Políticas de inclusão em estruturas de exclusão

Políticas de inclusão em estruturas de exclusão

                                                              Para Ana Lúcia Vieira de Menezes, presidente do SINTESE, por suas 32 horas de greve de fome em agosto.

 

Desaparecida há tanto tempo a “roda de leitura”, aqueles ainda leitores reúnem-se em simpósios, seminários, congressos, encontros, cursos para, na roda contemporânea, pôr sob cuidadoso exame uma prática social cujas origens são vasculhadas, cujo vicejar é festejado, cujo definhamento é diagnosticado, cujo desaparecimento [suposto] é pranteado. Carpideiras, às vezes, praguejamos contra as causas que se abatem sobre a prática moribunda. Entusiasmados, outras vezes, ao menor sinal de recuperação esforçamo-nos para ancorar o rejuvenescimento apenas antevisto.

Afinal, que prática é essa – a da leitura –  capaz de ocupar tantos e por tanto tempo? Que apostas sustentam o espinhoso trabalho de formar homens leitores? Que sentidos atribuir a políticas de expansão da leitura e de inclusão dos excluídos neste mundo da escrita e das letras?

Atônito ante o tema, entorpecido pelo muito que se pode querer dizer e o pouco que se diz, bem-vinda seria uma paralalia temporária: uma desculpa ante pares, uma culpa a mais (entre tantas outras) a carregar a cada olhar que encontre um mundo um pouco além daquele em que se vive.

Que tempo é esse em que

uma conversa sobre árvores chega a ser uma falta

pois implica em silenciar sobre tantos crimes? (Bertold Brecht)

E no entanto é preciso continuar. Homens, nascidos na história e constrangidos pela história, vamos construindo nossas respostas. Nossos roteiros de viagens dirão de nós o que fomos: de qualquer forma estamos sempre definindo toras – os focos de nossas compreensões.

Eleição de um ponto de partida

Compreendendo a leitura como interlocução entre sujeitos, e como tal, espaço de construção e circulação de sentidos, impossível descontextualizá-la do processo de constituição da subjetividade, alargado pelas possibilidades múltiplas de interação que o domínio da escrita possibilitou e possibilita. E o tema da “constitutividade” remete, de alguma forma, a questões que demandam explicitação, já que supõe uma teoria do sujeito e esta, por seu turno, implica a definição de um lugar movediço a inspirar práticas pedagógica e, por isso mesmo, políticas.

Quando se admite que um sujeito se constitui, o que se admite junto com isso? Que energeia põe em movimento este processo? É possível determinar pontos alfa e ômega desta constituição? Com que “instrumentos” ou “mediações” trabalha este processo? Obviamente, este conjunto de questões, a que outras podem ser somadas, põe em foco a totalidade do fenômeno humano e sua compreensão. Habituados à higiene da racionalidade, ao inescapável método de pensar as partes para nos aproximarmos de respostas provisórias, temos caminhado e nos fixado nas partes, nas passagens, mantendo sempre no horizonte esta suposição de que o todo será um dia compreendido, sabendo de antemão que o conhecimento jamais recobrirá a totalidade do real, porque construído em e por recortes.

Acompanhando Bakhtin e Vigotski, a porta de acesso por que se espera compreender o processo de constituição da subjetividade é a linguagem. Na síntese de Kramer (1994:107), “a linguagem, porque regula a atividade psíquica, constituindo a consciência, porque é expressão de signos que encarnam o sentido como elemento da cultura. Sentido que exprime a experiência vivida nas relações sociais”, entendidas estas como espaço de imposições, confrontos, desejos, paixões, retornos, imaginação e construções.

Se a experiência de mim vivida pelo outro me é inacessível, esta inacessibilidade, a mostrar sempre a incompletude fundante do homem, mobiliza o desejo de completude. Aproximo-me do outro, também incompletude por definição, com esperança de encontrar a fonte restauradora da totalidade perdida. E na tensão do encontro/desencontro do eu e do tu que ambos se constituem. E, nesta atividade, constrói-se a linguagem enquanto mediação sígnica necessária. Por isso a linguagem é trabalho e produto do trabalho. Enquanto tal, carrega em cada expressão a história de sua construção e de seus usos. Nascidos nos universos de discursos que nos precederam, internalizamos dos discursos de que participamos expressões/compreensões pré-construídas, num processo contínuo de tornar intraindividual o que é interindividual. Mas a cada nova expressão/compreensão pré-construída fazemos corresponder nossas contrapalavras, articulando e rearticulando dialogicamente o que agora se apreende com as mediações próprias do que antes já fora apreendido. Como ensina Bakhtin (1976:385):

As influências extratextuais têm uma importância muito especial nas primeiras etapas do desenvolvimento do homem. Estas influências estão revestidas de palavras (ou outros signos), e estas palavras pertencem a outras pessoas; antes de mais nada, trata-se das palavras da mãe. Depois, estas “palavras alheias” se reelaboram dialogicamente em “palavras próprias alheias” com a ajuda de outras palavras alheias (escutadas anteriormente) e logo se tornam palavras próprias (com a perda das aspas, falando metaforicamente) que já possuem um caráter criativo. 

Por isso mesmo, está na incompletude a energeia geradora da busca de completude eternamente inconclusa. E como incompletude e inconclusão andam juntas, as mediações sígnicas construídas no trabalho contínuo de constituição não podem ser compreendidas como um sistema fechado e acabado de signos para sempre disponíveis, prontos e reconhecíveis. A linguagem, enquanto atividade, implica que as línguas (no sentido sociolinguístico do termo) não estão de antemão prontas, dadas como um sistema de que o sujeito se apropria para usá-las segundo suas necessidades. Sua interderminação não resulta apenas de sua dependência dos diferentes contextos de produção ou recepção. Enquanto “instrumentos” próprios construídos neste processo contínuo de interlocução, carregam consigo as precariedades do singular, do irrepetível, do insolúvel, mostrando sua vocação estrutural para a mudança. Se é neste movimento que se constitui a consciência, também esta não pode ser considerada senão em sua constante mutação.

No entanto, no movimento pendular de reflexão sobre o sujeito, os pontos extremos a que remete nossa cultura situam-no ora em uma dos lados do pêndulo, tomando-o como um deus ex-nihilo, fonte dos sentidos, território previamente dado, racional por natureza, onde se processa toda a compreensão. Na outra extremidade, o sujeito é considerado mero ergon, produto do meio ambiente, da herança cultural de seu passado. Produto da história, para sempre fixado nos lugares que lhe são reservados por seus pertencimentos doutrinários, pela interpelação ideológica, pelas formações discursivas dentro das quais transita. Decreta-se, em nome da história, o fim da história. Exemplifiquemos os extremos.

Do ponto de vista da metafísica religiosa, destinando-se o homem a seu reencontro paradisíaco com seu Criador, de quem é feito à imagem e semelhança, para os desvios da rota, para os pecados da vida vivida por todos nós, tempo de provação, a consciência que, em sua infinita bondade, nos foi concedida pelo Criador, aponta-nos o bem e o mal, ensina-nos do nada o arrependimento pela prática deste e a alegria pela prática daquele. Deus e o Diabo, ambos energia. Impossível um sem o outro, como mostra o “evangelista” contemporâneo José Saramago…

Do ponto de vista de um materialismo estreito, o sujeito na vida que vive apenas ocupa lugares previamente definidos pela estrutura da sociedade, cujas formações discursivas e ideológicas já estatuíram, desde sempre, o que se pode dizer, o que se pode pensar. Recortaram o dizível e o indizível. Toda e qualquer pretensão de dizer a sua palavra, de pensar a motu proprio não passa de uma ilusão necessária e ideológica para que o Criador, agora o Sistema, a Estrutura, se reproduza em sua igualdade de movimentos. Assujeitado nestes lugares, o sujeito conduz-se segundo um papel previamente dado. Representamos na vida. Infelizmente, uma representação definitiva e sem ensaios. E aqui a lembrança de leitor remete a Milan Kundera de a “Insustentável leveza do ser”.

Entre a metafísica idealista e o materialismo mecanicista, pontos extremos, movimenta-se o pêndulo. Em nenhum dos extremos a noção de constitutividade situa a essência do que define o sujeito. Elege o fluxo do movimento como seu território, um território sem espaço. Lugar de passagem e na passagem a interação do homem com os outros homens no desafio de construir compreensões do mundo vivido. Das histórias contidas e não contadas. Dos interesses contraditórios, das incoerências. De um presente que, em se fazendo, nos escapa porque sua materialidade “inefável” contém no aqui e agora as memórias do passado e os horizontes de possibilidades, uma memória do futuro. Associar a noção de constitutividade à noção de interação é aceitar o fluxo do movimento, cuja energia não está nos extremos, mas no trabalho que se faz cotidianamente, movido pelas utopias, pelos sonhos, limitado pelos instrumentos disponíveis, construídos pela herança cultural e reconstruídos, modificados, abandonados ou recriados pelo presente.

Professar uma tal teoria do sujeito é aceitar que somos sempre inconclusos, de uma incompletude fundante e não casual. Que no processo de nos compreendermos a nós próprios apelamos para um conjunto aberto de noções, de conceitos, de saberes, diferentemente articulados no processo de viver. Somos insolúveis (o que está longe de volúveis) no sentido de que não há um ponto rígido, duro, fornecedor de todas as explicações.

Que papel reservar à leitura neste processo de constituição da subjetividade? Incluída a leitura entre as formas de interação, por isso mesmo lugar de compartilhar e fazer circular sentidos – leituras do mundo e leituras da palavra (Paulo Freire, 1982), processos concomitantes na constituição dos sujeitos, a primeira não ocorrendo sem a segunda – com a leitura alargam-se nossos horizontes de possibilidades de construirmos, neste diálogo constantemente tenso com a palavra alheia, nossas próprias palavras de compreensão.

A cidade das letras, a cidade das exclusões

A conquista humana do domínio da técnica da escrita alarga incomensuravelmente, no tempo e no espaço, os horizontes de nossas possibilidades interativas, e por isso mesmo da constituição de nossas consciências. Uma tal “tecnologia”, a duras penas construída, não poderia deixar de ser objeto de desejo e instrumento de dominação. É necessário fixar uma ordem à desordem resultante do alargamento do possível. A leitura pressupõe uma escritura. E a escritura erigiu-se historicamente como o espaço da ordem e do limite dos sentidos. Tal uso da técnica da escrita pretendeu estancar a fluidez da palavra; entorpecer-lhe os poderes; impedir toda futura desordem pela fixação dos significantes e seus significados; definir, orientar e projetar as realizações humanas, enfim reger a mutante vida dos homens e seus signos.

Ao labirinto das produções fluidas da oralidade sobrepõe-se, com a escrita, o esforço de decifração da ordem, da construção do imutável. E antes mesmo que a escrita se torne tecnicamente acessível àqueles que habitam as periferias das cidades e do poder, a escritura construiria uma cidade letrada, “o anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais” (Rama, 1985:43).

Como realizar semelhante proeza, se a escrita trabalha com a linguagem, objeto essencialmente mutável, sujeito às precariedades singulares dos acontecimentos interativos? Como fixar e tornar inalterável o que, na imagem de Wittgenstein (1975:19) pode ser considerado “como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subúrbios com ruas retas e regulares e com casas uniformes”?

Somente o exercício do poder, reservando a uma minoria estrita o acesso ao mundo da escrita, permitiu a façanha da seleção, da distribuição e do controle do discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado, impenetrável para o não convidado. E de dentro destes muros, uma função outra agrega-se à escrita, como se lhe fosse própria e não atribuída pelo poder que emana de seus privilegiados construtores e constritores: submeter a oralidade à sua ordem, função jurídica por excelência, capaz de dizer o certo e o errado, ditar a gramática da expressão, regrar os processos de negociações de sentidos e orientar, através de suas mensagens uníssonas e uniformes, os bons caminhos a serem trilhados.

A sociedade só pode ser assim construída, sob o império de uma separação radical, a partir de uma estrutura de exclusão. Sob qualquer das formas com que se organizaram politicamente o Estado e o Poder, soube a cidade letrada estar próxima, adequar-se às circunstâncias. No que concerne à América Latina, segundo Rama (1985:65-66),

…a cidade letrada quer ser fixa e atemporal como os signos, em oposição constante à cidade real que só existe na história e se adequa às transformações da sociedade. Os conflitos são, portanto, previsíveis. O problema principal, então, será o da capacidade de adaptação da cidade letrada. Nós nos perguntamos sobre as possíveis transformações que nela se introduzem, sobre sua função em um período de mudança social, sobre sua sobrevivência no momento das mutações revolucionárias, sobre sua capacidade para se reconstruir e reinstalar suas bases, quando estas tenham sido transformadas.

Observando sempre sob o ângulo da produção da escritura, Rama aponta, ao longo desta história de convívio com o poder, uma cidade letrada que foi ordenada, foi escriturária, foi modernizada. Politizou-se e pôde ser revolucionária. A cada momento, diferentes feitos históricos, mas sempre uma constante: a capacidade paradoxal de, ao mesmo tempo, expandir-se para as periferias supostamente acolhendo novos convivas e manter a distância das distinções: escrita x oralidade; erudito x popular; culto x não culto; alfabetizado x analfabeto; letrado x alfabetizado. Pelo prisma do letrado, ao outro sempre se atribui uma falta.

Uma tecnologia que penetrou tão profundamente a vida humana não deixaria de abrir tortuosos caminhos percorridos pelos estruturalmente excluídos. As estruturas não são sem frinchas, e o Poder não se exerce monoliticamente. No interior da microfísica, no piscar de olhos da eterna vigilância da ordem, a “desordem” pôde instalar-se. Numa sociedade com letramento, não há sujeitos absolutamente leigos: também aqueles que não leem e não escrevem são atingidos pela escritura (Ilich, 1991).

Estudos mais recentes, sob o ângulo da recepção da escritura, vêm mostrando que os produtos das diferentes cidades letradas circularam e aproximaram os mundos que a letra separou. Alguns destes estudos confirmam a força com que se limitaram a produção e a circulação de sentidos, de que é exemplo o final trágico de Menocchio sob a Inquisição (Ginzburg, 1976). Outros mostram o caminho inverso – a letra se deixando fecundar pela produção oral e popular. Rabelais é o exemplo (Bakhtin, 1977). A história desta prática social e cultural, que é a leitura, vem esquadrinhando fatos singulares e mostrando a circulação entre mundos, possivelmente antagônicos em seus interesses, mas não sem interpenetrações. A escrita populariza-se mais por necessidade da distinção do que pelo objetivo da humanização. Em se popularizando, torna-se heterogênea e outros artefatos verbais somam-se às clássicas bibliotecas. Manifestos, panfletos, poemas, páginas soltas, graffitis, orações, agendas, almanaques, cópias, paródias, paráfrases: o universo de discursos escritos expande-se, vulgariza-se, circula e faz circular sentidos.

Políticas de inclusão: apostas e riscos

Independentemente da existência atual de outros meios de circulação de discursos, muitos deles de uma oralidade secundário porque alicerçada na escrita prévia ou no script – fita cassete, vídeo, televisão, telefone, rádio, etc – a escrita, e por consequência a escritura, alterando-se, permanece. Como apontou Rama (1985:63):

Toda tentativa de rebater, desafiar ou vencer a imposição da escritura passa obrigatoriamente por ela. Poder-se-ia dizer que a escritura termina absorvendo toda a liberdade humana, porque só no seu campo se desenrola a batalha de novos setores que disputam posições de poder.

Apoderar-se da letra, e da escolaridade que ela demandou e demanda, resulta em uma sábia luta porque os excluídos cedo perceberam sua significação e relevância sociais. No entanto, elas nos foram e são “oferecidas” como “alavanca de ascensão social, de respeitabilidade pública e de incorporação aos centros de poder” (Rama, 1985:79). Por isso mesmo, ao incluir, a escola exclui: respondendo às elites, alfabetiza sem tornar possível uma política de leiturização (Foucambert, 1994). Na escola que temos e no estágio atual da estrutura da sociedade, ainda é possível apostar em políticas de inclusão? Que espaço reservar à prática pedagógica numa concepção constitutiva de sujeito? Do interior desta concepção, que espaço reservar às práticas sociais de leitura?

Habituada a mediar os processos de desenvolvimento proximal dos estudantes (movimento de um ponto do “sabido” para um ponto de um saber já dado), a prática pedagógica, para fugir à inconclusibilidade, à insolubilidade, ao não-fechamento, acaba atuando nos processos de reconhecimento e por isso mesmo insatisfatoriamente na construção de compreensões. Como consequência, a leitura em lugar de se tornar espaço de confrontos e rupturas, torna-se meio de sobrepor e subjugar as contrapalavras do estudante, substituindo-as pelas palavras do texto lido. Palavras alheias, estrangeiras, de um saber que se apresenta como pronto, acabado. Não uma relação dialógica de construção, mas relação hierárquica de imposição.

Mas, como ensina Snyders (1973), a prática pedagógica consiste na unidade dialética da continuidade e da ruptura. A educação “é um esforço de ruptura, um esforço difícil e doloroso para se equilibrarem as coisas “ (p.320):

É baseando-se na prática efetiva e cotidiana que os homens podem escapar às quimeras da teoria; uma prática que, ela também, deve ser baseada, coordenada, alargada, mas que indica já a direção a seguir […]. Ao mesmo tempo, a ação cotidiana, no seu caráter parcelar, dividido e inorganizado, é insuficiente, radicalmente insuficiente, simples paliativo que não atinge as causas do mal; e no entanto é ela que marca a orientação. Não se trata de tomar outro caminho, de retroceder, pois esse é o verdadeiro caminho; é sobre a prática de produção, a prática de luta e de resistência, que se edificam as ações e os verdadeiros juízos (id., ibidem, p. 323).

Apostar em “políticas de leitura”, como meras políticas de inclusão e cooptação, sem a elas associar políticas de transformação e rupturas sociais mais amplas, é o risco que corremos em projetos redentoristas. E ainda assim apostamos porque construir a escola que queremos e as relações sociais com que sonhamos impõe-nos ações na escola que temos e nas relações sociais que vivemos.

Nesta busca constante entre continuidade e ruptura, no que concerne às práticas de leitura, da experiência pessoal de envolvimento com professores e com escolas do ensino fundamental, retiro alguns ensinamentos e algumas questões para discussão nesta “roda de leitura”.

  • Do projeto desenvolvido no Oeste do Paraná (1984-1988), baseado na coletânea O texto na sala de aula, o fato auspicioso de termos chegado a uma biblioteca de mais de 100 mil volumes de livros nas mãos dos jovens leitores não pode encobrir que a quase totalidade dos livros postos à disposição da escola resulta de um trabalho ardiloso da indústria livreira e cultural: obras que respondem e referendam mensagens de um funcionamento em conformidade com as regras sociais (Magnani, 1989). A mera aposta na recepção contraditória de cada estudante foi insuficiente para construir rupturas constantes, em que o ensino de língua portuguesa se baseasse nos processos de escritura e leitura de uma outra história, aquela contida e esquecida nos processos excludentes da estrutura fundiária da região agrícola que se moderniza pela expulsão do homem da terra. À política de expansão da leitura é preciso acoplar um trabalho de formação de professores para que estes, partindo de sua própria história, compreendam com categorias outras a realidade em que vivem com seus alunos. Somente um comprometimento político outro poderia inspirar e alicerçar um trabalho escolar competente, transformando a prática social da leitura em espaço de construção de novas compreensões do mundo vivido pelos professores e seus alunos. É possível comprometer-se com uma política de leitura sem comprometer-se com as histórias de vida dos sujeitos leitores?
  • Do projeto desenvolvido em Aracaju (1982-1985), destaco um dos muitos ensinamentos. Conquistadas condições de trabalho para o professor (50% de seu tempo para estudos), sem a elas fazer corresponderem salários justos e condições infraestruturais adequadas, o conjunto de obras de leitura em circulação, embora quantitativamente alto (mais de 3 mil volumes), restringiu-se a um pequeno número de títulos diferenciados (aproximadamente 130 títulos). No mesmo período, em projeto desenvolvido em Campinas (SP), com menos da metade de volumes em mãos dos jovens leitores, circularam mais de mil títulos diferentes. Qual o significado desta diferença? Para além da redutora análise da pobreza material de muitos, face à concentração brutal de bens e propriedades em mãos de poucos no nordeste brasileiro, esta diferença não estaria apontando que as letras se distribuem diferentemente entre os letrados porque o acesso a informações e a outros bens anda de mãos juntas com o acesso à escrita? Ou, ao contrário, o projeto desconsiderou que a cultura popular nordestina, caracteristicamente oral e socializante, não se alia facilmente à rigidez individualizadora do livro e sua leitura?
  • Do projeto desenvolvido em Mato Grosso do Sul (1986-1988) retiro a forte influência dos centros modernizadores. Na época, estados mais desenvolvidos do país, a construção de “planos curriculares” ocupou o tempo das secretarias de educação, de seus estamentos burocráticos e o tempo pouco do professor. Para definir um plano curricular para o Estado do Mato Grosso do Sul, suspendeu-se todo o esforço de um projeto em andamento e no qual estavam envolvidas as equipes de coordenação e os professores das escolas. Processo iniciado e nunca complementado, produziu entre professores e estudantes o descrédito, mesmo quando os princípios “oficialmente” abonados pelos planos curriculares eram idênticos àqueles postos em prática no projeto em execução. A descontinuidade, já clássica entre nós, entre políticas e estratégias educacionais dos diferentes grupos da elite não seria uma forma de barrar alterações mais substantivas na prática pedagógica? A consolidação de experiências de rupturas não precisaria ser estancada para se tornar apenas um discurso modernizante – a letra morta dos planos curriculares – mantendo-se tudo como está, afirmando-se que tudo mudou?

Das muitas experiências restam memória e perguntas. Estimando menos perigosa a participação daquela, a questão que se impõe agora é compreender como a elite intelectual se articula hoje para proferir seus discursos modernos e modernizantes, reduzindo as práticas sociais, políticas e culturais gestadas “fora da cidade dos letrados” a um mero caos, bandeira com que se mobiliza o medo em benefício da ordem e da manutenção do estabelecido. Como leitor, encontro esta pergunta em Capinan: “tu, ante o presente, como te defines ao que será passado?” (Inquisitorial, apud Barata, 1969). Pergunta existencial, sempre contemporânea, remetendo sempre a sentidos novos. E como leitor, procedente da periferia da cidade letrada, no interior desta mantenho minhas perguntas:

Quem construiu Tebas de sete portas?

Constam nos livros os nomes dos reis;

terão os reis arrastado os blocos de pedra?

E Babilônia, tantas vezes arrasada

– quem, tantas vezes, a reconstruiu?

Em que edifícios da dourada Lima os construtores moravam?

Para onde iam, à noite, os pedreiros depois de pronta a Muralha da China?

A grade Roma é cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu?

Sobre quem triunfavam os césares? Teria a tão decantada Bizâncio

só palácios para os seus habitantes? Até na lendária Atlântida,

na noite em que pelo mar foi tragada,

os afogados devem ter gritado por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou a Índia

sozinho? César, vencendo os gauleses

não levaria consigo ao menos um cozinheiro?

Chorou Felipe de Espanha quando a sua esquadra foi à pique;

e ninguém mais terá chorado?

 

A cada página, um grande feito.

Quem cozinhava o banquete?

De dez em dez anos, um grande homem,

quem pagava as despesas?

 

Tantas histórias,

quantas perguntas.

(Bertoldo Brecht. Perguntas de um trabalhador que lê)

Nota

Este texto foi escrito para minha participação no Simpósio Internacional sobre a Leitura e Escrita na Sociedade e na Escola, realizado sob o patrocínio do MEC-UNESCO e do Programa de Cooperação Brasil-França, em Brasília, atividade incluída no Plano Decenal de Educação para Todos (1993/2003). Publicado em 1994. Em nota, registrei: “As reflexões aqui desenvolvidas baseiam-se na bibliografia referenciada e em três projetos de trabalho. Uma parte deste texto retoma um texto anterior, publicado na revista da APEOESP sob o título A constituição do sujeito leitor. Necessariamente revisitar o tema implica comprometimentos e riscos. Comprometimentos porque as palavras ditas e a dizer revelam as ancoragens que sustentam as razões da aposta nesta prática cultural; riscos porque na “na casa da palavra, onde o silêncio moro (Caetano Veloso, Terceira Margem do Rio, Circuladô), cada palavra dita implica o silencia de inúmeras outras a dizer.”  O texto foi incluído na coletânea A aula como acontecimento (São Carlos : Pedro & João Ediotres, 2010). Resta-me anotar aqui algo indizível: este seminário se realiza nos começos do governo do PSDB e eu, um petista, fui convidado; depois o PT foi para o governo e eu, um petista, jamais fui convidado para nada. Este fato sempre me intrigou: o que falo estaria comprometido em seus pontos de vista com o contrário do que explicitamente o discurso defende? Ou a seleção dos sujeitos falantes obedece também a impérios de outra ordem que não políticos e doutrinários?

Referências bibliográficas

Bakhtin, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. São Paulo : Huciter, 1987.

_____________ Estetica de la creación verbal. Buenos Aires : Siglo Veintiuno, 1982.

Barata, Manoel Sarmento.   Canto melhor. Uma perspectiva da poesia brasileira. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1969.

Brecht, Bertold. Poemas e canções.  Seleção e tradução de Geir Campos. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1966.

Foucambert, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre : Artes Médicas, 1994.

Freire, Paulo. A importância do ato de ler. São Paulo : Cortez e Autores Associados, 1982.

Geraldi, João Wanderley (org). O texto na sala de aula. Leitura e produção. Vascavel : Assoeste, 1984.

_____________________ Portos de passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.

Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo : Cia. das Letras, 1987.

Illich, Ivan. “A plea for research on lay literacy” in. Olson, david & Torrance, M. (eds). Literacy and Orality. Cambridge : Cambridge Univ. Press, 1991: 28-46

Kramer, Sônia. “A formação do professor como leitor e construtor de saber”. In. Moreira, Antônio Flávio (org). Conhecimento educacional e formação de professores. Campinas : Papirus, 1994.

Kundera, Milan. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1985.

Magnani, Maria do Rosário Mortatti. Leitura, literatura e escola. Sobre a formação do gosto. São Paulo : Martins Fontes, 1989.

Rama, Angel. A cidade das letras. São Paulo : Brasiliense, 1985

Saramago, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo : Cia. das Letras, 1991.

Snyders, Georges. Para onde vão as pedagogias não-diretivas? Lisboa : Moraes Ediotres, 1974.

______________ A alegria na escola. São Paulo : Editora Manole, 1988

Vygotsky, Lev S. Pensamento e linguagem. Lisboa : Edições Antídoto, 1979.

Wittgenstein, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo : Editora Abril, 1975.

Uma desbiografia

Uma desbiografia

UMA DESBIOGRAFIA:

Bernardo morava de

luxúria com as suas palavras.

Para nós era difícil descobrir o contexto

daquela união.

Nossa linguagem não tinha função

explicativa, mas só brincativa.

Como seja: ontem Bernardo fez para nós

Um ferro de engomar gelo!

Toninho disse que Bernardo dementava

as palavras.

Ele viu, diz que, uma formiga

frondosa como olhar de árvore.

Formiga frondosa?

(Manoel de Barros. Escritos em verbal de ave. São Paulo : Leya, 2011)

História da Feiura

História da Feiura

Comecei a ler a ‘trilogia’ de Umberto Eco (História da Beleza, 2004, História da Feiura, 2007, e História das terras e lugares lendários, 2013), pelo segundo volume. Mera curiosidade e, confesso, porque queria ver como apareceriam os trabalhos de Bosh e Bruegel em seu livro.

Antes de tudo, é preciso registrar: é um trabalho monumental aquele realizado pela equipe, e somente uma equipe poderia dar conta de tanta informação, tê-la disponível e trazer para dentro de um mesmo livro uma antologia de obras de artes (pintura, escultura, literatura, cinema, caricatura, etc) tão variada como aquela que compõe particularmente os dois primeiros volumes.

Assim, ler a História da Feiura é também ler vários autores, é apreciar inúmeras obras de arte, numa impressão primorosa (o selo é da Editora Record, mas os dois primeiros livros foram impressos na Itália). A história que nos conta Umberto Eco é aquela da recepção, por seus contemporâneos, das obras de arte, suas reações e também os compromissos assumidos pelos próprios artistas (por exemplo, o Manifesto Futurista de Marinetti, o do Surrealismo de Breton) com a forma de fazer arte. Deste conjunto, o autor vai extraindo uma história de feiura, do que se considerou feio e de sua variação ao longo do tempo.

A história traçada pelo livro não é uma história cronológica, mas uma história a partir de galerias temáticas, ainda que as referências temporais apareçam porque os movimentos artísticos, afinal, tiveram suas épocas áureas, desapareceram, ressurgiram adiante em novas formas (por exemplo, o Gótico reaparece hoje nos ‘góticos’, como em Marilyn Manson ou nos jovens e seus penteados e sua palidez cemiterial).

O feio sempre existiu como aquilo que se considerou feio, ou como aquilo que se considerou anormal (deficiências, monstruosidades, etc.). Os primeiros tinham trânsito livrem eram diferentes, mas não assustadores (Sócrates teria sido um homem feio), mas os monstros e os portentos eram assustadores (e continuam sendo, mas o susto com eles desaparece no cinema de terror ou mesmo na figura do simpático ET de Steven Spielberg).

Tomemos uma passagem de Santo Agostinho: “O que é mais terrível que um carnífice? O quer é mais bestial e cruel do que uma índole destas? Porém, entre as próprias leis, ele tem um lugar necessário e está inserido na ordem de um estado bem governado. […]O que pode ser considerado mais feio, desprovido de dignidade e pleno de inconveniência do que as prostitutas, os rufiões, as outras pragas deste gênero? Mas, tira as meretrizes da cidade e transtornarás tudo com as paixões desordenadas.” (p. 47).

O feio é também assunto das religiões (os diabos jamais foram representados como belos – na acepção de belo que temos – num mundo cristão ou não cristão), e assunto da filosofia. O feio está presente nas iluminuras de livros de orações, particularmente nos ‘livros de horas’. Assim, o feio também é edificante!!! Ou seja, o feio participa de um par contraditório aterrorizador/edificante. E por isso explora a sensibilidade humana que não consegue deixar de se sentir envolvida diante do “feio” do seu tempo (notem que podemos considerar terrível uma paisagem desolada em uma pintura, ou descrita no interior de um conto ou romance onde o mundo pobre aparece – “… estavam todos cobertos por tábuas e pedaços de papelão, formando várias choças de um andar, a bem dizer verdadeiros currais instáveis, mas habitados por seres humanos” (Jack London, O Povo do Abismo) –  mas passamos indiferentes ao mesmo feio entre moradores de rua e mendigos contemporâneos).

Agora se pode contrapor este ponto de vista de um religioso da Antiguidade à filosofia dos refugos de Andy Warhol (“Há tanta gente com quem competir aqui, que a única esperança de ter alguma coisa está em trocar os próprios gostos e desejar aquilo que os outros não querem: a desejar o que foi descartado” ou ainda “A coisa mais bonita de Tóquio é o McDonald; A coisa mais bonita de Estocolmo é o McDonald; A coisa mais bonita de Florença é o McDonald”) em que o feio nos é jogado na cara como uma forma de desequilibrar nossas percepções cotidianas.

Umberto Eco e equipe usam comparações evidentes, mas que nos passam desapercebidas. Por exemplo, contraposição entre o quadro de Rembrandt (A lição de anatomia de Nicolaes Tulp)e aquele de William Hogarth (A recompensa da crueldade de As quatro faces da crueldade, quadro IV).

É muito interessante ler a antologia de opiniões (p.393) dadas ao tempo da produção de obras que hoje consideramos clássicas ou que fazem parte do panteão das manifestações artísticas. Recolho algumas destas opiniões:

Este rapaz não tem o menor talento. (Manet para Monet sobre Renoir).

Se (Chopin) tivesse submetido suas músicas ao julgamento de um especialista, ele as teria rasgado… De todo modo, é o que eu gostaria de fazer. (Ludwig Rellstab, Iris im Gebiete der Tonkunst, 1833).

Dentro de cem anos Les Fleurs du mal serão recordadas apenas como uma curiosidade (Émile Zola por ocasião da morte de Baudelaire).

Estudei longamente a música daquele patife. É um bastardo desprovido de qualquer qualidade. (Tchiakowski, em seu Diário, sobre Brahms).

O senhor sepultou seu romance em um cúmulo de detalhes que são bem desenhados, mas totalmente supérfluos (Carta de um editor a Flaubert, sobre Madame Bovary).

Em seus romances não há nada que revele dotes imaginativos particulares, nem a trama, nem os personagens. Balzac nunca ocupará um lugar de destaque na literatura francesa (Eugène Poitou. Revue des Deux Mondes, 1856).

Acabei de ler o Ulisses e julgo que é um insucesso… É prolixo e desagradável. É um texto bruto, não somente no sentido objetivo, mas também do ponto de vista literário (Do diário de Virgínia Wolff).

Se podemos concluir, lendo esta alentada história, que o feio e o belo podem variar ao longo do tempo, e por isso deveríamos ter uma posição relativista, a ela se contrapõe também outra perspectiva que deve ser levada em conta quando estamos diante do feio artisticamente produzido: ao produzir tensão no expectador, no leitor, o feio está sempre a nos mostrar que há algo de monstruoso, de mau com que convivemos e que poderemos tornar menos feio, menos repugnante.

Ante de encerrar seu livro com extrato do conto O Cottolengo, de Ítalo Calvino, diz-nos Umberto Eco:

Na vida cotidiana somos cercados por espetáculos horríveis. Vemos imagens de populações onde as crianças morrem de fome, reduzidas a esqueletos de barriga inchada, de países onde as mulheres são estupradas por invasores, de outros onde corpos humanos são torturados, assim como ressurgem continuamente sob nossos olhos as visões não muito remotas de outros esqueletos vivos à espera de entrar em uma câmara de gás. Vemos membros dilacerados pela explosão de um arranha-céu ou de um avião em voo e vivemos no terror de que isso possa acontecer conosco. Tais coisas são feias, não apenas em sentido moral, mas em sentido físico, isso porque suscitam nojo, susto, repulsa – independentemente do fato de que possam inspirar piedade, desdém, instinto de rebelião, solidariedade, mesmo quando aceitas com o fatalismo de quem acredita que a vida nada mais é que uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado. Nenhuma consciência da relatividade dos valores estéticos elimina o fato de que, nestes casos, reconhecemos sem hesitação o feio e não conseguimos transformá-lo em objeto de prazer. Compreendemos então por que a arte dos vários séculos tem voltado com tanta insistência a representar o feio. Por mais marginal que seja, sua voz tenta recordar que há neste mundo algo de irredutível e maligno. (p. 436)

 

Referência: Eco, Umberto. História da feiura. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro : Record, 2007.  

A escrita como trabalho. Operações e metaoperações de construção de textos

A escrita como trabalho. Operações e metaoperações de construção de textos

A palavra está, fundamentalmente, alienada ao outro como a imagem ao espelho, porque aquilo que procuro na palavra é a tresposta do outro que me irá constituir como sujeito: a minha pergunta fundamental ao outro diz respeito a onde, como e quando começarei a existir na sua resposta. Aparecem, aqui, duas funções da palavra intimamente ligadas: a mediação para o outro e a revelação do sujeito.  (Roland Barthes e Eric Marty)

No quadro de uma concepção sociointeracionista, poder-se-ia propor uma compreensão do processo de elaboração de textos como uma forma, materializada na língua, de “retorno” ao interindividual do que se tornara interindividual. Neste sentido, o trabalho do locutor (na fala ou na escrita) é sempre um trabalho conjunto, embora materialmente realizado por um indivíduo, revelando um movimento contínuo e recursivo entre “inter-intra-inter-individual”. Uma tal hipótese nos permitira “olhar” para a materialidade linguística do texto e nela detectar suas inscrições linguístico-discursivas, sem que isso signifique que uma destas materialidades contenha a outra, como se o discursivo, do exterior, se inscrevesse na “linguagem” do texto, linguagem espessa e transparente que, uma vez atravessada, permitiria detectar uma outra materialidade que a sustentaria pelas remessas aos sistemas de referência antropoculturais onde os recursos expressivos adquiririam seus “verdadeiros” sentidos. Um texto não existe sem materializar-se nos recursos expressivos que nele trabalham; estes, por seu turno, não existem fora de sua remessa a sistemas de referências. Ambos, recursos e sistemas constituem-se concomitantemente. Neles e com eles nos constituímos como sujeitos: “a própria consciência só pode surgir e se afirmar como realidade mediante a encarnação material em signos. […] A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria do seu desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis”, como ensina Bakhtin (1929/1981, p. 33 e 34).

Assim, é apenas o recorte de interesse da análise que separa estas duas materialidades, uma constitutiva da outra. Ou seja, não há de um lado um sistema de referências ântropo-cultural (em diferentes Formações Discursivas) em que os recursos expressivos adquiram  seu sentido. Este sistema não existiria sem tais recursos expressivos; estes recursos não seriam expressivos fora daquele sistema.

Na construção de textos mobilizam-se, portanto, concomitantemente estas duas materialidades, concebidas como duas apenas como consequência do recorte analítico que releva dos interesses de diferentes programas de pesquisa.

Por outro lado, não se pode imaginar que cada sujeito, por constituir-se nos processos interacionais de que participa, tornando intra o que antes fora inter-individual, torna-se por isso mesmo cópia em carbono do(s) outro(s): “A atividade mental do nó snão é uma atividade de caráter primitivo e gregário: é uma atividade diferenciada. Melhor ainda, a diferenciação ideológica, o crescimento do grau de consciência são diretamente proporcionais à firmeza e à estabilidade da orientação social. Quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e completo será o seu mundo interior” (op.cit., p. 115).

As contradições internas deste mundo social, os diferentes acentos apreciativos que nele circulam estão a mostrar diferentes nuances nas compreensões que produzimos dos mesmos fatos. Estas compreensões, enquanto respostas construídas com base nos signos já internalizados, desvelam nossas contra-palavras às palavras dos outros, nossas diferencias (às vezes muito pouco) articulações dos elementos do elo ininterrupto da cadeia semiótica. É por isso que na “minha” palavra me (re)velo na contra-palavra que me constitui como sujeito.

Esta também a razão para se afirmar a existência de um trabalho do sujeito: o presente marcado pelo passado é também história, e não mera repetição. Na tensão entre o mesmo e o informulável, os sujeitos vão formulando o presente – frágil, fluido, coerentemente incoerente. É por isso também que se pode falar da escrita (e da fala) como trabalho.

Seguramente, algumas das operações e meta-operações realizadas pelos sujeitos na atividade de produção/compreensão de discursos materializados em textos podem resultar de uma atividade explícita de recusa ou de inscrição numa determinada Formação Discursiva (penso, por exemplo, na operação de substituição de um item lexical por outro, como no par “o crime da Candelária/a chacina da Candelária”). Alguns dos dados aqui apresentados, “olhados” a partir desta perspectiva, mostram momentos cruciais de emergência de elementos empíricos comprovadores da produtividade do trabalho discursivo. É preciso, no entanto, que não nos deixemos cegar por tal produtividade, pois aceitar a existência de dispersão e descontinuidades nos discursos implica em aceitar também que o trabalho discursivo é criativo, o que leva a deslocar certas compreensões da noção de formação discursiva como se cada uma delas fosse monoliticamente constituída, definindo para sempre o dizível e o indizível, delimitando territórios cujas fronteiras jamais são ultrapassadas – tal noção, assim compreendida, permitira somente dar conta de um dos aspectos do trabalho discursivo, aquele do repetível, da paráfrase [e ainda imaginando que os deslocamentos materiais que esta contém fossem improdutivos!].

Outras operações ou meta-operações (estas, neste grupo de trabalho, estão sendo denominadas de “operações de refacção de textos”) resultam de atividades epilinguísticas que incidem sobre os recursos expressivos enquanto sistematização aberta e por isso mesmo relevam muito mais da relativa autonomia da língua e seriam exemplos concretos de “ações da linguagem” presentes nas ações que se fazem com a língua e sobre a língua (Geraldi, 1991). Nestas, a produtividade dos processos discursivos, manifestando-se inclusive em micro-elementos, remetem muito mais ao “sistematizado” e, ao fazê-lo, paradoxalmente mostram lugares/aberturas de possíveis deslizamentos (que a escola, obviamente, apressa-se em fechar). Se tal produtividade se presentifica na escrita de textos – e portanto numa relação inter-individual já que toda a escrita é uma proposta de leitura – uma pergunta é essencial: o que tais ocorrências, no seu gesto individual de construção, revelam da atividade mental do nós, uma atividade intra-individual?

A hipótese de trablaho aqui assumida é a de que os gestos de auto-correção, nos diferentes níveis em que se manifestam, revelam na atividade do eu a presença do OUTRO, típica de toda ação da linguagem. Assim

No nível da letra

  1. O L (na forma de U) de LIA (exemplo de Mayrink-Sabinson) estaria revelando a “configuração” material do desenho gráfico da própria letra que, internalizado pela criança, lhe fornece critérios de avaliação de suas próprias representações gráficas como bem ou mal sucedidas. Aqui, o OUTRO é de tal modo prsente na memória visutal do eu, que ele mesmo fornece a contra-palavra (no sentido bakhtinianos do termo) de avaliação/compreensão do gesto gráfico e de seu produto.
  2. No exemplo da “borboleta” (exemplo de Mayrink-Sabinson), a primeira tentativa de escrita apresenta um produto com um A final “inclinado”; atenta a este A que queria corrigir (e esta é uma condição de produção que tem sido pouco explorada nos estudos em análise do discurso), a criança produz a sequência PA, rejeitada (note-se a rejeição explícita pelos riscos sobrepostos à escrita feita) porque já na primeira tentativa havia entre P e A um R; a terceira e definitiva escrita se dá agora com condições de produção diferentes: uma dupla atenção, sobre R e A, precisamente os “desenhos gráficos” mais bem cuidados desta terceira escrita. Também aqui o Outro se presentifica face à imagem gráfica de letras, internalizada pela criança, e a esta presença soma-se, na segunda e terceira escritas, a presença material das tentativas anteriores.

No nível do texto

  1. Os dados aqui apresentados relevam ora do jogo entre o plano do narrado e o plano do comentário, que se apresenta de forma diferente em cada uma das versões (exemplo de Salek-Fiad),

ora da inscrição efetiva numa formação discursiva (no exemplo de Abaurre, quando o autor se assume como personagem da narrativa, ao corrigir “minha filhinha” para “meu filho” está, ao mesmo tempo revelando uma certa concepção de família).

 

Atenho-me ao texto de Lia (exemplo de Mayrink-Sabinson), uma vez que ele mostra que a criança faz hipóteses de escrita no nível da palavra, mas é capaz também de fazê-lo com base no texto interior, ao cobrir parte de um texto escrito pelo outro (no caso, a mãe enquanto personagem “coelhinho”), sobrepondo-lhe um novo texto ao deixar visível somente o que era antes “despedida” e que passa a ser, neste novo texto, uma “saudação”. Ao assumir a escrita do outro, a autora recontextualiza e por isso mesmo a ressignifica. Aqui, o Outro, materialmente presente na própria grafia do texto, ausenta-se em sua “presença” para dar lugar ao novo texto, “Beijos Coelhinho”, agora remetido por Lia ao mesmo coelhinho que dela assim se despedira no texto original.

 

OI  LIA,

VEJA DEBAIXO DA

T.V. UM PRESENTE

PARA VOCÊ

BEIJOS

COELHINHO

 

Estas operações e meta-operações de construção de texto mostram que a atividade de “refacção de textos” se dá por quatro grandes tipos de trabalhos sobre os recursos expressivos: a substituição, o apagamento, o deslocamento ou o acréscimo. Estes quatro tipos de meta-operações estão a indicar um caminho metodológico possível para a prática de produção de textos na escola, desde que o professor se torne leitor e co-autor dos textos de seus alunos.

Nota

Este texto foi escrito para compor a mesa-redonda “A escrita como trabalho: operações de refacção de texto”, coordenada por Maria Laura T. Mayrink-Sabinson, no XLI seminário do Grupo de Estudos Linguísticos de São Paulo (GEL) ocorrido em Ribeirão Preto. Os textos foram publicados nos Anais deste seminário, no volume XXIII de Estudos Linguísticos, em 1994. À época os demais componentes da mesa trabalhavam num projeto de pesquisa sobre o dado singular e sua importância nos processos de aquisição da escrita e a convite do grupo de pesquisa participei do evento e desta atividade. Relendo o texto com os olhos de agora, percebo que toda sua orientação foi no sentido de defender que no discurso há um sujeito agente, um agenciador das materialidades que o constituem, e não um sujeito apenas assujeitado ao que o passado lhe impõe. Tratava-se, talvez e na época, de recuperar dois conceitos que a Análise do Discurso havia esquecido: o da descontinuidade nas formações discursivas e o da agentividade do presente, em que o já-dito agora repetido já não mais é o já-dito…

 

Bibliografia

Bakhtin, M. (Volochinov) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. S. Paulo : Hucitec, 1981.

Fiad, R.S. (1990) “Operações linguísticas presentes na reescrita de textos”. Comunicação apresentada no IX Congresso Internacional da ALFAL, Campinas, agosto de 1990.

Geraldi, J. W. Portos de passagem. S. Paulo : Martins Fontes, 1991.

Lula livre e a minha felicidade clandestina

Lula livre e a minha felicidade clandestina

Sempre gostei muito do que escreve Clarice Lispector. Até aí nada de mais, afinal é uma grande escritora que trata das profundezas humanas de forma elegante e tão simples que muitos desavisados podem até pensar se tratar de autoajuda.  Eu leitora advogo que ajuda, embora antes pertube, provoque e destrua um monte de certezas que existiam.

Um dos meus contos preferidos da escritora chama-se Felicidade Clandestina, que até deu nome a uma coletânea de contos da autora. O texto em questão trata de forma muito perspicaz da maldade humana, isso porque apresenta as lembranças da infância/adolescência da narradora, dotada de reflexões bem maduras e conscientes atribuídas ao tempo presente que é distinto do período narrado.

Bem, a maldade não é algo fascinante, mas perceber como se manifesta e as razões, são aprendizagens mais do que necessárias para a vida. E nesse sentido que retomo o conto de Clarice, para dizer do episódio jurídico envolvendo o descumprimento de uma determinação de um desembargador no último domingo. Para tal quero dizer do poder da literatura, muito mais do que jurídico.

A literatura permite apreciação artística, contudo mais do que a apreciação é importante o reconhecimento dos sentimentos, tipos e comportamentos humanos, talvez por isso mesmo enquanto professora sempre me recusei a usar textos como meros ilustrativos de gêneros, ou pior, recurso didático para aulas de gramática, e aqui não tenho competência para julgar quem assim faça, digo apenas que a literatura para mim, que bebi na fonte do professor Antônio Cândido, tem maior relevância.

Uma das coisas mais determinantes, mas do campo da linguagem é ter o controle da narrativa. Depois voltamos a isso.

Por agora, olhemos as situações que fogem das narrativas próprias do campo jurídico e percebemos que a regulação está na literatura, isso porque entre as funções da literatura está constituir fantasias, observar e formar aspectos culturais, e sociais. E é aí que reside a questão principal do imbróglio da soltura ou não do presidente Lula. Lendo:

“O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.” (Lispector,Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998)

 

Embora as personagens sejam mocinhas, adolescendo por assim dizer, vamos observar no texto que ao tempo em que uma dotada de inocência crédula no sentimento de justiça ou de relativa bondade, do outro lado tem uma jovem que crescendo em meio a livros, mimos, e privilégios escolhe exercer toda sua maldade, sua estupidez, e perversidade sobre o outro.

Até ler esse conto eu não conhecia a expressão tortura chinesa, até porque as torturas brasileiras que eu conhecia eram fruto de um regime ditatorial que não primava por requinte ou inteligência. A literatura tem essas maravilhas, porque sem ela poderíamos pensar que a violência é própria de pessoas com baixa instrução, ou mesmo pouca inteligência, o que não é verdade, e lendo esse conto para jovens, aliás, indicado para leitores em formação pela maioria dos livros didáticos, encontramos uma caracterização muito comum aos personagens deste tipo: quando se sente inalcançáveis pelos olhos dos outros, ou mesmo do poder elas se tornam menos cuidadosas e, porque não dizer: afoitas! Quando isso ocorre, elas se dão a conhecer no seu mais íntimo e secreto perfil.

No conto de Clarice ao final descobre-se que o exercício da tortura cotidiana não teria outra razão do que alimentar a sanha diabólica e obsessiva do opressor sobre o oprimido, e quando a mãe descobre o caráter doentio da filha, essa a reprime e encerra a tortura.

No caso em questão, já foram feitas muitas reprimendas: falta de provas, descoberta de que não existiram reformas, notas fiscais falsas e a incapacidade da operação em julgar ou condenar envolvidos em atos de corrupção de outros partidos, mesmo quando sobram provas. Parece que tudo isso ganha força de uma mãe complacente. Os efeitos colaterais disso é que embora não tenha força para soltar Lula, deu-lhe novo fôlego, e permitiu-lhe ver o pulsar da esperança popular, ademais mostra para as pessoas quão doentes é o lado de quem o quer preso.

E assim mesmo preso, a verdade aparece e Lula assume o controle da narrativa: Agora é impossível não ver que não há imparcialidade. A liberdade é um desejo ainda não alcançado, mas parafraseando a menina do conto:

“Meu peito estava quente, meu coração pensativo.”

Não cai a Bastilha sem povo na rua

Não cai a Bastilha sem povo na rua

Os acontecimentos deste domingo comprovam: um preso político somente sai em liberdade nas ondas de uma revolução, com os injustiçados de sempre tomando as ruas, brigando e elaborando as mudanças necessárias a uma nova ordem das coisas e das gentes.

Na África do Sul, com Mandela, foi praticamente uma guerra civil. Na Índia com Gandhi foi um movimento popular. Na Rússia dos Czares, foi uma revolução armada. Na China, um jovem impedindo que um tanque seguisse adiante, na Praça da Paz. Na chamada primavera de Praga, foi movimento pacífico nas ruas. Em 1968, em Paris e em Berlim e em Roma e em Amsterdã … foi a juventude que saiu às ruas e mudou o panorama político não só de seus países. Na chamada primavera árabe, ainda que orquestradas as movimentações pela CIA e pelo Departamento de Estado, as pessoas nas ruas derrubaram ditaduras sólidas em nome da liberdade que não veio.

Em síntese, a Bastilha não cai sem povo na rua. Mas é verdade: há que ser muito povo, muita gente, um mar de gente. E obviamente as maiorias nunca serão unanimidade. Como não houve em todos os movimentos históricos. A permanência do que há interessa sempre a uma minoria. E nos estados modernos, esta minoria tem a sua disposição muitos aparatos: a justiça para produzir peças de falsidade sempre que necessário; os ministérios para correrem atrás de saídas indignas; os tribunais para referendarem e azedarem a vida da cidadania; as cortes supremas para os “olhares de paisagem” e, quando necessário, para obedecerem a quem manda; e toda mídia tradicional para a lavagem cerebral. Mas sobretudo dispõe do aparato bélico: os musculosos imbecis que não exercitam qualquer pensamento, as milícias que financia, as polícias militares que arma, as forças armadas que ameaçam.

São estes últimos aparatos que fazem temer. Mas de que são compostas as polícias e as forças armadas? De filhos dos cidadãos, de filhos e irmãos da maioria, que os filhos da minoria têm outros afazeres: gastar a roldo o que lhes proporciona a rapina dos pais e depois engravatados e bem acondicionados com seus MBAs continuarem a mesma rapina para proporcionar aos novos rebentos a mesma vida à larga, e assim sempiternamente até que… o povo saia às ruas.

Os episódios deste domingo, em que um juiz tresloucado e comandado pelos interesses das empresas norte-americanas acionou um indigno Presidente de um Tribunal, que acionou um desembargador em férias e prestativo, tudo para suspender a concessão de um habeas corpus e um alvará de soltura expedido pelo desembargador plantonista, mostram que Lula tem razão: ao dar o prazo até 10 de agosto para que o sistema inJudiciário brasileiro reponha as leis no comando da vida nacional.

A partir daí, somente as ruas conseguirão a queda da Bastilha brasileira, localizada em Curitiba e em todos os rincões brasileiros onde mais de 400 mil presos estão nas “bastilhas” face à vagabundagem de cartórios, juízes, desembargadores e ministros. Trata-se de prisões preventivas sem fim ou de penas já cumpridas… e estes ainda injustamente presos têm pais, têm irmãos, têm mulher, têm filhos. A existência deste descalabro foi denunciada não por um petista mas por Gilmar Mendes, o ministro do PSDB.

Toda e qualquer mudança sempre será chamada pela minoria de “aventura”. A Rede Globo baterá na tecla. Mervais e Camarottis exercitarão seus silogismos e falta de perspectivas históricas. A lavagem cerebral será de amargar…

Mas não há outra saída: as ruas ou a farsa e a pobreza distribuídas em doses iguais para a classe média de cintos apertados e para os miseráveis e excluídos de sempre.