por João Wanderley Geraldi | jul 28, 2018 | Blog
Devemos às Edições SESC este belíssimo livro, com inúmeras fotografias artísticas de bibliotecas do mundo, numa história da arquitetura de bibliotecas escrita por James W. P. Campbell com fotografias de Will Pryce. É impressionante passear por este mundo em que ficam disponíveis outros mundos, aqueles contidos nos livros.
Numa introdução em que os autores levantam alguns dos problemas gerais enfrentados nos projetos e na construção dos prédios de bibliotecas – que vão desde a forma dos livros, por exemplo, o conjunto de completo das escrituras budistas impressas em madeira que estão na Triptaka Koreana (de 1251) ou os rolos de papiro das bibliotecas da antiguidade ou os manuscritos da Idade Média realizados por copistas em conventos, até às questões que envolvem segurança (o problema do fogo e da humidade) e espaços de leitura nos diferentes momentos da história do acesso aos acervos até chegar aos depósitos de livros em função da expansão dos acervos – são rapidamente apresentados, pois estes fatores terão grande importância nas construções de bibliotecas ao longo do tempo: da Antiguidade aos tempos contemporâneos da internet e dos armazenamentos virtuais. Por isso dão ao livro o subtítulo de “uma história mundial”. Cada tempo e cada projeto e cada arquiteto acabam dando respostas a estas questões que envolvem inclusive os espaços de trânsito que para nós, leitores, passam desapercebidos. (Legenda: Biblioteca de Celso. 155 d.C., Éfeso, Turquia. Trata-se de uma reconstrução da fachada feita no Séc. XX.)
As fotos ilustram as explicações sobre diferentes prédios – os autores visitaram 80 bibliotecas pelo mundo e analisam grande parte deles. Não se trata de um livro sobre os acervos existentes, sobre a importância destes acervos ou sobre sua utilização na construção do conhecimento acumulado nestes prédios. Trata-se do estudo das questões arquitetônicas que envolvem tanto a construção em si e seus materiais, quanto as formas de guarda e acesso aos livros, o que implica as mobílias e as salas de leitura.
Da Antiguidade, ou “dos começos perdidos”, ressalta o fato de que já então havia grandes bibliotecas, ainda que seus acervos fossem, para os termos de hoje, diminutos. E o material era guardado em “nichos”, como mostram aqueles ainda visíveis na Biblioteca de Celso (Éfeso, atualmente na Turquia). Das ruínas existentes, pouco se consegue obter como informação arquitetônica absolutamente confiável. Há inúmeras histórias, como o presente de uma quantidade suspeita de “livros” dados por Marco Antônio à Cleópatra. Para além do reconstruído prédio da Biblioteca de Celso (abaixo), talvez os restos mais interessantes em ruínas são da biblioteca nas termas de Trajano, em Roma.
Entre os anos 600 e 1500 d.C., foram as bibliotecas dos conventos tanto orientais quanto ocidentais que chamaram atenção dos autores. Lembremos que por esta época tínhamos “livros” em pergaminho, em papiro (cuja durabilidade exigia um armazenamento cuidadoso e ainda assim sucessivas cópias para irem substituindo aquelas que se decomponham), em madeira e ainda persistiam algumas “impressões” em argila. Ao contrário do que dá a entender o romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, as bibliotecas dos conventos não tinham grande acervo, até pelo que isso significaria de custo para as abadias e conventos. NO filme e no livro, a biblioteca da “ficção” se baseou na planta da biblioteca de St. Gallen (Suíça) que efetivamente nunca chegou a ser construída como um todo. Quando a visitei, a comparação entre a planta exposta e o prédio em que ntam os autores.
Desde período chamam atenção as bibliotecas orientais, particularmente a Triptaka Koreana (1251), o Salão de Sutras do Templo de Mii-Dera (abaixo), em que a solução de acesso é notável: uma estante octogonal fixada sobre um eixo que permitia movê-la. A própria estante tem a forma de uma “casa” com teto – artisticamente trabalhado – de modo que o visitante entra no prédio que cobre a estante e tem a sensação de que há um prédio dentro de outro. Nada mais enganoso do que imaginar que bibliotecas são instituições ocidentais. “Bagdá tinha 36 bibliotecas, mas a mais famosa era a Casa da Sabedoria, fundada pelo Califa Al Ma’mun (813-33 d.C.), que combinava biblioteca, escola e centro de pesquisa em uma única instituição, uma espécie antepassada das universidades modernas, e acreditava-se que possuísse 1,5 milhão de livros”.
Também é preciso recordar: a técnica de impressão começou no Oriente: compunha-se em blocos
demadeira e imprimia-se em papel já em 700 d.C. e provavelmente a impressão já existia na Mesopotânia. Tecnicamente, as civilizações coreana, chinesa e japonesa eram muito mais avançadas neste aspecto do que o Ocidente medieval.
Dentre as bibliotecas europeias, são analisadas no livro a Biblioteca Malatestina (1452) em Casena, Itália, em que se introduziu o atriz, com os livros guardados na prateleira de baixo, acorrentados para evitar roubos. A foto a seguir mostra os livros acorrentados para evitar roubos:
O sistema de atriz foi copiado por inúmeras outras bibliotecas e permaneceu em uso por muito tempo. Havia também a guarda em baús e estantes abertas, precursoras das estantes de parede que são mais conhecidas no mundo de hoje. Neste período, no Ocidente, também foram construídas muitas bibliotecas junto a Catedrais.
No Séc. XVII, como a impressão se tornando cada vez mais comum, as bibliotecas tiveram que se adaptar até porque cresceram vertiginosamente os acervos. Surgem então uma forma de guarda de livros que se chamou de “baias”, isto é, estantes em fileiras, muitas com atriz para leitura. O leitor sentava-se em frente aos livros que ficavam acima, retirava-os para ler ali mesmo. Não havia sala de leitura em separado dos livros. Exemplo típico é a
O passo seguinte se aproxima muito do que conhecemos hoje, particularmente em bibliotecas particulares: o sistema de estantes de parede, de um único nível. O Salão Teológico do Mosteiro de Strahov, em Praga (1679) mostra esta passagem para o sistema de paredes. É interessante que esta passagem mantém vínculo com o sistema de baias, pois os livros guardados nas estantes das paredes que circundam as janelas formam uma ‘baia’, com bancos em que os leitores podem se sentar. A foto mostra o sistema de paredes introduzido nesta época e que perdura até hoje.
Ao longo do século XVII ao XX, foram aparecendo novas soluções com a introdução dos espaços de leitura a que se começou a atribuir grande importância. A biblioteca não era apenas um lugar de acesso para poucos, mas deveria se tornar de acesso amplo, um lugar de pesquisa, de estudos, de leitura e de encontro. Os interiores das bibliotecas passam a exibir obras de arte – há inclusive espaços de exposições. O luxo das bibliotecas representa também o poder, que do rei, do nobre ou da própria nação. Os tetos são com afrescos – talvez a mais conhecida delas é a Biblioteca de Vaticano, um longo e largo corredor em que o acervo ainda é armazenado em armários fechados de acesso restritíssimo. O visitante passa pelo acervo e se não for alertado, não percebe que está dentro da biblioteca, porque o que lhe chamará atenção será o teto, não os armários de livros. Dentre as inúmeras bibliotecas analisadas por James Campbell e Will Pryee, seleciono duas fotos das bibliotecas que conheci: a Biblioteca Joanina, da Universidade de Coimbra e a Biblioteca de St. Gallen e de uma terceira biblioteca, para trazer um exemplo do período rococó:
Entre as bibliotecas modernas, em que já se começa a abandonar o ferro pelo aço, e em que os traços e em que os computadores passam a fazer parte das salas de leitura, talvez a mais original seja a biblioteca da Universidade Técnica de Delft, Holanda (1997), em que se ressalta a solução arquitetônica: como o projeto previa um porão e como isso se tornaria muito caro, os arquitetos construíram o piso térreo e por fora ‘produziram’ uma elevação do terreno, de modo que a entrada fica sob a terra. Um cone ao centro fecha a paisagem assim produzida, reunindo grama e prédio. As duas fotos mostram: a parte externa da biblioteca e uma visão interna, em que o sistema de paredes repete o que se começou a fazer já no início deste período: as prateleiras em níveis, com acesso por escadas e com passeios, no caso da biblioteca doa Universidade Técnica de Delft (Holanda, 1997), o piso é de vidro.
Com o advento da internet e com as formas de ‘armazenamento’ em nuvens, muitos decretaram o fim das bibliotecas. Fala-se muito nos “escritórios sem papel”. No entanto, nunca foram editados tantos livros impressos e nunca o consumo de papel foi tão grande e vem crescendo vertiginosamente. Assim, o decreto de fim do livro parece não estar chegando ao mundo real e continua uma virtualidade. Certamente as bibliotecas sofreram e continuaram a sofrer os impactos das novas tecnologias. Mas elas continuam a ser construídas e continuam a conter livros. Neste século XXI continuam a ser construídas bibliotecas e os acervos continuam a aumentar, criando problemas para a expansão das bibliotecas, particularmente aquelas que recebem os depósitos legais (isto é, a doação legal de um ou mais exemplares de cada livro impresso por toda e qualquer editora do país ou da região, conforme as respectivas legislações). No Brasil, a Biblioteca Nacional é uma biblioteca de depósito legal, e o crescimento constante dos acervos tem levado a soluções como a construção de grandes depósitos (como aquele da Biblioteca Bodleiana, Oxford. O depósito tem 262 km. de estantes!).
Arquitetonicamente, duas bibliotecas chamam atenção do leitor deste livro: A Biblioteca Nacional da China(2008) e a Biblioteca José Vasconcelos,
México (2006). A primeira impressiona pelo espaço (seus espaços de leitura podem acomodar 2.900 leitores ao mesmo tempo e junto com a antiga biblioteca, estão projetadas para atender a 12 mil pessoas por dia) e pelo seu catálogo (são mais de 1,9 milhão de itens); a segunda impressiona pela solução dada ao ‘armazenamento’ dos livros em estantes de aço penduradas no teto do prédio de 26 metros de altura, deixando todo o piso térreo como um grande salão de atendimento e leitura de 210m de comprimento por 30m de largura! Corredores e escadas permitem o acesso a todo seu acervo, mas “pegar um livro de uma das prateleiras penduradas, tão alto, com apenas um fino painel de vidro sob os pés e uma balaustrada de fios separando a queda, é uma experiência excitante e assustadora”. (Biblioteca José Vasconcelos, Cidade do México, 2006. As estantes dos livros são penduradas no teto e os corredores são com piso de vidro…)
Por fim, é preciso confessar: ler este livro dá uma vontade de ir conhecer estes monumentos arquitetônicos e estes espaços de permanência e acúmulo do conhecimento produzido pela humanidade, particularmente para uma pessoa que conheceu, dentre as bibliotecas descritas neste livro, somente a Biblioteca Nacional (Brasil), a Biblioteca Joanina (Coimbra) e a Biblioteca da Abadia de St. Gallen (Suíça). Quando viajando, visito museus, mas depois da leitura deste livro, começarei a procurar também as bibliotecas!
Referência: Campbell, James W.P.; fotografias de Will Pryce. A Biblioteca: uma história mundial. São Paulo : Edições SESC São Paulo, 2015.
* As fotos deste texto foram feitas por mim de fotos de Will Pryce.
por João Wanderley Geraldi | jul 27, 2018 | Blog
Desde 1983 venho participando do COLE e nestes doze anos de seis congressos encontrei, sempre, um batalhador, organizador e idealizador destes encontros, num vaivém contínuo entre os lugares públicos dos eventos – as luzes do primeiro plano das atividades plenárias – e os espaços dos bastidores que permitem a concretização de cada gesto deste diálogo nacional sobre a leitura. Ao colega Ezequiel Theodor da Silva dedico este texto e esta primeira conversa de abertura do 9º. COLE.
À atual diretoria da Associação de Leitura do Brasil, agradeço o convite – espinhoso – para ocupar este tempo inaugural do Congresso. Obviamente, tenho certeza absoluta de que tal convite se deve muito mais ao objetivo de salientar a necessária articulação entre militância e reflexão, a que tenho me dedicado, do que a possíveis resultados porventura alcançados com este mesmo trabalho.
Aos colegas professores destes diferentes brasis que aqui se (re)encontram, agradeço esta presença a demonstrar sobretudo que, como vergonha e esperança, sobrevivemos, para desespero para desespero daqueles poucos que tudo têm feito para construir a desesperança.
Iniciemos este 9º. COLE com um minuto de silêncio por
– Cláudio Pereira da Silva, 15 anos
-Carlos Henrique Aguiar dos Santos, 16 anos
-Marcos Vitorino Costa dos Santos, 19 anos
Que suas mortes inocentes, ocorridas no linchamento de 3 de julho de 1993, redimam a multidão ludibriada por aqueles que atribuem aos meninos de rua sua própria violência e desespero porque temos sobrevivido a suas manobras de manutenção de uma forma anacrônica de viver.
…para que a escrita advenha e subsista, insista, ela assenta sempre num processo de amnésia, no sentido em que ultrapassa a fixação na fobia do já-dito. (Maria Augusta Babo)
Falar em “momento de crise social” no Brasil e articular a este momento a questão da leitura exige um exercício de amnésia, para esquecer o que já se disse, recolhendo no já-dito fragmentos que iluminem o que está sempre por ainda dizer, neste esforço continuado e tenso de ir construindo compreensões novas nos cada vez menores intervalos do já-dito, re-articulando estes dizeres para constituir o ainda por dizer. O que se vai tecendo, a pouco e pouco, em cada ponto, em cada nó, é uma resposta atual a uma sucessão histórica de momentos de crise social, já que em nossa história a expressão momento de crise social somente tem sentido de atualidade por força de muita boa vontade.
Sem temor à repetição, para aqueles que preferem uma ética da expressão informulada e individual ao discurso explicativo já formulado e para sempre disponível na estéreo-tipização social (Osakabe, 1988), cada momento recoloca uma mesma e sempre irrespondida questão: como articular, aqui e agora, com as categorias de compreensão de que dispomos, uma resposta provisória, mas produtiva, às emergências cotidianas nas quais se mostra esta crise social brasileira, fundante de nosso próprio modo de estar no mundo?
Inescapavelmente, formulamos a cada ato, a cada gesto, a cada decisão, uma resposta e nas histórias destas respostas, relemos nossas categorias de compreensão e redefinimos o saber acumulado pela experiência humana, dialogando com múltiplas vozes que nos antecederam, para afirmar entre vozes alheias nossos roteiros de viagens. E no discurso da história estes roteiros dirão o que fomos. Recorramos à formulação poética desta mesma questão:
Agora, amadureço a questão
Nós, prontamente solidários com a memória
(compromissos sem perigos)
e o desespero irreparável dos mortos,
se, àquele tempo presentes e vivos,
como veríamos o III Reich?
Para responder, não te transfiras
a cômodo, como agora.
Busca adquirir a cidadania alemã
e depois, estável, responde,
ao curso de fuzis e verdades da época
– considerando o risco de tua estabilidade –
operário ou proprietário da Mercedes Benz
o que farias no III Reich?
Que em nós o tempo é o mais humano,
e hoje de homem não temos senão o tempo ganho,
fração de um tempo maior
que a vagar se compõe tão árduo.
Por isso pergunto
em todos os tribunais do passado,
que lado ocuparíamos?
pois que somos e não somos ante o tempo
e também seus acidentes
históricos e geográficos,
as estações, a carência e os meses.
Se ainda fosse abril,
o que faríamos, sendo em tempo do III Reich?
E agora que estimamos
a incerteza
ante o III Reich,
agora que estimamos
menos perigosa
a participação da memória
e muito menos eficaz
pergunto: tu, ante o presente,
como te define ao que será passado?
Há urgência na resposta, antes que a noite chegue
Carregarás fardos para evitar
(repara que o rio corre e a noite vem como onda)
ou deixarás que apenas sejamos o tempo
e irreparável memória?
José Carlos Capinan – Inquisitorial
Ante o presente, teçamos, neste Congresso, nossas respostas. Para iniciar tal construção – obrigação que me impõe o gesto de abertura que gostaríamos sempre de ter já ultrapassado, estando já na sequência do discurso e não nos seus inícios (Foucault, 1971), seleciono três formas de manifestação da crise brasileira contemporânea: um mesmo iceberg em três de suas faces.
O MENINO E O POEMA
Paulo Eduardo de Oliveira Berni, um menino de 10 anos, trouxe-me seus poemas. Olhos vivos e atentos a qualquer reação minha durante a leitura, esperou que os lesse, ao mesmo tempo lisonjeado e apreensivo. Quando percebeu que terminei a leitura, sapecou:
– Tio, tenho futuro? e imediatamente me explicou
– Eu quero ser poeta e jogador de futebol para viver…
Que responder ao autor de
Seres de planetas
Os seres dos planetas
viajam em diferentes cometas.
Mercúrio é mercuriano.
Marte, é marciano.
Vênus, é venusiano.
Urano, é uriano.
Netuno, é neturiano.
Saturno, é saturiano.
Plutão, é plutoriano.
Júpiter, é jupiteriano.
A imaginação corre solta.
E a terra
é terráqueo ou terrorista?
Na explicação de Paulinho, e num de seus poemas, encontro já indícios de uma resposta possível: enquanto na terra há os que se fazem terroristas – a elite econômica a semear a miséria para dela se beneficiar – é preciso ser jogador de futebol como estratégia de sobrevida do poeta. Mas dizer isso é também dizer:
– Desculpe, Paulinho, porque a única coisa que posso dizer sobre seu futuro d epoeta é ter vergonha do nosso presente.
Um presente que empareda sonhos, que fecha portas, que destrói alternativas, que exclui e depois culpabiliza individualmente por não reconhecer-se em seus produtos e para tentar justificá-los: homens gabirus construídos sob o tacanho império da propriedade privada improdutiva e intocável, da exploração extrema capaz de gerar recursos financiadores de fantasmas desde que estes, corporificados, sejam capazes de manter o sistema de exploração de forma constante e geométrica.
Esta a face individualmente dolorida da crise social: como sujeitos, constituímo-nos social e heterogeneamente, vivendo nos horizontes de possibilidades concretas de cada momento particular. Neles nos movemos e no movimento ampliamos tais horizontes à medida que no presente nossa memória do futuro nos permite agir não só limitados pelo passado, mas também orientados pelo futuro. As utopias, socialmente construídas, mobilizam o desejo individual e o desejo nos leva ao agir. Participantes na e da história, somos ao mesmo tempo seu produto e sua força de propulsão. Nosso momento de crise, ao impossibilitar que o leitor se construa também como autor, não resulta nem de uma falta de competência nacional nem do fato de virmos construindo nossa cultura a partir de modelos europeus ou americanos, mas do fato de a elite nacional com acesso aos bens culturais – e isto inclui a produção de cultura – ter de conciliar moralmente as vantagens de um modelo econômico e de exploração anacrônico e que a beneficia, segregando a maior parte da população brasileira do universo da cultura contemporânea (Schwarz, 1987).
E é com estes segregados que temos trabalhado enquanto professores destes diferentes brasis. Qualquer trabalho que procure tornar a leitura conquista de uma realidade não pode esquecer o contexto de sua luta e tampouco excluir de seus horizontes a realização da felicidade individual no projeto de construção de uma sociedade democrática em todos os sentidos desta expressão. Por isso, enquanto agentes deste processo de transformação, lutando diuturnamente com nossos alunos na sua caminhada de constituição de autores e leitores, constituímo-nos nós próprios em leitores-autores de nossa história presente. E para fazê-lo, nada melhor do que o projeto do poeta
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros,
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é minha matéria,
o tempo presente,
os homens presentes,
a vida presente
Carlos Drummond de Andrade
O ASSALTO E O ROUBO: DUAS INSTITUIÇÕES DESMORALIZADAS
Segundo os cálculos do jornalista Carlos Franscicato (Zero Hora, Porto Alegre, 11/07/1993)
Pela média dos últimos meses, para se igualar aos cerca de US$ 1 bilhão movimentado pelo esquema PC, os ladrões gaúchos precisariam amealhar 130 mil carros, o que levaria 82 anos. Ou assaltar 96 mil bancos, o que demoraria mais de mil anos. Se os assaltantes de banco pretendessem igualar ao total espoliado pelos sócios de Paulo César Farias nos 29 meses de governo Collor, precisariam ter assaltado, nesse mesmo período, mais de 300 bancos por mês, ou dez bancos por dia. Da mesma forma, teriam que desaparecer das ruas cerca de 1.500 carros por dia (4,5 mil ao mês), em uma proporção 30 vezes superior ao que ocorre atualmente.
Em um de seus sermões, Pe. Vieira, já no século XVII, apontava o verbo roubar como conjugado em todos os tempos, modos e pessoas no Brasil-Colônia (tempo de formação da ainda hoje elite econômica brasileira). Mas até esta mesma “instituição” nossa elite foi capaz de suplantar, desmoralizando “pequenos roubos” como assaltos a bancos ou furtos de carros. A mesma elite que não vivia uma crise ao desviar recursos para o tráfico de influência – expressão eufemística para enriquecimento ilícito às custas do trabalho de cada um de nós – mostra-se, pouco mais de três anos depois, depauperada por uma crise e recessão econômicas que, segundo ela, não lhe permite sequer indexar salários à inflação, embora mantenha seus altos índices de lucratividade.
Nós, mortais gabirus, habituados à rapina cotidiana, reagimos nas ruas ao excesso desmoralizante das atividades pcfarianas. É na atividade diária, na luta cotidiana e quase inglória que temos reagido à rápida diária: sobrevivendo e por sobrevivermos, impingindo-lhe nossa vitória por recusarmos sua proposta.
Expõe a mercadoria!
Sempre que vou
pela cidade deles
atrás de um ganha-pão, alguém me diz:
– Mostra o que trazes contigo,
abre em cima do balcão:
expõe a mercadoria!
– Conta uma coisa que nos empolgue!
Fala da nossa grandeza!
Descobre nossos secretos anelos!
Indica-nos a saída!
Expõe a mercadoria!
– Mistura-te conosco
para sobressaíres,
mostra-te igual a qualquer de nós
e nós diremos que és o maior!
Nós podemos pagar, temos recursos
e ninguém mais do que nós.
Expõe a mercadoria!
Fica sabendo: nossos grandes preceptores
são aqueles que ensinam o que queremos que ensinado seja!
Manda, enquanto obedeces!
Dura, enquanto nos leva a durar!
Entra no jogo conosco, vamos repartir os ganhos!
Expõe a mercadoria! Sê leal para conosco,
expõe a mercadoria!
Quando lhes olho bem os rostos corrompidos
lá se vai minha fome… (Bertoldo Brecht)
Não comerciando nossos sonhos, ousando ensinar e aprender no diálogo com nossos alunos, junto com os quais nos debruçamos sobre o que nos oferece cada autor em cada texto – apesar de todos os reveses – temos evoluído em nosso trabalho. Na surdina, nas profundezas de um mar social em ebulição na superfície, na desvalorizada escola, a maioria de nossos companheiros professores temos compartilhado textos e compreensões que ler e escrever não são atos mecânicos de reconhecimento, mas processos de construção de compreensões dos objetos, do mundo e das pessoas. E sobrevivemos porque só isto não nos satisfaz:
… um homem satisfeito nada faz, um homem satisfeito é preguiçoso, um homem satisfeito é um aposentado antes de ter começado a fazer alguma coisa. Um homem satisfeito sempre torna a fazer a mesma coisa, como um funcionário público. (Canetti, 1987)
E porque não estamos satisfeitos, vamos além. Se fomos por tanto tempo roubados, queremos hoje mais do que o necessário. Queremos o direito à literatura e sua fruição, porque literatura tratando de um mundo que não é nos fornece categorias de compreensão do mundo que é.
ELES NÃO SOBREVIVERÃO À NOSSA SOBREVIVÊNCIA
Para mostrar a terceira face da crise social que vivemos, recorro à narração literária de Francisco Dantas para lhe contrapor a narração jornalística de Marcelo Auler:
– Ai! meu amo… pelo leite de sua mãe… não judia mais do neguinho… – Mal fechou a boca, outra cacetada no ventre o obrigou a dobrar o tronco e os joelhos; repuxão terrível; solavanco de todos os diabos. O pretinho zonzo e machucado persistia a berrar de joelhos, mendigando a única esmola que queria: – não mais… amo de Deus… – E antes mesmo que pudesse terminar de novo a rogativa repetida, outra paulada atravessou os braços espichados em clemência e resvalou queimando os beiços, amassando a súplica num mugido de bicho que, de corpo inteiro, estatelou-se nas pedras. Mas, intuindo alumiado, como se de repente recebendo aviso, tratou de engatinhar meio tonto, se arrastando de asa quebrada, forcejando pela destreza que lhe fugia. Trotaria se fosse o burro que amansara, correria se as pernas o ajudassem, mas bom mesmo era se fosse carcará ou gavião. Pressentira, no atordoamento da última ripada, o destino que a fúria do amo lhe endereçara: os exemplos que já vira lhe bastavam. Ainda se sacudindo de gatinhas que melhor a tonteira não deixava, tratou de se largar dali manquitolando meio trombado, rechaçando o zumbido da cabeça só com o ímpeto de viver, que até mesmo se arrastar em trompaços de aleijado o corpo pesadão já não queria. Da boca afolozada, o sangue ia escorrendo por conta do amo que, na ponta da ira desatada, decidira de sua sina, laborando sobre o seu corpo a pauladas.
Retorcendo-se sobre as pedras em esgares de quem se fina, o negrinho parecia tomado do demônio para a morte. Ou porque agonizasse de verdade, ou porque simulasse os estertores só para ganhar tempo e se refazer, a verdade é que teve a trégua que merecia, e só mostrou que se recuperava depois de reagrupar as forças por dentro de uma lufada só. Mal foi se pondo equilibrado, o patrão que vigiava de pertinho tentou levantar o corpo bambo a pontadas de botas, testando assim a resistência do semi-morto, sequioso de outra vez agudizar-lhe o sofrimento, o porrete de pau d’arco já alevantado, prestes a abrir uma brecha vermelha na cara de carvão.
Mas o que mais doía no condenado era morrer inteiro vendo que morria! Por isso o patrão esperava… queria o desinfeliz de olho bem aberto para que mais o matasse a última golpeada desferida. Se aquele porretão já alçado despencasse em iras lá de cima… era uma vez um negrinho que engatinhava…Mas desta vez a seu favor se conjugaram sorte e agilidade: assim que a cacetada retiniu nas pedras com uma violência de arrancas faíscas, o renascido acabara de escorregar o corpo e se firma de pé. E no clarão do mesmíssimo relâmpago, mal o porrete voava das mãos do amo, sobre este o negrinho se arremessava a marradas de novilho alucinado, acertando na barriga duras cabeçadas, até que o grande corpo branco foi se desgovernando e desabou de vez. Bicho ainda desvairado, o negrinho malhou, com os calos das mãos, os rins e a cara do amo. Depois, ainda aterrado e fungando forte, mas já dono de uma pontinha de alívio, fez uma invocação a seu Deus… que ele fosse maior do que a desgraça em que acabara de cair. E nu da cintura para cima, sem os seus teréns e a mochila da matutagem, fugiu para o oco do mundo, desabalado e de cabeça no tempo, bicho para sempre caçado pelos cachorros. (Francisco J. Dantas. Coivara da Memória)
A mesma sorte não tiveram Cláudio, Carlos e Marcos:
Na volta do futebol de praia… esperavam o ônibus da linha 906, que os levaria de Olaria para o Jardim América, para casa. O ônibus não parou no ponto. Os rapazes fizeram uma algazarra. Gritaram palavrões, provocaram. Um policial resolveu revista-los. Não encontrou nada. Os três acabavam de ser liberados pelo PM quando apareceram quatro homens num Bugre vermelho. Desceram do carro para bater nos forasteiros que faziam bagunça. Desceram distribuindo safanões. Os três rapazes correram, tentando fugir. O Bugre foi atrás. Eram 3 e meia da tarde. Da rua onde estavam, a Noemia Nunes, os rapazes dobraram à esquerda, na rua Angélica Motta. Atrás do Bugre já corria uma pequena multidão. “Eu vi os rapazes correndo. Um bando vinha na perseguição gritando ‘pega ladrão!” conta um frentista do posto de gasolina. Triunfo. Correram 200 metros. O Bugre os alcançou. Derrubou-os no chão. A multidão chegou. Começou o linchamento. […] Francisco Lins Monteiro, 24 anos, desempregado, pegou um paralelepípedo. Bateu com ele no peito de um dos rapazes que tentava se levantar. […] Josefa Alexandrina da Fonseca, 53 anos, viúva e analfabeta, encontrou um cabo de vassoura, com a ponta lascada como uma lança. Enfiou-o na boca de um dos jovens caídos. Com a ponta do pau, dava-lhe estocadas fortes. […] Tentou furar os olhos de um. Não conseguiu. Cravou-lhe a vara numa veia do pescoço. “O sangue jorrou” […] Uns desciam e iam bater também […] os corpos estavam estirados no chão. A multidão olhando. Quando um dava sinal de vida, levava mais chutes e pedradas. […] Um senhor surgiu com dois litros de álcool.. Espalhou o líquido sobre os corpos dos rapazes. Jogou um palito de fósforo. Caiu apagado. Um menino de uns 14 anos riscou outro fósforo. Deu certo. As labaredas ergueram três fogueiras humanas. […] Mas os três rapazes continuavam vivo. Um deles se levantou, o corpo em chamas. Correu 20 metros. Tirou o calção. Depois a camisa. Tentou agarrar-se à janela de um carro que passava. A senhora que o dirigia fechou o vidro, assustada. O rapaz cambaleava. Estava nu. O adolescente tombou numa calçada. A multidão correu para lá. A cada sinal de vida, um chute, uma pedrada. O rapaz gemeu. A multidão parou para escutar. Ele pediu água. Ofereceram-lhe água sanitária. A multidão gritou, como num estádio de futebol. Justiça fora feita. (Marcelo Auler. Sangue dos Inocentes. Veja, 14.07.1993)
Que dizer de uma sociedade assim tomada pela violência? Como resistir à chacina da Candelária na madrugada de sexta-feira passada (23.07.1993) quando o braço armado da polícia que nos protegeria torna-se ela própria a assassina de meninos de rua? Que valeu para eles serem alfabetizados, leitores e autores de textos, quando a autoria da própria vida lhe sé sonegada?
Sobreviventes, façamos de nossos mortos nossos heróis! Porque sobrevivemos, apesar de tudo. E é por isso que nos temem aqueles que sempre se beneficiaram da violência, no passado e no presente. Não nos deixemos enganar pelos discursos com explicações já formuladas, que culpabilizam indivíduos em supostos inquéritos judiciais, pois a violência está nas ruas, ela foi sendo construída por aqueles que se beneficiaram e se beneficiam da miséria e fome de muitos.
Professores, leitores e autores na formação de outros leitores e autores, articulemos ao cotidiano de nosso trabalho a construção de uma compreensão de nós mesmos e de nossa sociedade, forjando os caminhos de uma mudança, porque, como ensina Paulo Freire, a tarefa do ensinante
É uma tarefa que requer de quem com ela se compromete um gosto especial de querer b em não só aos outros mas ao próp0rio processo que ela implica. É impossível ensinar sem essa coragem de querer bem, sem a valentia dos que insistem mil vezes antes de uma desistência. É impossível ensinar sem a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar. […] É preciso ousar para dizer, cientificamente e não bla-bla-blamente que estudamos, aprendemos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e também com a razão crítica. Jamais com esta apenas. É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional. É preciso ousar para ficar ou permanecer ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos, mal pagos, desrespeitados e resistindo ao risco de cair vencidos pelo cinismo. É preciso ousar, aprender a ousar, para dizer não à burocratização da mente a que nos expomos diariamente. É preciso ousar para continuar quando às vezes se pode deixar de fazê-lo, com vantagens materiais. (Paulo Freire, 1993)
Se a hora de ser feliz ainda não é agora, agora é a hora de ousarmos construir sonhos, enuncia-los, concretizando-os nos riscos das pequenas ações para que a hora de ser feliz seja num breve agora.
Nota
Este texto foi escrito para a conferência proferida no 9º. COLE. Trata-se aqui de uma colagem de notícias e de comentários, entrelaçados com poemas. Pretendia a um só tempo dar um panorama da crise e trazer as reflexões dos poetas que sempre estão a desvendar o mundo que habitamos. Lembro que iniciamos esta conferência com um minuto de silêncio pelas vítimas do linchamento de 03.07.1993. Vivíamos então sob os começos da ditadura do pensamento único, o neoliberalismo que FHC traz ao governo de Itamar Franco quando ministro da fazenda e que aprofunda a partir de sua eleição em 1993. No mesmo mês, e um pouco mais tarde (23.07.1993) ocorre a Chacina da Candelária em que policiais assassinaram 8 crianças e jovens que dormiam nas escadarias da igreja, no centro do Rio de Janeiro. Parece que o linchamento prenunciou o crime absurdo da Candelária. Este texto é também consequência do ambiente em que estávamos vivendo de mudanças que vieram a aprofundar a abismal desigualdade social.
Bibliografia
Andrade, Carlos Drummond de. “Mãos dadas” in. Barata, Manoel Sarmento. Canto melhor. Uma perspectiva da poesia brasielria. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1969.
Auler, Marcelo. “Sangue dos inocentes”. Revista Veja, 14.07.1993
Brecht, Bertold. Poemas e canções. Seleção, tradução de Geir Campos. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1966.
Canetti, Elias. A língua absolvida: história de uma juventude. São Paulo : Cia. das Letras, 1987.
Capinan, José Carlos. “Inquisitorial” in. Barata, M. S. (op.cit.)
Dantas, Francisco J. C. Coivara da memória. São Paulo : Estação Liberdade, 1991.
Franciscato, Carlos. “Corrupção: punição de PC começa pelo crime menor”. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 11.07.1993.
Freire, Paulo. Professora sim, tia não. Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo : Editora Olho d’Água, 1993.
Osakabe, Haquira. “Ensino da gramática e ensino da literatura. A propósito do texto de Lígia Chiappini Moraes Leite. Linha d’Água, Revista da APLL, São Paulo, 1988.
Schwarz, Roberto. “Nacional por subtração”. In. Que horas são? São Paulo : Cia das Letras, 1987.
por Mara Emília Gomes Gonçalves | jul 26, 2018 | Blog, Uncategorized
Todos os dias eu me descubro mais apaixonada pela educação, e imediatamente penso que a raiz etimológica da palavra paixão é pathos, o que remete a algo patológico, doente, excessivo. Então não. Engraçado que em uma campanha do passado recente, penso que não inadvertidamente um candidato usou o slogan: paixão pela educação. Medo desses meus maus pensamentos.
Certo é que não tenho amor, afinal é um esse sentimento sublime, que não vê defeitos, não escolhe mediante análises, tempo ou conhecimento, ao contrário é voluntário, tudo perdoa. Enfim, vou dizer que gosto, porque me parece mais honesto. Gosto da educação, de ser professora.
Professores me encantam, sempre é um tempo mentiroso, pois muitas vezes ao ler ou presenciar práticas equivocadas tenho impulsos de ódio mesmo, depois passa, rápido até. Não me tornei professora aleatoriamente, escolhi várias vezes trilhar esse caminho de mudança. Já a mudança, e as ideias que advém dessa prática me causam maior alegria.
A capacidade de mudar realidades é algo fascinante: não ler para torna-se leitor, não ser social para convivência coletiva, ceder, organizar, desorganizar, e tantas outras coisas, e não estou falando só de educação escolar, mas dela também. O conhecimento, a o trânsito continuo deste, é algo muito admirável: de repente a gente aprende e aprendendo a gente ensina, e ensinando a gente muda o mundo. – acho que é Paulo Freire isso, mas já introjetei e acredito que é meu, então fica mesmo sendo assim sem dono ou dona que não permita a livre circulação.
Muitos professores gostariam de ser valorizados, engana-se quem pensa que é de salário que parte essa premissa, ou o uso do jaleco tapa giz, ou mesmo respeito por parte dos alunos que entendem que escola é lugar de aprender(com quem muito sabe, risos), quem sabe um presente no aniversário profissional, um lanche bacana na sala de professores e outras perfumarias. Essas coisas são bacanas, mas não atingem o cerne da questão da desvalorização do professor, aliás não deviam atingir, mas tão massacrados que estamos algumas vezes ganham uma dimensão de maiores do que realmente são.
Sempre que converso com professores, e me permito ouvir mais do que falar (casos raros) percebo neles uma vontade de produzir reflexão, ter tempo para descansar e pensar sobre a sua prática, e melhorá-la também, mas como fazer isso diante de tripla ou quadrupla jornada? E mais do que isso, como combater o distanciamento entre prática e teoria? Talvez a desvalorização interesse a alguém, ou a um poder e ordem estabelecidos.
Ninguém vai acreditar mais ouço nesse exato momento em que escrevo uma música de Belchior que diz: “Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria,/ Em nenhuma fantasia, nem no algo mais/ Longe o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia/ Amar e mudar as coisas me interessa mais/ Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais”. (Alucinações – Belchior)
É interessante como gosto de ouvir as composições de Belchior, seu sotaque nordestino carregado de sentimento latino-americano sem dinheiro no banco, mas confesso nunca tinha prestado a devida e merecida atenção nesta música que destaquei acima. É claro que digo isso porque sou miseravelmente incapaz de entender tudo o que a genialidade constrói na mesma, mas sinto tanto todas as construções.
Acho mesmo que esse texto é sobre sentir e entender, mas sem tempo que estou não consigo determinar.
Voltada que estou para o fazer docente, me atrevo entre palpites e reflexões a sonhar com um novo modo, muito pouco apaixonado e muito mais militante, cheio de obrigações e provocações que surgem frutos de uma história colonial e de exclusões, que matou, mutilou, calou, torturou e principalmente silenciou. Uma vez ainda ousei dizer de mim. Escolho textos, e reflexões para junto com os alunos aprender sobre a vida, ops! sobre a língua portuguesa. Em sala digo sempre, das minhas dores, da minha ancestralidade não remetendo apenas a questões de ordem religiosa, mas de vida, exemplos, conformações e alegrias. Permito que me toquem com suas perguntas, inquietações, sonhos e coragem, e então me acendo novamente. Faço isso sim, extraio dos meus alunos um pouco de suas energias transformadoras, e eu uma vez incendiada, ensino-lhes a resistir. Paulo Freire nos fala sobre isso de resistência, outros também, Bell Hooks lendo-o, acrescenta que é preciso transgredir para a liberdade.
Comecei o texto falando de como educação é importante para mim, quando na verdade gostaria mesmo de dizer que gosto de mudar as coisas. Uma das coisas que pela tradição dos meus antepassados eu gostaria de mudar é o peso da tradição escrita, em relação à tradição oral, e como discordo disso. Penso que escrever e registrar implica em manter a ordem das coisas: Ensino os alunos a escrever, (olha só a prepotência) e assim eles são inseridos na cultura letrada, o que significa que vão conhecer por meio dos registros escritos, que foram escolhidos para serem transmitidos dentro de uma ordem econômica e social, as regras e a cultura que devem ser mantidas.
É claro que temos registros de textos, literaturas e afins que são contra hegemônicos, que situam-se nas margens, e que trazem um pouco da dimensão da pluralidade social e intelectual, mas dentro das escolas, nas academias, nas mídias e na sociedade de modo geral esse segmento é resistência, exigindo um esforço de subordinação para a insubordinação. Imagino daqui, sem suporte de nenhuma teoria, que todos nós sabemos dizer do que sentimos, e na medida em que praticamos, tornamo-nos melhores nisso.
Já escrever, exige uma série de contratos, códigos e conhecimentos que vão muito além do sentir. Para dizer tudo o que se pensa é preciso adquirir plenamente o conhecimento sobre a língua, e mais do que isso para quem e o que se pensa, e quem pensa a partir de onde se pensa. Horrível isso, não?
Uma das coisas que aprendi é ter pudor.
Uma das coisas que a idade me deu foi pudor, uma outra foi: fios de cabelo brancos. Prefiro a segunda a primeira, embora ainda não minta que os acho um charme, mas a ideia de que refletem sabedoria me anima sobremaneira. Não confundam, ainda estou falando sobre os cabelos brancos.
Alguns incautos poderiam dizer apressadamente que o pudor também é fruto de sabedoria, nada sabem, tolos. Pudor é aceitação de que a sociedade, e suas regras, pesam em suas ações, e por isso mesmo são mais importantes do que suas vontades, ou qualquer coisa que pudesse te fazer feliz.
Me sinto feliz quando assisto vídeos de declamações de cordéis, batalhas de rap, apresentações de slam de resistência, palestras do TEDx e vejo como ensino meus alunos para a fragilidade, é quando sou mais triste. Toda a tecnologia dotando de muito poder o falar. Quanta força carrega a oralidade.
A escola não fez de mim uma conservadora, mas ainda assim sei que sou. Lembro episódios da minha vida: certa feita, sentada estava de pernas abertas e saia, foi me avisado que era preciso ter bons modos, pudor. Noutro momento os cabelos alvoraçados precisavam ser domados para a entrevista de emprego: pudor. Um batom vermelho nos grossos lábios seria muito estranho para cantar no coral da igreja, quem sabe um pouco de pudor, hein? Falar alto enquanto muitas mulheres apenas acenam com as cabeças em acordo ou desacordo pode parecer um pouco inadequado. O pudor em si não é uma violência, é uma recomendação para que você seja aceito com bons olhos, o que prefiro ler como submissão, então algumas vezes me submeto, mas muito mais para esticar a corda e ver onde arrebenta.
por João Wanderley Geraldi | jul 23, 2018 | Blog
O brasileiro Paulo Freire tornou-se um educador do mundo, pois suas obras foram traduzidas para inúmeras línguas e em inúmeros países (Japão, Índia, Rússia, EEUU, Inglaterra, Polônia, além de sua circulação evidente em toda a América Latina e África).
Sua obra maior, Pedagogia do Oprimido, foi escrita no exílio, no Chile, nos anos de 1967 e 1968, anos emblemáticos das movimentações sociais pelo mundo. As manifestações em Paris (maio/68), em Roma, em Berlim, apenas para citar algumas das cidades cujas ruas foram tomadas pelos jovens estudantes, pelos trabalhadores, com lemas que incluíam “exigir o impossível” fizeram parte das condições de produção da obra, pois a ebulição social de então teve a atenção do educador, mas seu livro, no entanto, não aponta para o impossível, mas para os necessários processos de libertação, emancipação e transformação sociais através do trabalho cotidiano onde “inéditos viáveis” podem ser construídos na educação.
Categorias como invasão cultural, dominação, violência, opressão, pluralidade e consciência, trabalhadas em seu livro, continuam úteis para a compreensão das realidades que estamos vivendo hoje. Defendendo uma pedagogia do oprimido (e não uma pedagogia para o oprimido, ao estilo das pedagogias e dos trabalhos de reinserção social), cuja construção não pode dispensar a palavra do próprio oprimido cujos sentidos, geralmente habitados pelas perspectivas das classes dominantes, precisam ser postos em discussão (particularmente nos círculos de cultura), para que se possa reescrever uma história às avessas, ou para usar uma clave benjaminiana, para escrever a história a contrapelo. Paulo Freire capta a atenção das ciências da educação nos mais variados espaços: desde o espaço universitário onde é lido, estudado e debatido, passando pelos trabalhos educativos dos movimentos sociais, dos sindicatos, das organizações, chegando aos sistemas educativos oficiais sem deixar de aportar, muito antes disso, ao chão da escola, precisamente o lugar da emergência das possibilidades de concretização de uma pedagogia que não se restrinja à mera transmissão de conhecimentos, mas que alimente a esperança (não a espera) de construção de um mundo que abrigue a todos e a todas.
Os princípios fundantes de sua pedagogia foram já delineados em sua tese de cátedra para a Universidade de Pernambuco (Educação e atualidade brasileira, de 1959, mas somente publicada nos inícios dos anos 2000) e na experiência de alfabetização de adultos em Angicos (1963), princípios a que se manteve coerente ao longo da vida, mas que foram sendo burilados no grande volume de obras que veio escrevendo depois de Pedagogia do Oprimido, cuja história de edição merece registro.
Escrito, como se disse, nos anos 1967/1968, a primeira publicação do livro se dá nos EEUU, em 1970. É a partir desta edição que se segue a edição em língua espanhola no Uruguai, seguida pela edição argentina. Na investigação levada a cabo pelo Prof. José Eustáquio Romão, depois de 15 anos, os originais foram localizados (e hoje estão disponibilizados na internet pelo Instituto Paulo Freire de São Paulo). E então se percebeu que na edição norte-americana foram excluídas algumas passagens (particularmente seu esquema em que resume sua teoria da ação revolucionária). Como aquela edição serviu de base para as várias edições que circulam pelo mundo, incluindo a primeira edição brasileira (que somente ocorrerá em 1974) e todas as edições subsequentes, somente agora se tem acesso à versão original.
No Congresso realizado no Porto, entre 11 e 13 de julho deste ano, celebrando os 50 anos de Pedagogia do Oprimido os participantes tomaram conhecimento destas informações. Mas a maior surpresa é a primeira edição do livro em Portugal, em 1972! No prefácio à terceira edição lançada neste evento, Luiza Cortesão escreve: “É de salientar que do registo de atividades da cooperativa Confronto constam tentativas de estabelecimento de relações com entidades nacionais e estrangeiras, com caraterísticas muito diversificadas (…). Destes registos, consta ainda a referência a uma carta que António Melo, da Confronto, escreveu em 21 de junho de 1971 a Paulo Freire, que estava na Suíça, propondo uma reunião, com ele, de um grupo de trabalho. E, num registo de 1 de janeiro de 1972, há mesmo referência a outra carta, também de António Melo, sobre a questão da publicação do livro “A Pedagogia do Oprimido” pela Afrontamento, publicação essa que terá acontecido nesse mesmo ano.”
A articulação desta edição, pelo grupo da Confronto, desconhecida inclusive pela busca do Prof. Romão, mostra que a editora contou com alguma cópia dos originais, pois a edição portuguesa contém tudo o que fora deixado de lado pela edição norte-americana e pelas sucessivas edições em diferentes línguas, incluindo a edição brasileira.
O editor José Ribeiro, no lançamento da terceira edição, revelou que quando a editora foi fazer a segunda edição, levou em conta o texto publicado no Brasil, imaginando que a edição brasileira tinha sido acompanhada pelo autor: na segunda edição e agora nesta terceira edição, as partes que agora se tornam públicas pela edição fac-similada dos originais (e presentes na primeira edição portuguesa) foram excluídas. Esta história de edições da obra coloca a primeira edição portuguesa em lugar de destaque: é, pelo que se sabe até agora, a edição efetiva dos originais entregues por Paulo Freire.
O autor revisitou sua obra principal, em novo livro, “A Pedagogia da Esperança”. Nela faz um registro: “eu e a Pedagogia do Oprimido éramos proibidos de entrar na Espanha como em Portugal. A Espanha de Franco e o Portugal de Salazar nos interditava a ambos. À Pedagogia e a mim”.
Os inúmeros estudos apresentados no Congresso desvelando a atualidade da obra de Paulo Freire, cujos conceitos e categorias – tecnicismo, invasão cultural, não neutralidade, educação bancária, transformação de sujeitos em objetos, então usadas para a elaboração de Pedagogia do Oprimido – são hoje extremamente elucidativas para compreender e analisar as propostas da “pedagogia dos opressores” que se consubstancia em documentos da Comunidade Europeia como defendeu o Prof. Licínio Lima na conferência de abertura do evento; a aproximação de seu pensamento a teses defendidas hoje pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos como demonstrou Inês Barbosa; a perspectiva da constituição da subjetividade que se coaduna com o pensamento de Mikhail Bakhtin, o filósofo russo que Paulo Freire não conheceu; a análise das relações entre a política e a educação seguindo o princípio freireano da não neutralidade e da necessária tomada de posição diante de uma sociedade de desiguais; tudo mostra que debruçar-se hoje sobre um livro escrito há 50 anos é uma necessidade para compreender, para “ler o mundo”.
No mesmo Congresso, comunicações apresentadas, resultado de pesquisas mais recentes, referem a experiências realizadas com base na pedagogia freireana. Entre estas, um destaque especial deve ser atribuído à Escola de Segunda Oportunidade de Matosinhos. Como se sabe, estas escolas trabalham com jovens “expulsos” das escolas regulares, e com projetos (particularmente em artes e ofícios) de adesão voluntária destes mesmos jovens com os quais tais projetos são pensados, elaborados e postos em prática, reconstroem as possibilidades de estudos, ao mesmo tempo em que oferece formações técnicas para o trabalho sem que este um ano de estudos signifique uma certificação profissional nem o fim da linha na escolarização destes jovens que retornam depois desta experiência às escolas regulares, revitalizados por um ano de escola aberta e pedagogicamente inspirada em Paulo Freire.
O Congresso se encerra com uma conferência de Boaventura Sousa Santos sobre “As epistemologias do sul, Paulo Freire e Orlando Fias Borda”. Trata-se de recuperar outras formas de compreender as coisas, as gentes e suas relações, numa aposta na pluralidade e no convívio possível entre diferenças. Estas formas outras de saberes e conhecimentos não podem ser ignoradas ou consideradas menores, tal como tem acontecido diante do eurocentrismo que predomina nas concepções do que é conhecimento válido, produzindo um epistemicídio atroz e empobrecedor.
por João Wanderley Geraldi | jul 22, 2018 | Blog
A AVAREZA DO MEU TIO
Deixei de ir a casa do meu tio.
Simulo pressa quando o vejo e pouco falo.
Porque cria galinhas no quintal
e só lhes quer os ovos do omelete.
Prá não gastar, como dizia, inutilmente
uns grãos de milho a mais não atendeu
ao que pedi de as alegrar comprando um galo.
(Geraldino Brasil. Poemas útiles. Seleção e versão livre [para o espanhol] de Jaime Jaramillo Escobar. Edição bilíngue. Madri : Pre-textos, 2003)
por João Wanderley Geraldi | jul 21, 2018 | Blog
Se há uma palavra que se pode aplicar a este livro de Jorge Miguel Marinho, é a palavra delicadeza. Delicadeza no estilo; delicadeza no tratamento do tema do amor, mas também delicadeza na alegoria que conduz toda a trama que se desenrola no Pequeno Reino desta “história mágica” que ouvidos atentos descobrirão ser também a história da luta contínua dos homens e mulheres na construção da felicidade que jamais se completa se não for coletiva.
O enredo é atravessado por remessas aos contos de fada, às personagens femininas das fadas, das bruxas, das princesas. Rapunzel, Cinderela, Branca de Neve (pela referência aos anões): todas visitam a história que narra a visitação do amor para Antônio e Teresa, personagens centrais da visitação, mas sem existência efetiva não fosse a presença de dois duentes: o ana Nícolas e Fada. Desde a abertura esta delicadeza já se mostra:
Como é que eu posso contar a história de Antônio? Afinal de contas ela já está escrita na memória das pessoas, com a caligrafia do silêncio e é tão fácil acreditar como não acreditar. Preciso de palavras quase silenciosas, notas suspensas na página que criem uma melodia arpejada e todos sejam convidados a escutar. Talvez se eu conseguisse juntar os fatos como se juntam os sons e as pausas numa pauta musical, aí sim, eu estaria realmente escrevendo a história de Antônio.
Nascido de pais que já desistiam de ter filhos, Antônio vem ao mundo chorando lágrimas coloridas (uma metáfora para dizer que o mundo mais complexo do que o preto no branco) e sobrecarregado por uma alergia ao perfume das flores. E para atar enredos, seus pais tinham precisamente uma floricultura, que seguindo os novos gostos do Pequeno Reino, foi se transformando num lugar de venda de flores artificiais (aqui, uma metonímia para dizer da desvida que se implantou no Pequeno Reino).
No batizado, a bruxa-fada, sem ser convidada, aparece e lhe fala ao ouvido: desde então ele escuta demais, como diz a ama Dor (este nome é escolhido a dedo, pois a vida levada a cozinhar, a limpar e a atender uma família sem ter família própria é dor sem fim, mas paradoxalmente é de um amor sem fim, daí jogo linguístico ama+Dor).
Antônio cresce sonolento, num mundo em que a música (alegria) vai desaparecendo até que se torna censurada por lei não se sabe de quem, mas por lei. Abolida toda e qualquer possibilidade de música, o anão Nícolas (outra personagem mágica dos contos de fada e dos picadeiros), violinista, perde seu modo e razão de vida, sem possibilidade de fazer soar sua sinfonia “A cantora que tricotava a voz”.
Na adolescência, Antônio conhece as exigências da sexualidade. Não era bonito e gracioso como os príncipes que viviam em reinados flutuantes nos tempos imemoriais […] provocava nas meninas do Pequeno Reino algumas exclamações […] ele queria chegar até elas e esperava intuitivamente que um dia a sua audição anunciasse a melodia dos corpos que estreitam as mais lindas ligações.
E será com Mirabel que seu encontro se dará e do qual saem ambos felizes, ele porque era bom ser homem e ela porque gostou demais de ser mulher. Mas ainda não era a visitação do amor.
Enquanto isso, no Pequeno Reino se vai impondo outro regime: emerge o medo da música (medo da felicidade? do socialismo? ambas leituras são permitidas aqui). Era preciso silenciar a música. A União Masculina e Feminina pela Moral e os Bons Costumes se encarregou de trazer casos vergonhosos de pessoas que perdiam o juízo por causa da música. E toda a população passou a acreditar nesta narrativa que, hoje, diríamos que se tornou “hegemônica” naquele reino (como se tornou hegemônica no Brasil da ditadura passada e vem se tornando hegemônica a ditadura do presente). Com a censura à música, muitas pessoas passaram a ter problemas: muitos acidentes, muitas mortes (qualquer semelhança com a realidade política do Brasil da ditadura militar não é coincidência, é objetivo). O silêncio se impôs.
O rádio, a televisão e um auto-falante instalado no centro da praça faziam chamadas de quinze em quinze minutos avisando a população. A partir daquele dia era expressamente proibido tocar ou ouvir o menos movimento melódico porque entre os diversos malefícios da música o pior era deixar as pessoas soltas no ar.
As notícias sobre os perigos da música passaram rapidamente de pessoa para pessoas e os casos contados eram tão horríveis que muita gente apertou os lábios e chegou a tapar os ouvidos, com medo de ser atingido por uma nota e voar.
Antônio que tinha o dom da escuta de todos os sons tornou-se sonolento e infeliz. Quando os últimos pássaros abandonaram a cidade, uma profunda sonolência tomou conta de toda a população.
Nícolas, o anão violinista foi diminuindo de tamanho, mas encontrou o caminho subterrâneo (certamente chamado pela União Cívica de “caminhos da subversão”): cavava um buraco cada vez mais fundo.
Nestas alturas da narrativa, cai do céu que por lá limpava estrelas: Tereza. Toda mulher por quem nos apaixonamos “cai do céu”, e cai pertinho da gente quando a gente a encontra! Assim foi com Antônio: Tereza cai em seu quarto (ou seja, invade-lhe a vida como invade a vida qualquer visitação do amor).
Tereza e Antônio se conhecem, se tornam amigos e se tornam namorados e se tornam amantes. Tereza conhece Nícolas e passa a ajudá-lo, todas as noites, na construção do buraco que se vai tornando corredores subterrâneos (o tão temido mundo “subterrâneo” das ideias). Antônio adere ao trabalho. E depois do trabalho, vão ao lago azul (uma referência ao livro A Lagoa Azul, de H. de Vere Stacpoole?), e eis a delicadeza da visitação do amor:
Numa noite em que Antônio e Tereza escavaram até tarde, os dois saíram da caverna cobertos de barro e resolveram tomar banho num dos lagos ainda azuis. Andaram até o horto padecendo de fome e cansaço, sentindo umas contrações no corpo que doíam um pouco e davam um certo prazer.
Antônio olhou Tereza e avistou um porto iluminado no seu olhar. Tereza pegou as mãos de Antônio e sentiu umas ondas tão quentes que pareceram a circulação sanguínea da paz. Primeiro ela tirou a roupa, depois ele ficou completamente nu. Como a brisa da noite atiçava todos os segredos do corpo, eles correram por entre os galhos até se ferir. As folhas passavam por eles e roçavam a pele, provocavam alguns arranhões. Algumas ficavam grudadas no corpo e depois se soltavam com o vento carregando pequenos sinais de sangue e suor. Pareciam roupas que iam se desprendendo dos corpos como as diversas camadas de uma paixão.
E o buraco foi crescendo, quando atingiu 10 metros, começaram a perfurar o espaço na linha horizontal, formando uma caverna (uma referência à caverna de Platão); e cada vez mais pessoas a eles se juntam. Os exilados do Pequeno Reino retornam e trazem novas forças para a construção labiríntica subterrânea. E tanto cresceu a caverna que começaram a aparecer fendas no asfalto, nas ruas, nos mais inesperados lugares (o sistema começou a ruir?).
Por fim, chega a Fada e ela se tornará a maestra que conduzirá a execução da grande sinfonia da liberdade…
E diferentemente dos contos de fada, Tereza se vai para o céu… e Antônio compreende que o amor e a visitação do amor não significam necessariamente “viveram juntos para sempre”: o mundo está aberto a muitos amores e muitas paixões.
O livro faz parte da coleção “Contexto Jovem”, e nada melhor do que a delicadeza para dar conta deste tempo da vida jovem em que o amor nos visita e permanece para sempre em nossos corpos e em nossas memórias. Ao mesmo tempo, esta novela não esquece que a visitação do amor se dá num contexto mais amplo em que se vive coletivamente. Daí a metáfora contando a história do país que, depois da luta contra a ditadura, se abria para a liberdade e a paixão. Quando este livro foi escrito, estávamos começando a redemocratização!
Referência: Jorge Miguel Marinho. A visitação do amor. Uma história mágica em Dó Maior. São Paulo : Contexto, 1987.
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