O uso como lugar de construção dos recursos linguísticos

O uso como lugar de construção dos recursos linguísticos

Desta vez, em lugar do texto, um pedido. Não disponho mais dos originais deste texto! Nem o exemplar da revista em que foi publicado: Espaço Informativo Técnico Científico do INES, 8, Rio de Janeiro, MEC/Instituto Nacional de Educação de Surdos, 1997:49-54.

Assim, publico o título e a indicação com um pedido: se alguém conhecer o texto, se tiver à mão a revisa e puder me enviar, ficarei grato. A republicação de meus textos aqui, como “textos de arquivo” teria a função de juntar a todos os textos publicados como capítulos de livro, como artigos em revistas ou em anais de eventos. Foram poucos os textos que publiquei em Anais… e agora, neste olhar retrospectivo, fico-me perguntando a razão!

Nesta espécie de “arqueologia” que venho fazendo nas notas dos textos que aparecem aqui como uma espécie de “coluna fixa” do blog, o que lembro sobre este O uso como lugar de construção dos recursos linguísticos, tem a ver com duas questões que colocava para o pessoal de LIBRAS.

  1. Se LIBRAS realmente poderia se tornar a língua materna, a primeira língua de filhos surdos de pais ouvintes. Na época, achava que os pais, antes mesmo de descobrirem a surdez do filho, já se comunicavam com ele. E que quando descobriam a surdez, um pouco mais tarde, começavam a construir com o filho uma linguagem de gestos: marcados pelas circunstâncias, variando de família a família. Se posteriormente os pais aprendiam LIBRAS e passavam a se comunicar com o filho em “Língua Brasileira de Sinais”, imaginava que esta já seria uma segunda língua, aprendida. E que muitas das dificuldades de seu uso em tais famílias tinha a ver com este “idioleto” próprio que haviam criado através do uso.
  2. Eu tinha uma curiosidade muito grande: como a linguagem de sinais marcava a dêixis – pessoa, lugar, tempo. Como nas línguas naturais conhecidas, estas marcas que remetem diretamente ao entorno, ao contexto (embora formalmente a semântica resolva isso através de diacríticos de “entradas”, o que é uma solução formal mas não prática), e o preenchimento das referências variam segundo quem diz, quando diz e em que lugar diz (a situação de enunciação sendo tomada como ponto de partida da construção dos sentidos), eu queria saber como isto era marcado por gestos. Lembro que na época me explicaram que tudo isso está presente na linguagem de sinais e que a dêixis não oferece qualquer problema para o sistema da língua.

Quanto à primeira questão, penso hoje que é uma posição que pode ser radicalizada: a língua materna seria aquela que aprendemos desde o berço e com a qual o bebê se comunica com a mãe ou com os adultos próximos, cujos recursos expressivos são as tonalidades e intensidades dos choros; os olhares (que mostram, por exemplo que a criança reconheceu ou não quem está perto; ou que mostram sua ‘aceitação’ para que o adulto se aproxime); os sorrisos… enfim esta gama de recursos que se expressam também vocalmente e que variam muitíssimo de relação à relação entre adulto(mãe)/criança. Talvez a verdadeira língua mãe seja precisamente esta que perdemos à medida em que vamos aprendendo o que temos chamado de “língua materna”, aquela do nosso entorno com que muito cedo começamos a substituir os balbucios da verdadeira língua mãe! Talvez no final da vida, é a essa língua que efetivamente retornamos…

Quanto à segunda questão, certamente uma língua de sinais não seria uma língua se não dispusesse de fórmulas para indicar o tempo, a pessoa, e o lugar. De modo que minha dúvida de então era mesmo a dúvida do desconhecimento.

O artigo que perdi, não sei, talvez trate disso. Ou talvez eu não tenha tido coragem de colocar no papel o que pensava em relação à língua materna efetiva de todos nós: aquelas que perdemos.

VOTO – ARMA PODEROSA. SEMPRE?

VOTO – ARMA PODEROSA. SEMPRE?

En la lucha de clases

Todas las armas son buenas

Piedras

Noches

Poemas

….

O poema de Paulo Leminski é uma arma poderosa. Linda. O voto do eleitor é arma poderosa. O voto na democracia é justo. É direito de todos, independentemente de classe social, cor, raça, nível cultural… O voto é igual para todos e de todos, tem o mesmo poder para todos. Vale um. Razão imprescindível para as eleitoras e os eleitores terem um cuidado impecável, consciente no ato de votar – atribuir o voto aos candidatos. Principalmente quando muitos partidos políticos e candidatos são uma porcaria nojenta.

A desesperança na vida, gerada pelas crises econômicas, produzidas pelos políticos trambiqueiros, não é motivo justo para jogar a arma poderosa no lixo – votos em branco, anular o voto, não votar. Até pode ser um ato de protesto, ato de descrença na política, mas o voto nulo não ajuda, não contribui por si só a construir uma outra sociedade, uma sociedade democrática transformadora, viva, participativa, que todos queremos. Quer dizer, quase todos. Esse voto é arma poderosa jogada no lixo. Arma sem poder. Só beneficiará os candidatos que querem continuar no poder e governar a mando dos interesses dos cartéis do petróleo, das agências financeiras rentistas, da mídia poderosa e imperial.

Ah! – “O voto é livre”. Muitos proclamam com desdém e com malícia mal disfarçada. – “É preciso respeitar a liberdade de votar”, argumentam com deboche. Sim, mas que liberdade é essa? Pergunto eu. Aliás, Eduardo Galeano faz uma pergunta bem melhor que a minha. Pergunta Galeano: “é livre um homem condenado a viver perseguindo o trabalho e a comida”? Aí eu pergunto mais: é livre quem está sendo vigiado, filmado tempo todo e por todos os lugares – espaços abertos e fechados? São livres os professores e os alunos quando não podem falar, estudar, discutir política, partidos políticos, nas escolas?

Já faz muito tempo que estou inconformado com a descrença – talvez alienação – cada vez maior e mais profunda de cada vez maior quantidade de eleitores na política. Há uma crescente alienação cultural da política na sociedade brasileira. Mais uma vez vou recorrer a Eduardo Galeno para explicar melhor esta alienação.

“As fórmulas de esterilização das consciências são testadas com mais êxito que os planos de controle da natalidade. Máquinas de mentir, máquinas de castrar, máquinas de dopar: os meios de comunicação se multiplicam e divulgam democracia ocidental cristã junto com violência e molho de tomates. Não é necessário saber ler e escrever para escutar os rádios transistores ou olhar a televisão e receber o recado cotidiano que ensina a aceitar o domínio do mais forte e confundir a personalidade com um automóvel, a dignidade com um cigarro e a felicidade com uma salsinha”.

 

Essas estratégias de entretenimento diuturno – ocupar o tempo com programas medíocres de baixo valor cultural e humano – são prenhes de intenções ideológicos das classes dominantes para inculcar uma falsa cultura às massas populares. E assim, cooptar os votos nas eleições.

Isso até quando?

Extrema direita: eleições com Lula é fraude, eleições sem Lula é fraude

Extrema direita: eleições com Lula é fraude, eleições sem Lula é fraude

O vídeo do inominável seria apenas patético, não fosse realmente trágico para uma sociedade desacostumada à democracia. Acontece-nos que temos uma elite que continua a pensar o país como colônia, e como colônia sua. Lembremos: declarada a suposta independência, o herdeiro do trono da Metrópole se fez Imperador; antes de abdicar, manteve sempre portugueses colonizadores nos cargos da administração pública, o que se repetiu durante toda a regência (lembremos que muitas das revoltas de brasileiros – os cabanos, por exemplo – foram causadas pela indicação de colonizadores para a administração das províncias do Império nada brasileiro).

Nossa elite é a herdeira destes colonizadores que continua a achar que trabalhador é escravo e merece escracho. Deve permanecer pobre e, como os negros, saber o seu lugar!!! E quando se atreve, cadeia para eles. E mulher que fique no tanque e na cozinha!

O porta-voz desta concepção de Brasil é o Inominável Convalescente que nos brindou no domingo, recém saído da UTI, com um vídeo em que, ejaculação precoce, nos avisa que seu grupo prepara um golpe – o comandante das Forças Armadas o tratou com “um dos seus” na entrevista ao Estadão e seu vice já avisou que precisamos de uma nova constituição elaborada por notáveis nomeados por eles mesmos…

Como o Coiso já avisou que seus ministros serão generais (com exceção do Gabeira, convidado para ministro, que não é general, mas se esforça para prestar serviços às botas), e como o Coiso está assustado – a candidatura Haddad está recebendo com uma rapidez impressionante os votos que seriam do Lula – veio avisar: o Lula e o TSE estão de conluio para fraudar as eleições…

Fico imaginando a colegializada Rosa Weber, ajudante de campo do general Barroso, de conluio com Lula… Como estratégia, mandou o Barroso – não consigo deixar de lembrar a canção Meu boi barroso, meu boi pitanga, o seu lugar é lá na canga – impugnar a candidatura, determinou que Lula não pode falar e determinou que também ninguém pode dizer Lula… Faz parte, segundo o patético capitão, da estratégia de fraudar as eleições. Quem diria, o TSE da Rosinha…

Foi mais longe: todos os tribunais que condenam Lula estão no jogo, na estratégia de manipular os votos a cada 40 votos!!! As urnas eletrônicas foram feitas para isso, e sob a inspeção da Rosinha, darão vitória ao temido Fernando Haddad!

Se vivêssemos numa democracia plena, poderíamos rir achando que tudo é besteirol. Não é. O capitão tem generais nas costas… só que como porta-voz destes está muito afoito, medroso. Não pode perder. A extrema direita quando entra em jogo não é para perder, porque perdendo, dá golpe. E mais: justifica criando inimigos. Foram judeus para o grupo de Hitler, é o povo pobre para o dito Coiso.

Como o candidato do neofascismo à brasileira sabe que o povão está de saco cheio com o judiciário, bem pago, elitista e comprometido com quem tem dinheiro, que distribui penas para os pobres e benesses e solturas para os de sua classe, ele, o Inominável, jogou a culpa da fraude no TSE!!! Burro, não é. Aproveita a onda de revolta com o aumento de 16,45% que o judiciário se concedeu num tempo em que o povo faz biscates para sobreviver. Culpa Lula, culpa o TSE, culpa o judiciário.

Enquanto isso vai acontecendo, o guardinha da esquina, aquele temido por Pedro Aleixo, vice-presidente quando da promulgação do AI-5, já age como esbirro da ditadura, a prisão de uma professora que saindo de uma manifestação na Av. Paulista, vai para o jogo carregando sua faixa de Lula Livre. Eis sua denúncia na sua página do Face:

ESTE FOI O CRIME QUE COMETI: PASSEI NA MANIFESTAÇÃO DA AV. PAULISTA E DEPOIS FUI PARA O JOGO DO CORINTHIANS. MANDAR EU JOGAR MINHA IDEOLOGIA NO LIXO, PQ? NÃO É DROGA, É UMA ARMA CONTRA O FASCISMO E A MÁ ÍNDOLE. DEFENDO O MEU DIREITO DE IR E VIR. FUI PRESA, AGREDIDA E TIVE TORTURA PISICOLOGICA, PORÉM NÃO ABAIXO A CABEÇA QUANDO TENTAM TIRAR O MEU DIREITO DE FORMA TRUCULENTA E AGRESSIVA, POIS SE EU DEFENDO O MEU PRÓXIMO IMAGINE A MIM MESMA #LULA LIVRE”  (Professora Liliane Roque, presa no Itaquerão)

É o mundo do arbítrio que deseja o Convalescente… E está avisando: me elejam ou eu me elejo com meus ex-campanheiros de farda! De modo que agora temos um lema da extrema direita brasileira, que a classe média burra ama de paixão pensando que pertence à elite (incluindo o capitão e generais, pois endinheirados não deixam de ser classe média): eleições com Lula é fraude; eleições sem Lula é fraude. Na verdade o que querem dizer é: “eleições é fraude”, a não ser que elas conduzam ao Executivo e ao Parlamento quem decidimos que lá deve estar.

Para a geração que sobreviveu à ditadura de 1964, que foi calada pelo AI-5, que lutou pelas Diretas-Já, para esta geração avisos como este são recados. No caso, dados com antecedência. E as antecedências deles são temporalmente curtas.

PSDB: Madalena arrependida?

PSDB: Madalena arrependida?

O senador Tasso Jereissati vem a público para uma confissão: o PSDB foi de roldão, caindo de erro em erro. Primeiro, dados os resultados das eleições de 2014, quis recontagem de votos, quis o escarcéu… e entrou inclusive no STF pedindo a cassação da chapa Dilma/Temer. Depois, o PSDB participou com seus votos, na Câmara e no Senado, na aprovação das chamadas pautas-bomba de Eduardo Cunha, mesmo quando os projetos eram contrários às pregações do PSDB. Ou seja, confessa o senador – que também votou a favor destes projetos – que os parlamentares do partido agiram contra o país e a favor da desestabilização do governo legitimamente eleito.

Deu no que deu: Dilma Rousseff não teve um segundo mandato. Impossível, depois do que aconteceu por iniciativa do PSDB! E o partido, por unanimidade, votou pelo impeachment… Não só, FHC, o vaidoso e invejoso estadista de Higienópolis, foi um dos cérebros do golpe praticado em 2016. José Serra foi afoito ao golpe! Dizem que atualmente está “fora da casinha” – parece que foi internado, porque nunca mais se ouviu uma palavra do dito cujo, o que aparece na imprensa é sempre alguma notícia de mais um arquivamento de mais um processo contra ele, tudo a cargo do amigo Gilmar Mendes. Aécio não é gato morto: age e age muito nas Minas para eleger seu Apostasia, apóstolo do golpe. E tem dinheiro, todos vimos as malas de dinheiro… e o processo, graças ao voto da comadre D. Carmen, foi para as calendas gregas, que D. Carmen não brinca em serviço, ainda mais na casa da In-tolerância que presidiu até poucos dias.

Pois agora vem o ex-presidente da sigla, afastado da presidência pelo nefasto Aécio Neves, confessar os erros… Mas como se sabe, confissão somente tem valor que houver arrependimento. Haverá? Pode haver de quem como o Tasso entrou no barco de má vontade, desde sempre. Mas nada pode ser garantido em relação aos mais plumados, de bicos mais longos (inclusive para abocanhar mais que os outros). Serra está na dele, esperando o momento oportuno para vazar… Se é que já não vazou para os braços da filha Mônica, feliz da vida com os arquivamentos de todos os processos. Netos e bisnetos estão garantidos com os dinheiros nos paraísos fiscais e nos negócios da filha!

Mas eu torço e faço figa: ainda queria ver o FHC, o invejoso, o vaidoso, pedir votos no segundo turno para o representante do fascismo.  Seria o coroamento da obra do príncipe dos sociólogos, aquele que pensou que realmente era príncipe de alguma coisa: depois de mandar todo mundo esquecer o que havia escrito, agora poderá nos brindar com mais esta façanha: pedir votos e entregar santinhos do inominável, do acamado, do esfaqueado, do armado candidato da extrema direita, para onde nadou e continua nadando o Sr. Fernando Henrique Cardoso.

Ah! E para não dizerem que não falei das flores

Que entrevista aquela de sexta no JN! Não assisti porque não gosto de cachorros pittbull, e o pittbonner daria por lá suas acuadas e suas mordidas. Se saiu mal… se saiu mal… E olha que usou, junto com a parceira, quase todo o tempo da entrevista para falar contra o entrevistado e externar suas posições, afinal ele acha que o povo ainda não compreendeu o programa e governo da Globo para o Brasil. Então precisava de tempo para defendê-lo! Falou o que quis, ouviu o que não quis e teve que pedir desculpas pelo mau hábito de fazer manchetes mentirosas, escolhendo verbos do tipo “oscilou” em vez de “cresceu”, porque não admite que estejam, ele e seus comparsas, perdendo para o povo que tanto tentaram doutrinar!!!

Agora, é torcer para que o Haddad, eleito presidente, não cometa o erro da Dilma de lhe dar uma entrevista exclusiva..

De “Canção do exílio aqui”, de Moacyr Félix

De “Canção do exílio aqui”, de Moacyr Félix

Exilado  na certeza de que o capitalismo agoniza

   nos lençóis de petróleo em que apodrecem

cinco mil anos da história deste homem

que já foi etrusco, sumeriano, egípcio, judeu

grego e romano

e que agora lentamente morre

em toda a sua dimensão de séculos

e ainda sem os cantos elegíacos

que os poetas, no século XXI, entoarão

sobre os tempos em que foi também

inglês, norte-americano, russo ou chinês.

Exilado  portanto, na certeza ainda maior

de que inexiste uma sociedade justa

em qualquer parte do mundo.

Elixado  definição maior dos homens como ponte

para que uma sociedade assim exista um dia

redimidor de todas essas mortes nossas

com apenas sete palmos

porque cavadas neste chão de exílios.

Noite de espera, de Milton Hatoum

Noite de espera, de Milton Hatoum

Este é o primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio com a qual Milton Hatoum retorna às narrativas longas, ao romance, depois de um longo intervalo. E este volume promete uma trilogia que ninguém poderá perder de acompanhar.

A história de Noite da espera é narrada por Martim, já exilado em Paris. De modo que o movimento cronotópico leva ao passado que recupera o tempo em Brasília, e ao presente em que se enuncia a história e em que os fatos são rememorados.

Filho de um casamento desfeito sem que o narrador tenha conseguido, até aqui, descobrir as razões, exceto que sua mãe (Lina) desvelou: não posso continuar a viver com seu pai (Rodolfo) e o que se tornou público para a família, estava apaixonada por outro homem, um artista, com o qual passou a viver. Da família da mãe, há ainda um tio (Dácio), fotógrafo e artista marginal, além dos avós (avó Ondina – que jamais aceitou tanto o tipo de vida do filho quanto a separação da filha – e o avô que permanecerá não nomeado, nem mesmo na carta em que Lina diz ao neto que seu avô tinha falecido).

Com a separação, Martim não fica nem com a mãe nem com o tio Dácio, alegando ambos que não teriam condições de sustenta-lo; e nem com os avós, em Santos. Assim, ele acompanha o pai (Rodolfo, engenheiro) que se muda para Brasília.

Toda narrativa é cruzada por dois temas: 1. o sentimento de abandono que sofre o narrador perturbado com a sensação contínua de que sua mãe sofre: Por que minha sofre? Por que eu penso que ela sofre? 2. A situação política vivida por estudantes e intelectuais durante a ditadura militar, particularmente no período que vai de 1968 a 1977, primeiro ano citado na narrativa a partir de Paris.

Este jogo entre estar em Paris contando como aí vive e se narrar estando em Brasília, em tempos tão tenebrosos, perambulando entre o Centro de Ensino Médio e depois na Universidade de Brasília como estudante de arquitetura, primeiro como novato que conhece o grupo a que pertencerá por acaso, no pátio da escola, recolhido e tímido, a que chega um grupo de artes cênicas para um ensaio dirigido pelo Porf. Damiano Acante.

Martim vive com o pai porque estão ambos no mesmo apartamento, mas não há qualquer comunicação entre eles! O pai é para ele uma sombra; o filho é para o pai um estorvo que precisa suportar e a quem se dirige deixando dinheiro para compras e a mesada num envelope. Para se ver livre e independente do pai, Martim consegue um emprego de meio expediente na Livraria Encontro, na Galeria do Hotel Nacional, de propriedade de Jorge Alegre. Esta livraria, espaço não só de compra de livros, mas também de um auditório em que se projetavam filmes proibidos pela censura da ditadura, acabará sendo fechada pelas forças da repressão, sem que Martim consiga conversar com Jorge Alegre para saber o que se deu e onde ele está.

O ritmo do romance é veloz. Transita-se da Asa Norte à Asa Sul, transita-se de Brasília a Paris. E o leitor acompanha numa e noutra cidade as andanças de um personagem angustiado porque parou de receber cartas da mãe – foram poucas as que recebeu desde a separação dos pais – cujo paradeiro desconhece. O ritmo da narrativa tem suas pausas nestas reflexões sobre a mãe e nas cartas que o narrador recebeu dela e nas que para ela escreveu.

No segundo movimento, o que se acompanha é a emergência de um grupo de amigos procedentes de diferentes grupos sociais, todos reunidos no campus da UnB. Há uma filha de senador comprometido com a ditadura de que é um dos líderes (Ângela, mística e poeta); há o filho de uma doméstica que reside em Ceilândia, praticamente na miséria (Lázaro); há um Nortista (Lélio) que recebe mesada curta do pai e que namora Vana, sobrinha de uma suposta Baronesa (D. Áurea) que vive das graças dos políticos, reunindo em seu apartamento tanto a situação quanto a oposição, ambas em busca do que ela oferece e que um militar (Zanda) traz de Manaus escondido em latas de doces, pó que o Nortista ajuda a distribuir aos consumidores do campus; Fabius, filho de um embaixador (Faisão) perseguido pela ditadura e recolhido de seu posto e estacionado em Brasília sem função alguma [“Vários diplomatas foram desligados do Itamaraty, meu jovem. Políticos e tecnocratas ocupam postos importantes na Europa e no mundo todo. Nossa diplomacia foi assaltada por esta gente”]; Dinah que namora Lázaro, mas que também namora Martim (o narrador), uma militante de esquerda filha de dois economistas engajados e defensores da direção que dá a ditadura ao “desenvolvimento econômico” brasileiro.

Financiados pelo embaixador Faisão, o grupo funda uma revista “de literatura e artes”, a Tribo. Nela publicam poemas, traduções de poetas franceses e norte-americanos, textos de literatura e sobre a literatura. Mas constantemente fugindo de tratar do que vinha acontecendo efetivamente no país, para crítica de Lázaro, talvez o militante político mais aguerrido do grupo, além de Dinah.

Quando o pai de Martim sai do apartamento para ir morar na Asa Sul, em novo apartamento, Martim vai viver com o Nortista, próximo ao campus da UnB, num quarto que este aluga de um casal de idosos. Desde então a questão de sobrevivência passa a estar presente no cotidiano de todos (com exceção de Ângela, Dinah e Fabius, todo o resto do grupo e outros colaboradores da revista, vivem o aperto nosso de cada dia).

Quando a repressão aparece explicitamente contra todo o grupo, o quarto do Nortista e de Martim é invadido pela polícia; eles ficam sem ter onde morar. O Nortista passa a viver na sede da revista Tribo, em que nem há chuveiro para um banho; por uma semana Martim passa a viver na casa de Fabius, num convívio constante com o embaixador Faisão que a estas alturas começa a ter problemas mentais causados pelo ostracismo e pela perseguição promovida pelo Itamaraty.

Num final de semana em que os pais de Dinah (os economistas) saem de Brasília, ela convida Martim para ficarem juntos no apartamento por três dias. Foram os três dias de amor… e por causa do amor, Martim se atrasa para uma reunião de edição da Tribo. Chove torrencialmente em Brasília, mas ele se dirige ao encontro atrasado, e ainda a um quarteirão vê as luzes acesas mas também o camburão para o qual estão sendo levados todos os seus amigos.

Retorna por desvios ao apartamento de Dinah, onde recebe um telefonema da Baronesa que lhe diz que as coisas não estão nada fáceis, que estava trabalhando para encontrar os prisioneiros, que havia contratado advogados e insiste que Martim deixe a cidade. Providenciou um carro Simca Chambord que o levou até uma praça de Goiânia, onde ele esperou anoitecer para comprar uma passagem e seguir de ônibus noturno para São Paulo…

E por aí se encerra esta primeira etapa de uma narrativa que se prolongará nos próximos dois volumes da trilogia. Como sempre, Milton Hatoum envolve o leitor que não consegue largar o livro enquanto não chega a seu final. E espalhadas ao longo da história, inúmeras passagens que exigem uma parada para reflexão.

Comecemos pelo fim, quando Martim está no ônibus para São Paulo: “Fugir é uma aprendizagem”. Ou ainda, pouco antes quando ele percebe que Dinah já não se encontra na cama em que dormiam: “Com a idade, máscaras diversas vão cobrindo o rostos das pessoas, até que uma, definitiva, não se descola mais da pele e dos olhos”.

No Bar Beirute, reunida a turma, à queima roupa, pergunta-lhe Ângela: “Com que rima a sorte, Martim? Com o amor ou com a morte?” Ou a reflexão do exilado, em Paris: “Talvez seja isto o exílio: uma longa insônia em que fantasmas reaparecem com a língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras…

Rodolfo, o pai de Martim, abandou seu emprego da Novacap e com um sócio que não é explicitado, faz serviços provavelmente na exploração dos terrenos em torno do Eixo Monumental. Possivelmente seu sócio é o Senador, pai de Ângela, um dos que enriquece com o sistema. Rodolfo, homem de direita e defensor da ditadura, detesta a livraria: “Você ainda trabalha na Econtro? Não sabe que esse livreiro é vermelho é perigoso? Livreiro vermelho! O que Rodolfo sabia de Jorge Alegre? Meu pai não anda tão alheio à minha vida. Sem discrição (ou com discrição detetivesca) todos estão atentos à vida de todos. No silêncio da capital, rostos invisíveis vigiam e depois caluniam, acusam, delatam… “ (grifos meus)

Enfim, este é um romance que retoma o período da ditadura militar brasileira, torna-a o ambiente social em que viveram suas personagens. Desloca no espaço para o mundo dos exilados em Paris e para suas reflexões sobre um passado ainda recente para elas, um pouco mais distantes do tempo da enunciação deste romance que agora pode dizer o que então era proibido. Ele vem a calhar num tempo em que, aparentemente, com os pedidos de “intervenção militar” pode-se concluir que “civilização não é mesmo para o Brasil”.