Enganam-se os que pensam que a greve das professoras e do professores do estado do Rio Grande do Sul, iniciada há alguns dias, só diz respeito às famílias cujos filhos estudam nas escolas públicas. Em todas as sociedades mais desenvolvidas que a nossa, a base para o desenvolvimento econômico está alicerçada sobre a qualificação do sistema público de ensino.
Dois exemplos de sociedades que, recorrentemente, voltam à vitrine dos louros educacionais e econômicos: Finlândia e Coreia do Sul. Sociedades muito diferentes entre si, mas que tiveram avanços extraordinários nos últimos anos, estabelecendo-se como economias sólidas e cenários sociais com grande desenvolvimento.
O incremento orçamentário e a valorização da educação pública foram fundamentais para que esses países se desenvolvessem e se destacassem no cenário internacional. Lições difíceis de serem aprendidas por governantes que seguem cartilhas ortodoxas e ultrapassadas de que é preciso destruir a coisa pública para que o setor privado se fortaleça e, como consequência, a economia se desenvolva.
Trágico cálculo para um estado no qual sobram discursos sobre o sistema prisional e faltam sobre o sistema educacional. Há 5 anos o RS padece desta demência. Não se criam vagas e cursos nas escolas, não se investe na Universidade Estadual, congela-se e parcela-se o salário do magistério e, efetivamente, não existe política educacional.
A educação pública figura nas falácias dos palanques eleitorais, porém não compõe os arranjos governamentais e os projetos de desenvolvimento. Tratada como problema, é despotencializada de seus recursos mais preciosos e que poderiam gerar frutos inequívocos para o desenvolvimento econômico, social e cultural do estado, exatamente pelo desenvolvimento da inteligência de nossos meninos e meninas, crianças, jovens e adultos.
Foi a inteligência humana que nos permitiu, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico deste tempo histórico e que desfrutamos em todas as esferas da vida. E não é outro o lugar em que esta inteligência se desenvolve senão a escola pública, gratuita, universal e de qualidade, feita por profissionais que precisam ser elevados a mais alta estima da sociedade.
O oposto do que acontece nestes tristes pampas. Triste ver jovens governantes, velhos em ideias e mortos em ideais por um desenvolvimento social mais justo. Mais triste serão as consequências para todos e todas. No horizonte uma decrepitude civilizatória, uma sociedade emburrecida e manipulada, despossuída das rédeas de seu destino, despossuída de patamares elevados de cultura e ciência.
Como escreveu Ernest Hemingway, não pergunte por quem os sinos dobram, eles dobram por ti. A greve do magistério do Rio Grande do Sul é um grito de socorro, não individual, embora as condições de trabalho e salário estejam completamente aviltadas, é um grito de socorro por toda sociedade gaúcha que nem sequer se dá conta do abismo que se abre com a destruição da educação pública
Esta biografia de Marcel Proust, publicada originalmente em 1986, foi traduzida por Isabel do Prado, para a coleção Vidas Literárias de Jorge Zahar Editor (publicação brasileira s/data).
Todos sabemos em “Em busca do tempo perdido”, esta obra prima da literatura, contém muito de autobiográfico e que inúmeras personagens deste retorno a um passado perdido foram montadas com base em pessoas com que o autor conviveu.
A vantagem esta biografia é fazer precisamente esta correlação entre o que viveu Marcel Proust e as personagens de seu romance. De modo que acompanhamos ao mesmo tempo a vida nos salões pelos quais passou Proust, somos apresentados às pessoas de seu círculo e de seu tempo, e logo o autor da biografia faz correlação com um dos volumes da obra máxima do biografado.
Há um ponto de vista defendido: Proust era um excluído, quer por não ser da ‘casta’ aristocrática dos salões, quer por sua origem judaica – ainda que endinheirado – quer por sua homossexualidade. Ser aceito, ser recebido pelos salões de fim de século produziu esta impressão de esnobismo: sua persistência em alcançar as mais altas rodas da Sociedade – “embora, na verdade, esses círculos não fossem mais tão rigorosamente exclusivos como ele os retrata; a Alta Roda, ano a ano, se tornava mais complacente”.
Daí uma idealização desta Sociedade, um tempo perdido que se deveria buscar. Por isso também Proust sempre preferiu o passado. Num fim de século que começava a ver circularem cada vez mais automóveis, em que a energia elétrica chegava às casas, em que aeroplanos sobrevoavam os ares, “alguns respiravam de alívio, e outros viviam na expectativa”. Havia um futuro a desvendar; ao invés de se aproximar deste futuro, Proust retorna ao passado, constrói uma Sociedade idealizada de salões, de festas, e de tipos humanos que ficarão para sempre na história: eis sua grandeza. Ao buscar o passado, criou Albertine, o Barão de Charlus… e se projetou para o futuro. É verdade que “Não é possível julgar com certeza o que um autor coloca de si mesmo num livro, mesmo quando ele próprio o confirma, pois não sabe o que faz inconscientemente”. Em suas obras, Proust colocou sua experiência condensada em ficção. Se o tempo roubou a velha realidade, ela lhe sobrevive como memória, como lembrança: “Em todas as esferas da vida, o encanto, na verdade, transforma-se em desencanto. Só a lembrança, e só a lembrança preservada na arte, se salva”.
Segundo o biógrafo
Na sua busca para desvendar o mistério do Tempo, Proust joga com as mágicas convicções que a maioria das pessoas conhece: a certeza prazeirosamente concebida de que todo o passado é dourado, ou que todos os verões de antigamente eram sempre ensolarados e a misteriosa desconfiança de que um jardim secreto foi avistado um dia, e nunca mais foi reencontrado, e essa sensação estranhamente satisfatória do “já-estive-aqui-antes”, quando nos encontramos num lugar nunca anteriormente visitado; e toda a nostalgia do som resumida numa frase: “como é potente a atração da musica”.
Proust reconstruiu um tempo desejado fixo, e descobre ao construir que nada é fixo, que as pessoas mudam constantemente, que as paisagens se tornam outras, que os espaços vão sendo ocupados de formas distintas. Ao se perguntar sobre o sentido da vida, ele nos faz também nos percebermos outros a cada vez que nos perguntamos. E que somente uma fixação livre pode existir: o passado lembrado registrado como arte. E estando aí, registrado, sua imobilidade se move continuamente a cada leitura e para cada leitor.
Referência. William Sansom. Proust. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, s/data (original de 1986)
Os dísticos populares mais velhos e antigos da história dos seres humanos são a revelação e a evidência, a prova da sabedoria de quem não teve o acesso aos estudos da filosofia e da ciência – direitos reservados à elite.
Os dísticos populares são o conhecimento ao alcance do conhecimento comum – das massas populares. Este conhecimento se constituiu até hoje como arma das massas populares contra os espertalhões autointeligentes, que se perpetuam no poder – ditadura do comando político e do capital – às custas da apropriação criminosa dos bens comuns de todos.
A riqueza e a beleza da linguagem dos dísticos populares está na revelação da verdade em suas múltiplas formas estéticas e éticas na arte da combinação das palavras. Estas, as palavras, sempre prenhes de sentidos e ideologias.
A multiplicidade de formas, maneiras de inventar, de dizer, de produzir e de enunciar a multiplicidade de interpretações – falsas, parcial e totalmente verdadeiras – da vida material são imprescindivelmente contraditórias. Nunca há uma única e verdadeira-científica interpretação dos fatos, dos acontecimentos, das circunstâncias que constituem a materialidade da história real – mundo escrito e mundo não-escrito. Deparamo-nos incertos e inacabados diante da infinitude de interpretações sem limites.
Porém, sempre há uma interpretação mais consistente e profunda dos sentidos e dos significados dos fatos materiais.
Assim, utilizando uma linguagem variada livre na escala do senso comum, dizemos:
– “Quem não deve, não teme”, é um dístico verdadeiro. E se invertido na sua forma, continua verdadeiro. Assim:
– “Quem não teme, não deve”, tem o mesmo sentido e a mesma verdade dos fatos reais? E quando falamos de outras formas:
– “Quem teme, porque deve”.
– “Quem deve, teme”.
A verdade é confirmada de diversas formas de linguagem.
Agora, se examinarmos os fatos políticos de apavoramento nos últimos dias da família bolsonarista, na ótica destes dísticos, seremos embebedados por quais sensações? Porque tanto medo, tanto favor e temor diante das informações e revelações de contas sigilosas no Banco Central e na Receita? A revelação de contas sigilosas seria uma prova cabal de crimes dos apavorados? Seria uma prova pública, visível contra os que tem rabo preso? E obstruir impiedosamente a revelação destas contas já não seria uma prova mais que cabal de crimes?
E mais, se a política é a multiplicidade, a totalidade dos atos e das relações públicas em disputa pelo bem estar de todos, indistintamente e sem privilégios de poucos, porque manter em sigilo atos políticos? A visibilidade dos atos políticos não seria o grande e imprescindível valor ético, legal, jurídico da política?
A determinação do presidente do Supremo Tribunal, Toffoli, para que o Banco Central e a Receita passassem a ele todos os relatórios financeiros e todas as representações fiscais gerou medo e reações dos políticos envolvidos em processos criminais!
O procurador-geral do governo Bolsonaro, Aras, obedecendo ordens do imperador pai e dos herdeiros filhos, pediu que Toffoli revogasse a determinação – “demasiadamente interventiva”. O que é isso? Mas, Toffoli não obedeceu a ordem bolsonarista.
O fato é o seguinte: todos aqueles que movimentaram mais riquezas do que conseguem provar a origem legal de tanto dinheiro, bens e capital, estão se pelando, se borrando de medo frente a revelação dos dados sigilosos de suas contas bancárias.
Fica uma última pergunta: porque será que os corruptos e os criminosos organizados não querem – não permitem e destroem fatos e documentos! – mostrar às claras suas contas bancárias, sua amizade e suas relações com as forças milicianas?
Foram-se os tempos em que o candidato Jair Bolsonaro mandava perguntar para o Paulo Guedes… Foram tantas as vezes que mandou perguntarem ao mago das finanças, que ele ganhou apelido: “Posto Ipiranga do Bolsonaro”. Não deve ser fácil a vida de um PIB: respondendo sem ter respostas, sem saber sequer que o orçamento público é elaborado num ano e executado noutro.
Mas o Paulo Guedes sabe muito, sobretudo, ele sabe a quem quer beneficiar. E sabe que tem um tempo para se beneficiar.
Desde que o estilo gestão CEO se tornou também a gestão da coisa pública, assistimos a estes desastres. Quando um novo CEO assume uma empresa, ele sabe que precisa responder com lucros imediatos para agradar aos acionistas, aos capitalistas que o colocaram na posição privilegiada de CEO. E então encurta prazos de projetos, corta custos e salários – para elevar seus próprios rendimentos. Em nome da ‘melhoria’ de qualidade, muda rótulos de produtos, diminui a quantidade e aumenta os preços. Se em cada potinho de iogurte ou cada litro de óleo comestível ele fizer o programa de retirar 0,1% do conteúdo ninguém notará, mas os resultados aumentarão. E aumentar os resultados nos balanços é o que garante sua permanência e também o valor do seu percentual sobre os lucros.
Pode fazer algumas coisas pouco decentes: se ele assumiu, por exemplo, uma empresa de telefonia, pode fazer um programa de ofertas de 100 ligações gratuitas em uma hora. O cliente é premiado com o que não vai usufruir, mas os ‘custos’ serão registrados como gastos de publicidade, descontados do lucro líquido, diminuindo impostos sobre lucros, e com isso aumentando lucros. Uma espécie de caixa-2 empresarial, suponho.
Nas contas bancárias, um débito de R$ 1,00 em nome de qualquer taxa terá no máximo 10% de clientes reclamando. Os outros 90% deixarão por isso mesmo… e o banco lucra milhões. Afinal, é de grão em grão que a galinha enche o papo dirá o CEO.
Mas isso tudo é parte da gestão. Pedro Parente a aplicou na Petrobrás, dizendo que seu compromisso era com os acionistas. Obviamente esquecendo que o maior acionista da Petrobrás é o povo brasileiro. Mas brasileiros, para CEOs, não existem. Existem acionistas. Não foi por acaso que Pedro Parente doou aos acionistas norte-americanos alguns milhões de dólares… tanto que até daria uma sobra de 2,5 milhões de dólares para a Fundação do Dallagnol, uma espécie de gorjeta sobre a qual a juíza Gabriela, aquela plagiadora, decretou sigilo e autorizou a transação.
Paulo Guedes sabe disto tudo. E apoia, afinal há que gerir com boa gestão os negócios. E Paulo Guedes sabe muito mais:
– ele sabe que políticas públicas criadas com base nestes desvios, no futuro criarão impasses na vida da população, como mostram os chilenos depois de 30 anos de modelo “CEO” de gestão;
– ele sabe que Portugal somente saiu da recessão econômica quando abandonou a receita neoliberal que aplica por aqui;
– ele sabe que os capitalistas são insaciáveis – como ele próprio é insaciável como mostrou na gestão de fundos – e que é preciso alimentar a goela dos tubarões para não ser engolido por eles;
– ele sabe que o neoliberalismo produz miséria, fome e desemprego no mundo inteiro, mas os balanços registram lucros extraordinários a cada semestre;
– ele sabe que toda esta riqueza de papel é virtual, não corresponde a bens materiais, mas isso não importa. A única coisa que não imaterial é a forme, a miséria, a pobreza, mas isso é consequência salutar do sistema.
E por tanto saber, Paulo Guedes resolve:
1. Roubar ¼ do salário dos servidores públicos municipais, estaduais e federais;
2. Roubar 7,5% do salário desemprego (seria cômico se não fosse trágico).
Mas Paulo Guedes sabe que para passar seus roubos ou taxas sobre a grande pobreza terá que pagar, e pagar muito bem, os membros da “base aliada” no Congresso. E pelo ralo se vai o dinheiro roubado dos pobres que devem pagar a conta: afinal nossos capitalistas precisam dos lucros para continuar suas vidas nababescas nos melhores lugares do mundo, onde vivem longe desta miséria e violência que constroem por aqui através de seus agentes, isto é, de seus CEOs.
Realmente, vivemos tempos muito sombrios! A inocência é loucura.
Uma fronte sem rugas denota insensibilidade.
Aquele que ri ainda não recebeu a terrível notícia que está para chegar.
Que tempos são estes, em que é quase um delito falar de coisas inocentes. Pois implica silenciar tantos horrores! Esse que cruza tranqüilamente a rua não poderá jamais ser encontrado pelos amigos que precisam de ajuda?
É certo: ganho o meu pão ainda, Mas acreditai-me: é pura casualidade. Nada do que faço justifica que eu possa comer até fartar-me. Por enquanto as coisas me correm bem (se a sorte me abandonar estou perdido). E dizem-me: “Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!”
Mas como posso comer e beber, se ao faminto arrebato o que como, se o copo de água falta ao sedento? E todavia continuo comendo e bebendo.
Também gostaria de ser um sábio. Os livros antigos nos falam da sabedoria: é quedar-se afastado das lutas do mundo e, sem temores, deixar correr o breve tempo.
Mas evitar a violência, retribuir o mal com o bem, não satisfazer os desejos, antes esquecê-los é o que chamam sabedoria. E eu não posso fazê-lo.
Realmente, vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem, quando reinava a fome. Misturei-me aos homens em tempos turbulentos e indignei-me com eles. Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
Comi o meu pão em meio às batalhas. Deitei-me para dormir entre os assassinos. Do amor me ocupei descuidadamente e não tive paciência com a Natureza. Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros. A palavra traiu-me ante o verdugo. Era muito pouco o que eu podia.
Mas os governantes Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero. Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
As forças eram escassas.
E a meta achava-se muito distante. Pude divisá-la claramente, ainda quando parecia, para mim, inatingível. Assim passou o tempo que me foi concedido na terra.
Vós, que surgireis da maré em que perecemos, lembrai-vos também, quando falardes das nossas fraquezas, lembrai-vos dos tempos sombrios de que pudestes escapar.
Íamos, com efeito, mudando mais freqüentemente de país do que de sapatos, através das lutas de classes, desesperados, quando havia só injustiça e nenhuma indignação.
E, contudo, sabemos que também o ódio contra a baixeza endurece a voz.
Ah, os que quisemos preparar terreno para a bondade não pudemos ser bons. Vós, porém, quando chegar o momento em que o homem seja bom para o homem, lembrai-vos de nós com indulgência.
Deforges foi uma mulher de grande atividade no ambiente francês: além de romancistas, ela foi a primeira mulher a dirigir sua própria editora. Neste romance, iniciado em 1974 e finalizado em 1978, segundo as datas que a autora coloca no fim do volume, ela enfrenta a questão do preconceito social às sexualidades diferenciadas.
Suas personagens, Léone e Mélie, podem ser as protagonistas do enredo, mas a personagem principal, efetiva, é o preconceito violento, tal como eclode numa pequena cidade do interior.
Léone é filha de uma família de classe média baixa, vive na cidade e estuda no colégio das freiras. Adolescente de quinze anos, mantém uma relação com sua colega Mélie, cuja casa frequenta. Esta, no entanto, é filha de família bem situada na cidade, com nome e mais dinheiro. Este aspecto, que fica subentendido ao longo do enredo, no entanto será uma marca, porque somente sobre Léone cairá a fúria das beatas e do machismo dos jovens da cidade.
Como grande número de adolescentes, Léone escreve um diário. São cadernos de capa dura, que vai preenchendo com suas impressões, suas reflexões, sua dúvidas, suas angústias e também com as informações e fuxicos do que acontece na cidade. Tem certeza que seu “diário” está seguro e que ninguém o lerá. Mantém-nos numa caixa fechada à chave, e guarda esta num vaso de flores artificiais, crente que ninguém a descobrirá.
Nas férias de verão, num baile, Alain, o estudante de fora, já com 19 anos, vem passar as férias. E num destes bailes típicos do interior, ele arrasta Léone para dançar e diz para uma estupefata adolescente:
– Você resiste inutilmente. Você gosta da mão dos homens e não a das garotas. Tudo em você at4rai o macho e você sabe disso. Jean-Claude e seus coleguinhas sõa muito tolos e muito jovens para compreendê-la. Você foi feita para trepar assim como outros foram feitos para ser acrobatas, paraquedistas, mães de família, párocos ou boas moças, mas você é feita para gozar como uma boa putinha que é. Não percebeu que estou de pau duro, sua galinhazinha?
Está dado o mistério: como Alain, recém chegado, faz referência a “mãos de garotas”? Que lhe contou Jean-Claude de um dos encontros a dois, em que as mãos do menino a levaram ao êxtase?
Irritada com a ofensa, Léone volta para casa e vai direto a seus cadernos: estão todos lá. Nele os registros de seu desejo de realização sexual com algum homem que fosse digno, que soubesse como fazer… Assim, o diário é ao mesmo tempo do registro do que vive e do que sonha viver um dia. E na fala de Alain ela detecta algo…
Mais tarde descobrirá: sua irmã mais nova, Catherine, havia descoberto o segredo, lera os cadernos e emprestará um deles para outro adolescente: Yves. O caso entre Léone e Mélie se torna público e elas se deixam ver namorando, se beijando, assumindo a relação.
E um dos cadernos de Léone desaparece definitivamente: sua recuperação será o enredo de toda a história. Alain está com ele; mostra-o ao Abade C., que faz queixa na polícia por atentado ao pudor. Está desencadeado o processo da violência do preconceito. Serão inúmeros os episódios de violência, de ataque, de xingamentos por que passará Léone (mas não Mélie!).
Ao longo da narrativa de cada saída, de cada passeio de sua heroína, dos encontros do seu pequeno grupo de amigos adolescentes, tudo ficará marcado a partir daí pelo fato de Alain ter o diário roubado… Ele marca até uma leitura do diário num bar da cidade, com hora marcada e todos os requintes da crueldade. Léone vai ao bar, tenta recuperar o diário e recebe socos, pontapés e xingamentos… Yves a encontrará mais tarde jogada numa valeta da cidade.
Os pais de Léone, no entanto, nada fazem, não esboçam nenhuma reação. Ao contrário, o pai viaja para trabalhar no exterior e a mãe ali permanece para enfrentar o escândalo de uma filha lésbica. (Ninguém chamará Mélie de lésbica, de puta, de vagabunda…).
Depois de muitas peripécias, recusas, surras, a mãe de Léone consegue um acordo com a mãe de Alain e com ele próprio: viriam até a casa de Léone e entregariam o diário desde que ela prometesse jamais se encontrar com Mélie e queimasse todos os outros cadernos.
Somente então Léone se submete – e morre por dentro. Logo após, o pai que estava trabalhando na África, reúne por lá a família… E o final da história é Léone, a mãe, a irmã maligna e o irmãozinho no avião indo embora da pequena cidade do interior francês.
O enredo pode não ser relevante – embora a gente leia o livro de um só fôlego levado por esta história de violência. Mas o preconceito e suas formas de emergência, o machismo cultural e a vida interiorana onde tudo se faz e tudo se esconde, mas todos tudo sabem.
Tratar do tema não é algo fácil: lesbianismo x preconceitos. As reações do entorno, os sofrimentos de Léone, a solidão a que é conduzida levam qualquer leitor/leitora a pensar duas vezes em assumir seus desejos.
No entanto, a revolta que produzem no leitor os atos preconceituosos amena esta possibilidade. Mesclando a revolta do leitor às reflexões de uma jovem adolescente e curiosa e inteligente, fazem deste pequeno volume um romance que vale a pena ler.
Referência. Régine Deforges. O diário roubado. Tradução de Jaim Rodrigues. 2ª. ed. Rio de Janeiro : Record, 1998.
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