Que medo vocês têm dele (e de nós). Terceirizemos os serviços jurisdicionais

Que medo vocês têm dele (e de nós). Terceirizemos os serviços jurisdicionais

Depois do julgamento do TSE impugnando o registro da candidatura de Lula à presidência (e ao gosto barrosiano, do aparecimento de sua imagem na campanha!!!), constatamos o óbvio e ululante.

Não pensem que estou pensando que o golpe abriria as pernas. Não! Nem o judiciário comandado por D. Carmen, da casa da intolerância, haveria de fazer isso. Manteria o combinado, o desejado: afastar de qualquer forma o indesejado do golpe. E indesejado porque ele poderia acender alguma luz de esperança de que este país poderia – como já pôde por breve espaço de tempo – ter alguma independência, ter algum valor no concerto das nações. Não, nada disso pode! É preciso barrar estas possibilidades deste “povinho de merda”, como eles pensam e dizem, se arvore povo de uma nação.

Então tivemos o resultado esperado. Uma “derrota” de Lula que será cantada em prosa e verso pela Rede Globo e outras incenseiras do golpe: agora o país se tornará “confiável” e o “investidores” podem tomar conta. O Judiciário brasileiro garante.

Mas o óbvio e ululante que brilha neste momento, depois da reunião plenária da Casa da D. Carmen Lúcia, é que sendo permitido terceirizar tudo, o governo (do Bolsonaro? Do Picolé de Chuchu – afinal, o judiciário deve decidir de uma vez por todas em quem devemos votar) poderia terceirizar os serviços jurisdicionais. Se todas as atividades-fim podem ser terceirizadas, então uma das atividades-fim do Estado pode ser terceirizada: os serviços jurisdicionais de que precisam ser prestados.

Com a decisão da terceirização de tudo e com a decisão barrosiana do TSE, juntando uma com a outra, está na hora de pensarmos uma campanha pela terceirização dos serviços que prestam a polícia (federal, em particular), as procuradorias (em geral e sem restrições), os juízes, os desembargadores, os ministros.

Note-se: serviços de segurança privados existem aos montões. Assim, terceirizar o que faz a PF estaria dentro do desejado pelo mercado. As procuradorias, tendo se tornado absolutamente contrárias a qualquer direito social, e tendo se especializado em powerpoint das convicções a que chega com base nos indícios sem provas, poderão ser facilmente terceirizadas, com grandes vantagens: haveria uma economia enorme por não ser mais necessário pagar penduricalhos sobre os altos salários. Os juízes, os desembargadores, os ministros: todos seriam contratados através de empresas fornecedoras de serviços. E estas nem precisariam se preocupar na seleção dos seus cooperadores: não precisam ser especialistas em nada. Poderão exercer as funções apenas perguntando à Rede Globo, porta-voz do “mercado”, onde de fato estão os patrões, o que decidido deve ser. Nem precisam criar argumentos nem revestir suas falas de juridismo. Isto de lei, de obediência às leis, isso tudo é coisa do passado, coisa destes retrógrados petistas. A lei é ditada no momento pelo interesse maior da manutenção da livre circulação de capitais. O resto é bobagem destes esquerdistas que acham que ainda é necessário pensar em construir uma sociedade de homens e mulheres.

Também estes são dispensáveis. Tendo cumprido seus papeis de consumidores, podem ser jogados na cesta do lixo. O importante é manter a renda, a renda, senhores. E se para mantê-la e fazê-la crescer é preciso terceirizar, terceirizemos os serviços de prestação jurisdicional… afinal, tudo o que é privado é melhor… Ficarei com pena daquela que é um poço de ódio contra Lula, aquela que diz que o Brasil não tem cidadãos, apenas “jurisdicionados”, a chefe geral da Casa. Vai perder o cargo, mas que fazer? Afinal, ela esteve na linha de frente para que tudo fosse terceirizado!!! Vamos terceirizá-la, minha gente, para atender ao que ela tanto deseja. Afinal, jurisdicionados não devemos nós nos comportar como cordeirinhos de cabeça baixa?

Arroz de Palma, de Francisco Azevedo

Arroz de Palma, de Francisco Azevedo

O carioca Francisco Azevedo escolheu um gênero já clássico para nos contar esta comovente saga familiar: as memórias do narrador, em que não se trata de trazer a história individual na forma cronológica do que lhe aconteceu, mas recuperar aos saltos e por episódios um passado, um presente e futuro. Aliás, esta “terreníssima trindade” num homem só que é três nos tempos que percorreu, percorre e percorrerá acompanha sempre as reflexões de Antônio, filho de José Custódio e Maria Romana, este narrador cozinheiro que todo o leitor acompanhará aos sobressaltos, comovido pelas histórias e pelo arroz da felicidade que acompanhou a família por 100 anos.

Os portugueses José Custódio e Maria Romana casam-se em Viana do Castelo, em 1908. Casamento de gente pobre mas não lhe faltou a chuva de arroz na saída da capela. Palma, irmã de José Custódio, recolhe todo o arroz e dá ao irmão como seu presente de casamento. São 12 quilos recebidos com desprezo pelo noivo, mas guardados pela noiva em cumplicidade com a cunhada. Quando a situação do casal chega à miséria da falta do que comer, migram os três para o Brasil, e aqui José Custódio arruma primeiro emprego provisório, mas logo se fixa como empregado da fazenda Santo Antônio da União. Vindo da aldeia, José Custódio sabe que tem dois caminhos para a sobrevivência que expressa numa fórmula metonímica: ou seria bom em cálculos (profissão técnica) ou bom de conversa (profissão de serviços). Prefere a segunda e na fazenda progride tornando-se o capataz, de fato o administrador, com direito à amizade com a família dos proprietários, Sr. Avelino e D. Maria Celeste, pais de Isabel.

Na fazenda nascem seus quatro filhos – Antônio, Nicolau, Leonor e Joaquim. Infância e juventude na fazenda, todos os filhos em torno dos 20 anos saem de casa: eles vão para o Rio de Janeiro; ela casa-se com um empregado da Fazenda, Sebastião, e ganham dos pais um sítio em Minas onde farão sua vida.

Dentre os três filhos homens, Antônio será personagem central na saga familiar: chegando ao Rio logo encontra emprego numa confeitaria, progride, torna-se chef, junta dinheiro e funda seu próprio restaurante, num sobrado bem situado que ganham de casamento dos pais e sogros, pois se casa com Isabel, a filha dos fazendeiros e patrões de seus pais. Progride e acumula riqueza. Os outros dois irmãos não seguem o modelo: Nicolau permanece empregado da confeitaria, emprego que lhe arrumara o irmão; Joaquim vai para São Paulo e com um amigo fundam em sociedade um bar, de que viverá. Malandrão e mulherengo, terá inúmeras “esposas”… São temperamentos totalmente distintos: Antônio, concentrado, econômico, e ao mesmo tempo sonhador; Nicolau, conformado, vida no que vem do cotidiano sem alardes; Joaquim, mulherengo e boêmio.

Há no enredo dois elementos essenciais: um material representado pelos doze quilos de arroz, repicado pela quarta cadeira, a cadeira da Tia Palma, que foi reconstruída como presente com os restos da cadeira que José Custódio, num acesso de raiva, havia quebrado porque estava ali, à beira da mesa, sem que ninguém a ocupasse, isto é, ainda sem filhos. Quando o primeiro dos filhos nasce, quis o pai agradecer à tia Palma com algum presente, e ela lhe pediu que consertasse a cadeira e esta se tornará outro símbolo material que acompanhará a família e se tornará elemento de decoração da mesma casa dos bisavós que Bernado (filho de Rosário e neto de Antônio) ocupará com Susan (a menina que Nuno e Andrew adotaram).

O outro elemento é metafórico, com que o narrador Antônio sempre se referirá à família como um todo, e que provém de sua profissão de chef e dono de restaurante: “a família é um prato de complexa elaboração”, que aparece já na capa do romance como uma espécie de epígrafe que permanecerá por toda a narrativa, e a encerrará: “família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete”. Assim, a metáfora abre a narrativa e a encerra. No meio, toda a saga familiar tal como a expõe Antônio, aquele que recebeu dos pais, como presente de casamento, o arroz que Tia Palma recolhera lá em Viana do Castelo e que se tornou um arroz mítico.

A construção mítica do arroz tem muito a ver com o modo de ser e viver de Tia Palma, que tem sonhos e adivinha realidades outras do mundo do invisível. E a materialização destes invisíveis aparece quando o casal começa a se estranhar e Maria Romana não dá filhos a José Custódio. Propõe então Palma a sua cunhada: façamos um pouco do arroz, ele é milagroso, dará força a José Custódio e a você. E assim, comido o arroz, vem a cada vez os filhos… tanto que há um consumo de 4 quilos. Sobram 8 quilos que serão dados como presente de casamento para Antônio e Isabel, um presente que envergonhou os demais irmãos que não acreditavam no mito, que surpreendeu Antônio e encantou Isabel e seu sogro face à história que com ele vinha junto.

Um pouco deste arroz derramado no colo de Isabel, quando o casal namorava à beira do lago pequeno da fazenda produz seu segundo “milagre”: a primeira relação sexual antes mesmo do casamento. O arroz torna-se, portanto, símbolo da felicidade! Guardado pelo casal num pote de cristal, enfeitará a vitrine do restaurante. Como símbolo, também despertará a cobiça dos demais irmãos, movidos principalmente por Leonor que acaba criando a desavença familiar e a separação, por longo tempo, entre todos eles, cada um levando sua vida, distantes, para tristeza dos pais José Custódio, D. Maria Romana e a Tia Palma.

Antônio e Isabel tiveram filhos gêmeos: Nuno e Rosário. Eles representarão, na história, as novas formas de constituição familiar. Nuno viaja para Paris e vive 1968; retorna para dizer que viverá no exterior e que vive com Augusto. Eis o diálogo:

– Não, não estava, meu filho. Minha Paris não é a Paris das barricadas. Não. Minha Paris é a Paris dos cafés, de Piaf, Chevalier e Montand, dos passeios de braços dados. Chacun avec sa chacune..

– Minha Paris são essas aí e também a de Danny le rouge, das batalhas do Quartier Latin, e outras tantas, incontáveis. Chacun avec sa chacune, chacune avec sa chacune, chacun avec son chacun! Voilà!

–  Não entendi a graça nem o que você quer dizer com isso.

[…]

– Não, eu ainda não entendi. Gostaria que você fosse mais claro.

Desarmado, Nuno se expõe. Desde menino. É assim e pronto. Sua adaptação da expressão francesa – que para mim sempre serviu para designar os variados tipos de casais que andam pelas ruas de uma cidade – sai sem querer e acaba abrindo nosso difícil diálogo ou, para ser mais preciso, nosso difíceis monólogos. […] Sem demonstrar um pingo de fragilidade, olhando em meus olhos o tempo todo, Nuno me explica como começou a se envolver com as manifestações estudantis, as ideias políticas, o contato com as drogas, o cima de liberdade sexual entre os jovens e, por fim, para me deixar zonzo e nocautear, a sua amizade e o seu relacionamento com Augusto, um rapaz de 20 ano como ele.

– É isso, meu pai.

[…]

Por seu turno, como se fosse o avesso, Rosário apaixona-se por um militar, um brutamontes do DOPS, com quem se casa, rompendo assim as relações com o irmão. O casamento durará dez anos e somente depois da separação que os irmãos se reencontrarão e reatarão amizade, quando Nuno, ator, já vive em Nova York e mantém um relacionamento estável com Andrew.

Penso que estes dois casamentos distintos representam para Antônio, não sem que esse fique atordoado e nocauteado, as formas outras de constituir e desfazer famílias, sem a “eternidade” dos relacionamentos a que a geração de seus pais e a sua geração estava conformada, agindo nos conformes, ainda que relações extraconjungais possam acontecer: Antônio narra uma delas, que surpreende o leitor, porque é um encontro casual e amoroso precisamente com sua cunhada, a mulher de Nicolau, com quem haviam rompido relações precisamente porque, acreditando no milagroso arroz, Amélia havia roubado alguns grãos do pote no restaurante… e foi flagrada por Isabel e para apaziguar os ânimos, o sempre conciliador Antônio teve que intervir: acabou o caso, mas um abismo se abriu entre os irmãos, entre as duas famílias, o que não impediu a atração física num encontro único e casual, mas que ficará impresso para sempre na memória de Antônio.

Toda história nos é contada como memórias enquanto o velho cozinheiro prepara um grande almoço: aos 100 anos do casamento dos pais José Custódio e Maria Romana e aos 100 anos do arroz de Tia Palma, toda a grande família se encontrará na fazenda, onde já vive o agora já velho casal Antônio e Isabel, ele com 88 anos. Enquanto prepara a comida da festa, na cozinha, é que ele vai rememorando tudo, na forma de episódios que saltam anos, que cronologicamente se confundem, num vai e vem entre o passado, o presente da comida que vai fazendo, e o futuro que sonha com a presença dos 96 convidados que serão distribuídos em 12 mesas de 8 pessoas em cada uma delas. Todos virão com todos os seus, incluindo Joaquim com sua nova namorada, uma velhota octogenária como ele! E todos comparecem. E Nicolau faz discurso; e Joaquim e Leonor falam juntos. Todos recordam e todos se empanturram: o arroz de tia Palma foi cozinhado e trouxe felicidade distribuída entre todos.

Por fim, todos já retornados a suas vidas, o último episódio é novamente na cozinha (sempre a presença da metáfora culinária):

Eu aqui na fazenda. Eu aqui na cozinha, quatro e pouco da manhã. Isabel ainda dorme, o sol ainda demora… Não queria largar meu corpo caído assim. Mas quem sou eu para poder levar ele comigo? Que credenciais? Fiz o que pude, pronto. Creio na ressurreição da carne, na vida eterna, amém? O universo me parece simples e fácil como número de mágica que fascina. Sou elefante e louva-deus, sequoia e flor-do-campo, cordilheira e grão de sal, oceano e poça de chuva. Minha alma começa a ventar e nem sei o que me espera. De repente, os cacos desabam e formam o inesperado desenho, Para que então tanto cuidado? Melhor é apreciar os cenários: riacho que corre, gente que pisa no cascalho, fogo que arde, madeira que estala, respirações variadas e, de repente, um bater rápido de asas. É a vez do coral, eu sei. As vozes dos animais! A alma rosna, urra, uiva, grita, relincha e muge. Depois zumbe, trina e gorjeia…

Então se descobre que o espírito é quem está narrando. A sereníssima e terreníssima trindade do passado, presente e futuro num só corpo acabou: : Antônio está morto. Mas a história, como monumento, é presente que a alma nos dá, comovendo e nos removendo.

Porque saga familiar, o enredo poderia ser comparado ao de outras famílias de imigrantes portugueses: uma família que chega, uma família que se desdobra em muitas outras famílias, que se separa e que muito raramente se junta. Aqui, no entanto, há uma materialidade representada pelo “Arroz de Palma” mito e imagem, símbolo da simplicidade a que a vida poderia se resumir. O arroz, como se sabe, está sempre presente em qualquer refeição, banquete ou mesa cotidiana, servida na cozinha. É esta presença do arroz que traz encantamento ao que é uma saga comparável a outras. E há também a metáfora: família e prato de comida. Assim como o prato deve ser preparado, cozido, arrumado, a família é também o que se constrói, o que se faz, o que se prepara com o mesmo esmero e cuidado, para que não queime, para que o descuido não deixe desandar. O sabor é construído com ingredientes múltiplos: não está dado, é cuidadosamente elaborado. Como a família: se cada ingrediente individualmente tem sua existência, o conjunto somente pode ter sabor se cuidadosamente construído.

Por fim, é preciso salientar: ao narrar a saga, Antônio reflete o tempo todo. E alguns destes pensamentos encontram uma formulação tão perfeita que permanecem como enunciados disponíveis a novas enunciações. Retiro aleatoriamente algumas passagens que dão o tom do que é o todo deste narrar comovente e iniciemos com a proposta de diálogo que faz o narrador dirigindo-se a seus leitores, com perguntas que uma compreensão responsiva nos obriga à reflexão:

E você? É, você mesmo, que me lê os pensamentos e veio aqui me fazer companhia. Como saiu no algum de retratos? O mais prático e objetivo? A mais sentimental? A mais prestativa? O que nunca quis nada com o trabalho? Seja quem for, não fique aí reclamando do gênero ou do grau comparativo, Reúna essas tantas afinidades e antipatias que fazem parte da sua vida. Não há pressa. Eu espero. Já estão aí? Todas? Ótimo, agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados. Logo, logo, você também estará cheirando a alho e a cebola. Não se envergonhe se chorar. Família é prato que emociona. E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza. (p.11)

O jardineiro cuida do jardim. O mato toma conta. O que prefere o jardim? A memória do jardineiro que cuida ou a liberdade do mato que toma conta? Eu cuido da mente. O esquecimento toma conta. O que prefere a mente? A memória do velho que cuida ou a liberdade do esquecimento que toma conta? A memória pode ser bela, mas pesa, eu sei. O esquecimento é leve. Pode até ser alívio. Tantas histórias de família e de amigos se predem. Para sempre? Para sempre. Nunca mais? Nunca mais. É triste? Muito. Para sempre e nunca mais são medidas de tempo que me amedrontam e, às vezes, entristecem. A memória afetiva do mundo vai se apagando, enquanto os dados do planeta cabem todos no computador. Não há nada que você possa fazer, Antônio. É assim e pronto Cada morte, seja lá de quem for, é acervo riquíssimo de experiências e sensibilidades que se queima. O incêndio é bom, é útil, é necessário? (p.73)

… quem leva adiante o que ouviu já estabelece um novo diálogo. […] Quantas cores no diálogo? Quantos tons? (p. 93)

… na vida ou no palco, é preciso sempre estarmos atentos à fala e ao silêncio do outro. Há o tempo para sermos o foco das atenções, há o tempo para estarmos em segundo plano. (p.101)

Criadores de nós mesmos, nos inventamos e reinventamos sem trégua, diariamente. A cada experiência, boa ou má, nasce um outro eu de nossa própria autoria. […] Por instinto e vocação, todos nos concebemos, nos rascunhamos, nos passamos a limpo e nos apresentamos em público na versão que menos falha ou mais convincente. (p.107-108)

Eu menino, ela me nina. Cantigas sem letras. Adormecemos, berço de casal. (p.117)

 

Referência. Francisco Azevedo. Arroz de Palma. Porto : Porto Editora, 2013 (edição brasileira pela Record)

Descrição da língua e ensino da língua (1)

Descrição da língua e ensino da língua (1)

ROMBO NO NACIONAL CHEGA A R$ 7,5 BI

(Manchete da FSP de 06.07.96)

PC ESCONDEU US$ 400 MI PELO MUNDO

(Manchete do ESP de 07.07.96)

Para uma sociedade escandalizada com o esquema PC, que movimento US$ 1,2 bilhão, cuja elite, no entanto, justifica R$ 7,5 bilhões para apenas um dos grupos de banqueiros, não há ciência e reflexão capazes de apontar caminhos, se a indignação ética contra as elites dominantes não ocupar grande espaço de nossas paixões.

 

O título desta exposição, ao apontar para duas das principais tarefas que a Linguística se propõe, é suficientemente amplo para a defesa do ponto de vista que pretendo discutir e que pode ser resumido no seguinte enunciado: “no mundo letrado brasileiro, a linguística foi chamada a justificar-se para ter direito à existência”. Duas podem ser as perguntas a conduzirem a reflexão: Que práticas sociais de reflexão sobre a linguagem eram predominantes para poderem impor que uma ciência se justificasse (e se justifique) para existir? Que respostas aqueles que praticaram a praticam a pesquisa linguística têm dado a esta exigência externa que lhes impuseram as práticas letradas brasileiras?

Obviamente, meu objetivo não é responder a estas duas questões, já que elas demandariam um estudo de sociologia da cultura brasileira e, ao mesmo tempo, um verdadeiro balanço da pesquisa e reflexão dos últimos trinta anos. Como se sabe, embora recente em termos históricos, a inclusão dos estudos linguísticos nos cursos de Letras do Brasil, tal como os entendemos, ocorre na década de 60, e desde então os linguistas não só sustentaram polêmicas internas (no embate entre diferentes teorias e correntes) e externas (com o “mundo das letras” e com o espírito normativo do ensino da língua), mas também produziram um considerável conjunto de informações, descrições e explicações a propósito da língua portuguesa falada e escrita no Brasil. Bem mais restrito é o objetivo: tentar trazer alguns elementos de reflexão para possíveis respostas à primeira pergunta e apresentar alguns dados a propósito da segunda.

  1. Admitindo com Foucault (1970) que “a disciplina é um princípio de controle da produção de discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras”, “aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados”, impossível não recuperar polêmicas do final do século passado e início deste para traçar os laços que sustentaram (e ainda sustentam) a produção de enunciados a propósito da língua no mundo letrado brasileiro. Inúmeros intelectuais brasileiros envolveram-se na discussão a respeito da colocação correta do pronome oblíquo deste enunciado – afinal, “envolveram-se” ou “se envolveram” parecia ser uma questão crucial. São conhecidas as polêmicas a respeito do dialeto brasileiro ou brasilianismos (Macedo Soares, João Ribeiro) ou da redação do Código Civil (João Ribeiro, Rui Barbosa, Ernesto Carneiro, Clóvis Bevilácqua), ou ainda a polêmica sobre a questão da colocação de pronomes entre Paulino de Brito (gramático paraense) e Cândido de Figueiredo (gramático português). Mas não esqueçamos que a Constituição de 1988 foi revisada por gramáticos contemporâneos e que a imprensa continua a espinafrar estudantes e vestibulandos sempre que a ocasião se oferecer. Parece existir em nossa cultura uma regra fundante daquilo “que é requerido para a construção de novos enunciados” sobre a língua: qualquer enunciado deve proferir um juízo de valor (certo/errado) segundo uma regra gramatical específica.

A conquista humana do domínio da técnica da escrita, alargando incomensuravelmente, no tempo e no espaço, os horizontes de nossas possibilidades interativas, e por isso mesmo da constituição de nossas consciências, deflagrou também todo um projeto de gramatização (Auroux, 1991). Foi necessário fixar uma ordem à desordem resultante do alargamento possível. E a escritura erigiu-se historicamente como o espaço da ordem e do limite dos sentidos.

Ao labirinto das produções fluidas da oralidade sobrepõe-se com a escrita o esforço de decifração da ordem, da construção do imutável. E antes mesmo que a escrita se torne tecnicamente acessível àqueles que habitam as periferias das cidades e do poder, a escritura construiria uma cidade letrada, o “anel protetor do poder e o executor de suas ordens: uma plêiade de religiosos, administradores, educadores, profissionais, escritores e múltiplos servidores intelectuais” (Rama, 1984:43).

Como realizar semelhante proeza, se a escrita trabalha com a linguagem, objeto essencialmente mutável, sujeito às precariedades singulares dos acontecimentos interativos? Somente o exercício do poder, reservando a uma minoria estrita o acesso ao mundo da escrita, permitiu a façanha da seleção, da distribuição e do controle do discurso escrito, produzindo um mundo separado, amuralhado, impenetrável pra o não convidado. E de dentro destes muros, uma função outra agrega-se à escrita, como se lhe fosse própria e não atribuída pelo poder que emana de seus privilegiados construtores e constritores: submeter a oralidade à sua ordem, função jurídica por excelência, capaz de dizer o certo e o errado, ditar a gramática da expressão, regrar os processos de negociação de sentidos e orientar, através de suas mensagens uníssonas e uniformes, os bons caminhos a serem trilhados.

A sociedade só pôde ser assim construída, sob o império de uma separação radical, a partir de uma estrutura de exclusão. Sob qualquer das formas com que se organizaram politicamente o Estado e o Poder, soube a cidade letrada estar próxima, adequar-se às circunstâncias (Rama, 1984). Observando sempre sob o ângulo da produção da escritura, Rama aponta, ao longo desta história de convício com o poder, uma cidade que foi ordenada, foi escriturária, foi modernizada. Politizou-se e pode ser revolucionária. A cada momento, diferentes feitos históricos, mas sempre uma constante: a capacidade paradoxal de, ao mesmo tempo, expandir-se para as periferias supostamente acolhendo novos convivas e manter a distância das distinções: erudito x popular; culto x não culto; alfabetizado x analfabeto. Pelo prisma letrado, ao outro sempre se atribui uma falta.

Mas a escrita populariza-se e em se popularizando, torna-se heterogênea e outros artefatos verbais somam-se às clássicas bibliotecas. Manifestos, panfletos, poemas, páginas soltas, graffitis, orações, agendas, almanaques, cópias, paródias, paráfrases: o universo de discursos escritos expande-se, vulgariza-se, circula e faz circular sentidos.

Imagine-se, portanto, o escândalo para o mundo letrado quando a Linguística inicia seus discursos sobre as variedades linguísticas, inclui entre as manifestações linguísticas dignas de estudo a oralidade, eleva panfletos e textos de somenos importância a categoria de “gêneros” e, sobretudo, quando define que “aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados” exclui qualquer julgamento entre o certo e o errado.

  1. No que concerne à segunda questão, relativamente às respostas que vem oferecendo a Linguística àqueles que lhe impõem justificar-se para existir, é na área do ensino de língua materna que vamos encontrar a maior contribuição dos linguistas. Em estudo anterior manuseando um conjunto de 52 teses e dissertações, do período de 1980 a 1996, a propósito do ensino/aprendizagem de língua materna (Geraldi, 1996), constatei três grandes tendências da pesquisa: (1) uma tendência migratória do tema para a área de Letras, especialmente para a Linguística e a Linguística Aplicada; (2) há sensível redução dos trabalhos que, inspirando-se em teorias linguísticas e/ou educacionais, apresentam propostas definindo como o ensino deve ser ou que se dedicam ao estudo de produtos para a escola e da escola (livros didáticos, redações, livros paradidáticos, programas de ensino); (3) há uma predominância de trabalhos que analisam experiências de modo que hoje o que se encontra sob escrutínio é a prática escolar de ensino da língua.

 

Referências bibliográficas

Auroux, Sylvain (1992). A revolução tecnológica da gramatização. Campinas : Ed. da Unicamp.

Figueiredo, Cândido (1928). O problema da colocação de pronomes. Lisboa : Livraria Clássica Editora, 5ª. edição.

Foucault, Michel (1970). A ordem do discurso. São Paulo : Edições Loyola, 1996.

Geraldi, João W. (1994) “Políticas de inclusão em estruturas de exclusão. In. Simpósio Internacional sobre a Leitura e a Escrita na sociedade e na escola. Brasília, Anais, Belo Horizonte, Fundação AMAE, P. 65-78.

_______________ (1996) “A prática escolar sob escrutínio”. Texto apresentado em mesa-redonda do VIII ENDIPE, Florianópolis, maio de 1996.

Rama, Angel. (1984) A cidade das letras. São Paulo : Brasiliense.   

 

 

Nota

  • Estando na presidência da ABRALIN a colega Maria Denilda Moura, da Universidade Federal de Alagoas, convidou-me para participar do encontro nacional da Associação, que ocorreu no contexto da 48ª. Reunião Anual da SBPC. Foi minha primeira e única participação em evento da ABRALIN. Tratava-se de fazer uma conferência, de curta duração. O texto dela foi publicado no Boletim da Associação, n. 19, dezembro de 1996.
Quem elege o presidente?

Quem elege o presidente?

Estamos em tempos espetaculares e tediosos de campanhas políticas eleitorais para presidente do Brasil. O grande consolo é que estas encenações acontecem apenas de 4 em 4 anos. As imagens de rostos maquiados e espetacularizados pela televisão, as falas proclamadas em tom de discursos verdadeiros e salvadores, exibidos na televisão, nos jornais e nas revistas, causam a impressão assustadora de que temos no Brasil várias fábricas e indústrias supermodernas de discursos políticos, projetados e fabricados estrategicamente para as campanhas eleitorais. É o velho, desgastado princípio positivista: dizer uma coisa na teoria para fazer o seu contrário na prática.

No lugar de planos, programas, projetos e ações de governo para o bem do Brasil e de todos os brasileiros, os candidatos, de maneiras diferentes e paradoxais, proclamam promessas de extremo e profundo valor humano material, social, educacional, cultural de interesse para o povo brasileiro – estrategicamente para as camadas sociais das classes mais pobres e mais numerosas – com o fim único e último de arrecadar os votos dos eleitores. Os candidatos de ideologias conservadoras de direita e mais emponderados, quando não fabricam os próprios discursos, por ignorância e incompetência intelectual argumentativa, compram discursos sob medida, encomendados aos intelectuais orgânicos da própria classe social e membros ou eleitores dos partidos de que fazem parte, ou ainda, correligionários dos partidos com os quais firmam sacrossantas e amorosas alianças.

Via de regra, de maneira muito descarada e camuflada reivindicam o privilégio e o direito à irresponsabilidade. Quando eleitos, podem e precisam dizer que não irão fazer o que prometeram, senão a verdade se torna inimiga deles. Por conta disso, não dizem o que pensam e não fazem o que dizem.

Assim, a política se converteu em mercadoria industrializada – artigos de consumo. Os presidentes, os governadores, os prefeitos, os senadores, os deputados e os vereadores são eleitos pela televisão, pelos jornais e pelos espetáculos musicais, por conta de quem é mais empoderado.

Nada melhor, porque verdadeiro, o escrito de Eduardo Galeano para dizer sobre o papel da televisão na formação do mundo que temos.

“A democracia é de um luxo do Norte. Ao Sul é permitido o espetáculo, que não é negado a ninguém. E ninguém se incomoda muito, afinal, que a política seja democrática, desde que a economia não o seja. Quando as cortinas se fecham no palco, uma vez que os votos foram depositados nas urnas, a realidade impõe a lei do mais forte, que é a lei do dinheiro. Assim determina a ordem natural das coisas. No Sul do mundo, ensina o sistema, a violência e a fome não pertencem à história, mas à natureza, e a justiça e a liberdade foram condenadas a odiar-se entre si” […] “A televisão mostra o que acontece? Em nossos países, a televisão mostra o que ela quer que aconteça; e nada acontece se a televisão não mostrar. A televisão, essa última luz que te salva da solidão e da noite, é a realidade. Porque a vida é um espetáculo: para os que se comportam bem, o sistema promete uma boa poltrona”. (Eduardo Galeano. O Livro dos Abraços. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2018).

Nós, os eleitores e as eleitoras, precisamos assumir um compromisso coletivo de todos e com urgência: educar e formar políticos que dizem o que pensam e fazem o que dizem. E é claro, formar eleitores e eleitoras conscientes, que primeiro escolhem, depois votam. E não somente votam.

Tomem cuidado senhores candidatos e senhoras candidatas, porque nem todos os brasileiros e nem todas as brasileiras nos encantamos com os discursos de vocês.

Há tanto, a irritação é tanta, mas Gabeira nos leva às gargalhadas …

Há tanto, a irritação é tanta, mas Gabeira nos leva às gargalhadas …

Há tanto voto para Lula. Há tanto voto 13, que o golpe arriou as calças e está de cócoras.  Seus dois candidatos explícitos, Geraldo Alckmin, conhecido como picolé de chuchu, amarga índices inferiores aos dois dígitos – ele que era para estar na cabeça! O segundo candidato, aquele que resmunga e não fala, responsável pela política econômica do governo e cujo bastão, pensavam eles, seria entregue a Pérsio Arrigo, pois este só se ouve que é candidato porque resmunga…

Então, fazer o quê? Ou o mercado abandona seus “queridinhos” e fecha questão com o fascismo – até que gostaria de ver o “príncipe dos sociólogos, o estadista de Higienópolis, pedindo votos para o fascismo brasileiro a mando do mercado!!!

Mas o mercado tem outra saída, e logo veremos isso começar a acontecer: Marina Silva, a madrinha da floresta, a voz mansa e inaudível. Mais uma vez ela se prestará ao serviço que vem executando nas eleições presidenciais: ser inflada, no passado para haver segundo turno (porque nunca foi levada a sério mesmo, a não ser pelo Banco Itaú); agora será inflada para que haja uma candidatura possível para o tal centro-direita, antigamente, muito antigamente, liderado pelo PSDB, partido que se encontra à beira do túmulo: já morreu, só falta enterrar.

Enquanto a mídia tradicional e hegemônica, a mídia de poucas famílias e de capilaridade exuberante, está censurando a população que não deve saber, segundo esta mídia, a agenda da candidatura do PT, que não deve saber quais suas propostas para recuperar o país, esta mesma mídia abrirá seus canhões: para se salvar, precisa elevar a floresteira do passado, a inefável Marina Silva para o segundo turno.

O problema é: com votos de quem? Dos que votam em Lula? Marina já perdeu todo o respeito dos eleitores de esquerda… ninguém confia nela. Nem os votos do PSOL, que detesta Lula, serão dela. Então não virão votos deste setor; neste território a banda da mídia tradicional não terá colheita.

Esperam somar as intenções de voto dos nanicos: Geraldo Alckmin, Álvaro Dias, Amoêdo. Mas todos juntos ajuntam um percentual minguado… Mas no salvemo-nos da mídia golpista, há que somar tudo, multiplicar o somado para ganhar do candidato do PT, seja Lula, seja Haddad que seguramente estará no segundo turno.

Mas o trabalho hercúleo a fazer é afastar o candidato do fascismo, aquele que representa mais claramente, mais explicitamente a cara da elite brasileira: escravocrata, racista, machista e dona do estado. Acontece que este monstro que se escondia agora foi despertado por esta mesma mídia e não quer voltar a sua toca, não quer mais ser uma massa de manobra da centro-direita de discurso melífluo e todo empenado, com bicos longos. Acabou este namoro! A elite está na rua e tem seu representante nestas eleições.

Como fazer? Que fazer? E agora? Nem com o Supremo e tudo a mídia conseguirá retirar os votos destes brucutus do passado para transferi-los à candidata que vão tentar inflar…

Fazendo a campanha do Lula, vamos rir muito deste esforço desesperado da mídia para que não haja o confronto que se anuncia: ou o Brasil se civiliza com a esquerda representada por Lula-Haddad, ou se brutaliza na monstruosidade de suas elites com a eleição.

E já temos o primeiro motivo para boas risadas: o convite do candidato fascista a Fernando Gabeira para ser ministro de seu governo. Um sucesso enorme, uma caminhada sem volta: do sequestro para o calção de crochê, do calção de crochê à bicicleta ecológica, para as fotos com o MBL e daí, num salto, para o ministério do desejado… Lacerda em seu túmulo se coça de inveja. Nem ele, tão preparado, conseguiu sair da esquerda e se tornar tão confiável para a extrema direita. Gabeira é um sucesso.