber o dinheiro e liberar a catraca, depois trocar por bilhetes, e logo fiscalizar os cartões dos usuários até que ficaram apenas as catracas e os usuários vigiados por um sistema desumanizado.
Sem o seu Zé, seu Joaquim, a dona Helena, a dona Rosa, umas figuras que cumpriam suas funções entre risos e caras bravas, e que contavam suas histórias, e misturavam-se com seus passageiros, e muitas vezes ajudavam buscando para os motoristas, impossibilitados de deixar a direção e o posto, um cafezinho no bar em frente ao ponto. São memórias afetivas que a gana capitalista, ou ganância, arrancou das próximas gerações. Para tal feito, antes potencializou os perigos e os desgastes emocionais dessas profissões, não acredito em fábricas de monstros(será???), divulgou-se como nunca que existia o perigo dos assaltos aos cobradores, e que era um caminho sem volta a tecnologia, a necessidade de modernização e maior segurança para todos, e a promessa de que todos os cobradores teriam a oportunidade para ser readaptados para outras funções, e o bônus é que diminuiria os custos para os usuários. Pronto calou-se uma massa de iguais que vivem com tão pouco, ninguém falou dos lucros das empresas, tampouco da ausência humana.
Humano é outro termo em desuso por outros motivos. Cobradores de ônibus era humanos. Muitas pessoas sem instrução sobre as rotas, alinhavavam seus roteiros com os cobradores, em geral eles eram sabidos e bons de ouvido. Outras tantas pessoas melhoravam o dia com uma brincadeira ou outra do cobrador, outros ainda eram cupidos de histórias de amor de encontros fortuitos. Certo dia esqueci o dinheiro e o cobrador postergou para o outro dia o pagamento. Confiança nas pessoas não é uma moeda de troca, mas trocamos isso. Escolhemos as verdades que cabem nos nossos gostos, e confortos.
E como se fôssemos gado rodamos a catraca, em um transporte público (privado) que leva às pessoas em péssimas condições para o abatedouro diário, no giro mecânico morre a dignidade, morre a pontualidade, morre a energia. Quem acompanha meus textos nesse ponto deve estar me achando repetitiva, falando de saudade de novo, uns devem atribuir a culpa, apressadamente, sobre os meus fios brancos salteados entre os cabelos já há muito tempo pintados.
– A pressa amigos é inimiga da perfeição!
Não é saudosismo o que tenho no texto de hoje, não se apressem porque, a pressa, essa jovem nos envereda por caminhos tortuosos. O tema hoje é outro. Abandonamos os cobradores de ônibus, e agora vejo com muita velocidade e até urgência, abandonarmos os porteiros.
É a nova CLT, a crise, uma economiazinha aqui, um confortozinho ali e voilá! Arremessados no processo de desumanização das relações. Os porteiros foram engabinetados, depois precarizados, e aí viraram os reclamões, faltosos, oneradores que são das folhas de pagamentos dos serviços condominiais, e sedentos pelos cartões de entrada e saída ou mesmo acesso biométricos que vemos nas novelas, olhamos de lado e franzimos as testas para cada cochilo inoportuno depois do almoço, cada radinho de futebol ligado no jogo do time que não é o nosso e ainda que fosse: – Oras, veja!
O texto é sobre como somos permissivos com os desmontes de profissões. Como não podemos ver que famílias precisam desses empregos? e muitas vezes é subemprego mesmo. Mesmo assim, eu prefiro eles lá, até com seus olhares indiscretos pra saia curta da mocinha, para o menino que é afeminado, ou para a tia riponga que aos 40 ainda fuma seu baseado de maconha gerando reclamações dos vizinhos. Tem ainda olhar assustado sobre aquele vizinho que insiste em fazer a mulher cair todo dia e rouxear os olhos e ter olhos deprimidos. Ele conhece bem, são sabidos também. Seu condomínio não vai ficar mais chique, só vai ficar desumanizado, não há economia… alguém ou algum setor lucra com isso.
E não vou mais ter que dizer bom dia, não vou mais ter confiança em deixar a chave pra um amigo que chegaria quando eu não estou. Eu fiz a troca. A gente sempre tem escolha, poderia ser desligar o elevador em alguns horários, quem sabe instalar aquecimento solar… enfim preocupações com o futuro dos humanos.
Eu sei que muita gente esperava um texto sobre copa, sobre quem sabe outro tema mais importante, mas resolvi falar do nosso silêncio que abandona pessoas e todo um futuro.
O texto é curto, porque a paciência também é.
E a pressa é mesmo inimiga da perfeição, e estou apressada para a vida.
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