Para encontrar o azul eu uso pássaros

Para encontrar o azul eu uso pássaros

Este livro de Manoel de Barros sobre o seu Pantanal é um livro para ver e para ler. Edição bilíngue (português e inglês, 1ª. edição em 1999), tornada possível graças a Enersul e a Petrobras Gás S.A., com as fotos de Asa Roy e Osmar Onofre, abre com uma sequência de seis páginas em que as personagens principais são um Tuiuiú, a ave símbolo do Pantanal, já na sexta página acompanhado por um colhereiro. São aves de tirar o fôlego; são fotos de ficar olhando o pássaro sobre o branco e depois sobre o azul.

O “Pré-texto” com que Manoel abre o livro, ao mesmo tempo que diz não querer cantar a exuberância do Pantanal, faz precisamente isso: louva ao dizer que não quer que suas palavras “caiam em louvamentos”. E nos diz:

Quisera apenas dar sentido literário

aos pássaros, ao sol, às águas e aos seres.

Um desafio: glosar esta obra exuberante de Deus. E confessa: para botar em prova minha linguagem.

Como sempre, o poeta nos encanta na entrada e nos conduz por poemas (extraídos de outras obras, mas também com poemas originais que acompanham como “legenda” as fotografias) a nos prepararmos para a surpresa do exuberante que virá na forma das fotografias “legendadas” por versos. Antes destas páginas, para não perder este introito:

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas leituras não era a beleza das

frases, mas a doença delas.

Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor, esse gosto esquisito.

Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.

– Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável, o Padre me disse.

Ele fez um limpamento em meus receios.

O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença, pode muito que você carregue para o resto da vida um certo gosto por nadas…

E se riu.

Você não é de bugre? – ele continuou.

Que sim, eu respondi.

Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas –

Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os ariticuns maduros.

Há que apenas saber errar bem o seu idioma.

Esse Padre Ezequiel foi meu primeiro professor de agramática.

 

Neste mundo de águas vegetação bichos – num céu azul – em ao cair da tarde podemos observar “algaravias de pássaros” como num passeio conjunto definiu Jorge Larrosa. As “nuvens” de tuiuiús cobrem o sol… e nos deixam na sombra de suas asas.

Voltemos a alguns poemas de curtos de Manoel de Barros:

Uma luz que vegeta na roupa dos pássaros.

Na falta dos passarinhos há restumes

de sol

e de azul.

 

 Uma árvore bem gorjeada

em poucos segundos

passa a fazer parte

dos pássaros que a gorjeiam.

 

 

Ah borboleta desaberta

rm forma de pássaro!

 

Um dom de ser bromélia

me arrepia

e me consagra.

 

 

 

Como se uma flor de carne

desabrochasse na escura vegetação.

 

 

 

Na Grande Enciclopédia Delta Larousse, vou buscar uma definição de pantaneiro. “Diz-se de, ou aquele que trabalha pouco, passando o tempo a conversar”.

“Passando o tempo a conversar” pode ser que se ajuste a um lado da verdade; não sendo inteira verdade. “Trabalho pouco”, vírgula!

Natureza do trabalho determina muito. Pois sendo a lida nossa de a cavalo, é sempre um destampo de boca. Sempre um desafiar. Um porfiar inerente…

 

Manoel de Barros dedica este livro a Bernardo da Mata (um ser cuja palavra amplia o silencio) e termina com um poema que fala de Bernardo:

Bernardo é quase árvore.

Silêncio dele é tão alto que os passarinhos

ouvem de longe.

E vêm pousar em seu ombro.

Seu olho renova as tardes.

Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:

1 abridor de amanhecer

1 prego de fargalha

1 encolhedor de rios – e

1 esticador de horizontes.

(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios

de teias de aranha.

A coisa fica bem esticada.)

Bernardo desregula a natureza:

Seu olho aumenta o poente.

(Pode um homem enriquecer a

natureza com sua incompletude?)

Antonio Cândido. Professor, militante e pensador(1)

Antonio Cândido. Professor, militante e pensador(1)

Estimado Professor Antonio Cândido, é com enorme satisfação que represento o reitor da Unicamp, Hermano Tavares, não apenas por se rum dos seus pró-reitores, mas também por ter sido, antes de mais nada, aluno e bem mais tarde diretor do Instituto de Estudos da Linguagem de nossa universidade. Do IEL, o professor Antonio Cândido foi o diretor instalador. Sua passagem pelo instituto seguramente deixou marcas que balizam até hoje sua história. Um espaço independente que valoriza a pesquisa e a atitude crítica, sem deixar de se preocupar com o ensino de primeiro e segundo graus e com os destinos políticos da nação. Com o professor Antonio Cândido aprendemos que a militância, suas andanças e suas errâncias, não prejudica a produção séria dos conhecimentos, mas enraíza essa produção na vida social. A Unicamp agradece o exemplo do professor, do militante e do pesquisador.

O senhor reitor designou-me para tornar pública sua mensagem. O professor Antonio Cândido tem sido para todos nós um modelo de cidadão, intelectual, escritor e professor universitário que nunca circunscreveu sua atividade aos domínios de seus interesses mais imediatos. Ao contrário, estendeu-a sempre pela militância, reflexão e dedicação esforçada a toda a sociedade brasileira, nas variadas conjunturas políticas e sociais em que tem vivido. Particularmente nesta universidade que hoje dirigimos, participou intensamente da elaboração do projeto do Instituto de Estudos da Linguagem, desde o embrião do Departamento de Linguística até a direção e implantação final desta unidade, em 1975. Aprendi a admirá-lo por sua presença no Conselho Universitário e pelo espírito com que dele falavam seus colegas e parceiros da administração. A presença de outros colegas, dentre os quais destaco o Prof. Carlos Franchi, demonstra o apreço que temos por Antonio Cândido e pelos que tiveram a feliz iniciativa de homenageá-lo.

 

Nota

  1. Na sequência cronológica em que venho recuperando os textos que escrevi, deveriam aparecer aqui outros dois textos (não estou incluindo nas publicações no blog os artigos escritos em coautoria porque isso demandaria outros trâmites): “O uso como lugar de construção dos recursos linguísticos” (publicado in. Espaço Informativo Técnico Científico do INES, 8, Rio de Janeiro, MEC/Instituto Nacional de Educação de Surdos, 1997:49-54) e “A prática da produção do texto escolar” (publicado nos Anais da VI Jornada Nacional de Literatura. Passo Fundo, UPF, 1997:127-144). Perdi os originais e as publicações em que apareceram…

Assim, vou direto a este texto escrito para uma sessão de homenagem a Antonio Cândido pelos seus 80 anos. Era eu Pró-Reitor e fui à sessão representando a Reitoria da Unicamp. Tínhamos recebido a instrução de que nosso tempo de fala não poderia ultrapassar cinco minutos. Cumpri à risca, e mas percebi que fui o único a fazê-lo. Antonio Cândido, que foi o diretor instalador do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, merecia um texto bem mais alentado. Fiquei restrito à homenagem, e em nome do reitor, escrevi o segundo parágrafo do texto como mensagem que deveria lhe transmitir.

Nesta homenagem tive a grata satisfação de ficar ao lado de Chico Buarque e com ele poder conversar pela primeira e única vez na vida! Recordei com ele um de seus shows em Porto Alegre, em plena ditadura militar… Respirávamos então democracia! Agora vejo que foi curta, muito curta.

Este pequeno texto, mais institucional do que qualquer outra coisa, foi incluído no livro organizado por Flávio Aguiar, em que estão textos que foram lidos na homenagem e vários estudos sobre a obra do homenageado. {Antonio Cândido. Pensamento e Militância. São Paulo : Fundação Perseu Abramo : Humanitas/FFLCH/USP, 1999). Obviamente um texto institucional e formal como este não precisaria estar no livro! Enfim…  

Matar e morte: verbo e substantivo e nada sobre política

Matar e morte: verbo e substantivo e nada sobre política

Não é um texto sobre luto ou lutar. Poderia. Talvez seja afinal. Se for, peço que vocês me perdoem.

Existem verbos que não sei conjugar. Já outros faço bem: os tempos, os modos. Gosto especialmente do presente. Já gostei mais. Antigamente no passado recente, gostava muito do futuro que hoje é presente. É que as coisas todas mudaram. Tantas coisas. Estava errada. E os erros, sobretudo os que não são nossos, têm um caráter punitivo. Então os verbos que não sei conjugar me atormentam sobremaneira.

Um desses verbos, em especial, aprendi com Clarice Lispector, em um de seus livros voltado ao público infantil: A mulher que matou os peixes. Essa obra dela me ajudou muito a entender uma infinidade de sentimentos, e já não era criança quando o li.

“Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. Logo eu! Que não tenho coragem de matar uma coisa viva! Até deixo de matar uma barata ou outra. Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança ou bicho sofrer. Pois logo eu matei dois peixinhos vermelhos que não fazem mal a ninguém e que não são ambiciosos: só querem mesmo é viver. Pessoas também querem viver, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom.” (LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.)

A narrativa além de ensinar a conjugar o verbo matar, ensinou-me a perdoar, e a entender que as relações humanas devem, ou deveriam, ser observadas em uma perspectiva de afeto e de compreensão, ainda mais quando envolvem perda e dor.

Ao final, descobrimos que a morte dos peixes foi uma fatalidade, um descuido, um silêncio. Logo para a autora que era tão generosa em ouvir e ver os silêncios do mundo. E só acredito no desejo de redenção genuíno da autora porque o efeito desse texto é mágico, e ainda mais para o público a que se destina. Ensina-nos a encarar a morte, e o assassinato a partir de  nossa autoria.

Aprendi a conjugar o verbo matar desde então. Sei que qualquer um de nós é capaz de fazê-lo, eu, tu, ele, nós, vós, eles. Somos todos em maior ou menor grau assassinos. E as redes sociais tem sido fundamental nisso. Absortos que estamos, não ouvimos assim como Clarice os que estão ao nosso redor: crianças abusadas, mulheres espancadas, os violentados, vítimas do abandono, os gordos, os fora do padrão, pessoas em situação de rua, usuários de drogas, sem teto, sem-terra, indígenas, quilombolas, desempregados, afastados de nossa classe social, os que não comungam de nossa fé, os que comungam, os homossexuais, os transgêneros, os jovens, os velhos, os deficientes, os doentes, os pobres, os miseráveis, os famintos e os que tem fome.

Todos mortos sucessivamente pelo silêncio. E por descuido abandonamos essas pessoas em seus aquários. Cotidianamente cuidamos de nossos afazeres, e esquecemos até de pedir perdão pelos que matamos.

E sinto que me matam todo dia. Nunca senti tão forte.

Sinto que me matam quando negam atendimento a mulheres vítimas de abuso sexual.

E morro quando vejo pessoas acreditando que não saber das vítimas é melhor, conheço vítimas de abuso infantil, doméstico, sexual, e conheço as violências várias: espancamentos, torturas psicológicas, submissão, opressão, cárcere privado, estupros, sexo sem consentimento, pedofilia, tentativa de homicídio … Em todas as vezes que soube, morreu um pouco da humanidade em mim. Explico-me: a maioria das pessoas que sofriam, poderiam ser ajudadas, mas em todos os casos eram negligenciadas por suas famílias, por seus amigos, por seus vizinhos, por seus professores, por seus patrões, por seus amores, por seus guias religiosos, por pedidos de silêncio. Entendo que em muitos casos, o pedido era motivado pela vergonha, pelo medo, e por uma tentativa de fingir que não aconteceu, como se as pessoas pudessem se curar sozinhas. Isso é o que a cultura do estupro faz: vergonha, culpa e silenciamento de um lado e de outro o estímulo a mais casos – dada a certeza da impunidade.

Pensando nisso entendo que muitas pessoas desejem matar. Querer se armar, defender seus patrimônios e coisas do gênero. Então escolhem assim não ter que ver, não ouvir. Silenciam as vitimas para que depois matar seja uma fatalidade, uma situação que fugiu ao controle. Então não seremos responsáveis:

– Estava cuidando da vida, dos meus, do que é meu. Quem imaginava? Eu não pensei nesse aspecto…

E ainda assim é preciso fazer o que é certo. Entender que não basta cuidar dos nossos e dos iguais. Comecei esse texto falando dos verbos, e agora já ao final descubro que é um texto sobre silêncio, e me lembro de outro livro, que a morte seja substantivo. Porque depois de matar, o que resta é a morte. Então  preciso indicar a leitura de O resto é silêncio, do Érico Veríssimo, que me marcou na juventude. O livro trata do suicídio de uma jovem e as várias perspectivas de quem observa o fato. Leitura que o tempo e vento vai levando da minha memória. Achei um trecho na internet, olhem que magistral:

“- Você é muito menino, ainda não sabe de certas coisas… Mas viver é morrer em prestações. Cada criança que nasce assina com a vida um contrato de compra e venda… e a gente nunca sabe o prazo certo do vencimento. – A sua dissertação fora interrompida por acessos de tosse em que o homenzinho ficava vermelho, engasgado, enquanto sua boca expelia para todos os lados um chuveiro de saliva. Era preciso nada menos de cinco minutos para ele voltar à calma e recomeçar a exposição. – Mas como eu ia dizendo, a criança assina o contrato e o vendedor, que é a Morte, passa a cobrar as prestações anualmente. Cada ano a gente morre um pouco. Quando vai ficando velho, as prestações já não são anuais, e sim semanais. Por fim o contrato se vence. O pior de tudo é que a gente continua sem saber o que comprou… Por acaso você sabe?” (VERÍSSIMO, Érico. O resto é silêncio. 15ª ed. Editora Globo: Porto Alegre, 1980.)

Preciso reler esse livro, antes que o resto seja silêncio.

Caminhos do silêncio

Caminhos do silêncio

Metodológico

e monocórdico

os passos repetidos

nos caminhos do silêncio.

 

Em verdes tempos verdes

uma flor

uma rosa

um espinho.

 

Juventude: carinho e amor.

Depois, uma imensa necessidade imensa

de dizer, de falar, de saber, de viver

 

Mas, em tempos de euforia

vede: o peão do rei

ataca a alegria.

 

E nos caminhos do silêncio

caminha em silêncio

um canto

acalanto: já ouvimos sua voz.

Ninguém pode controlar!

(Wanderley Geraldi)

Manhã transfigurada

Manhã transfigurada

Este livro do gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil tem, hoje, a idade de 36 anos: escrito em fins de 1981 e publicado em 1982. Se tem idade contável, tem tema eterno desde que o mundo humano existe: a relação homem/mulher num triângulo amoroso. E seguramente o triângulo produz a tragédia, do gênero que for.

O ambiente da história é o Continente, como chamado o Rio Grande do Sul, especificamente na vila de Viamão, num tempo distante para o mundo veloz em que vivemos, mas muito próximo em termos de história. Era o Século XVIII.

Camila, filha de fazendeiro às voltas com suas finanças, moça bonita e prendada, como se dizia então, foi escolhida para esposa pelo Sargento de Ordenanças Miguel de Azevedo Beirão, maioral da vila, reinol, estancieiro mais preocupado com seus campos e gados do que com a vida amorosa. Inicialmente, Camila não quer o candidato, mas sofre pressão paterna, que via no casamento a “salvação de sua lavoura”.

A tragédia começa na noite de núpcias. Com a escrava Laurinda, Camila havia aprendido como atrair um homem, como ser sedutora. Então age como aprendido, desvestindo-se e oferecendo ao sargento, que a repudia dizendo que ela deveria esperar a ação do macho e jamais se oferecer como uma puta. Diante de uma Mulher, o sargento capitula, broxa. E a repudia. Como vingança, Camila lhe conta que já tivera homem, que já não era mais virgem. Ato imediato, manda o marido que se vista e arrume suas coisas, e saem na manhã seguinte para a vila, onde tinha o estancieiro o melhor sobrado, e onde confina Camila. Entra logo na justiça eclesiástica com pedido de anulação do casamento por a mulher não ser mais virgem. Na casa, pergunta-se Camila se não era mulher de por fogo em homem, incapaz de fazer nascer o desejo. Laurinda, a fiel escrava, diz-lhe que ela é muito mulher.

Despacha o Pe. Ramiro ao sacristão, Bernardo, para que lhe entregue a documentação da abertura do processo e com a determinação que Camila não pode sair de casa e que deverá assistir às missas nos fundos da igreja, junto aos escravos.

Nesta missão de oficial da justiça, o sacristão se deixa seduzir e acaba se tornando, desde o primeiro dia, amante de Camila. Para ela tratava-se de uma questão de comprovar para si mesma que era capaz de acender o desejo do macho; para ele se tornou um paixão avassaladora.

Pe. Ramiro percebe que seu sacristão está diferente, que está de amores. Pergunta-se com quem, mas não consegue qualquer confissão do moço. E vai ele mesmo visitar Camila, por quem também fica seduzido. Aqui ambos se atraem. Camila dispensa o sacristão, quer o vigário. Está posto o triângulo, porque o marido, maioral e sargento, desaparece por completo da história. Bernardo não se conforma com a perda da amante… e Ramiro está cada vez mais apaixonada, a ponto de começar a duvidar dos credos da religião a que dedicara a vida até então, ainda que na juventude tenha conhecido mulher.

Então o ambiente da vila se reduz: o sobrado, o lado sol e luz, o lado do mundo;  a igreja com suas torres apontando para o céu mas com seus mortos enterrados sob o altar e a casa canônica onde vivem o padre e o sacristão, em guerra surda e sem palavras.

Camila urde um plano: pede que Laurinda lhe faça um vestido de noiva, com grinalda e tudo. Na noite que antecede a tragédia final, Bernardo aparece no sobrado, bêbado, pede para entrar, para voltar a ser recebido, mas é rechaçado pela antiga amante que sonha com o dia seguinte e seu encontro com Pe. Ramiro. Enquanto isso, o próprio padre desiste da resistência: vai ao sobrado e é salvo pela presença de Bernardo, vê o futuro como mais um que um dia será dispensado. Retorna para a casa canônica.

Na madrugada do dia seguinte, Laurinda corre à casa do padre pedindo-lhe que não reze missa nesse dia. O padre, no entanto, encaminha-se para a sacristia onde encontra Bernardo pronto para a celebração. O ódio, a raiva de Bernardo são quase concretas e Pe. Ramiro o sente e espera o golpe que o mataria. Mas ele não vem. Quando a missa está terminando, no “Ite, missa est” pronunciado voltado para uma nave vazia, Ramiro vê Camila entrando vestida de noiva. Ambos pensam que ela vem para si. Mas Bernardo percebe que é o preterido. Ramiro vê em suas mãos a faca de aparar as velas. Com ela, Bernardo mata Camila. Volta para a sacristia, pega o turíbulo e começa a perseguição a Ramiro, pela nave da Igreja. Fugindo, Ramiro sobe para o coro, e deste pela estreita escada, até os sinos na torre. Bernardo chega e o mata com o turíbulo, mas cai da torre na praça e também morre. Fim da tragédia…

Laurinda sai da igreja com sua dona, dizendo “eu falei para ela não vir sozinha, era perigoso, mas entendam vosmecês que ela é só donzelinha, não conhece nada da vida.”

A tragédia é trabalhada em flashback, o primeiro capítulo se iniciando com o vestido de noiva tão belo feito numa tarde, sem que Laurinda conheça os planos de sua dona. O mais inusitado é ter posto em relação amorosa uma mulher a frente de sua época, com um marido conservador, um sacristão e um vigário! Estes seriam os mais improváveis amantes no Século XVIII. Enquanto a personagem Camila seria uma improvável mulher do mesmo século: que urde, que trama, que seduz, que atrai.

Sem dúvida, se trata de um belo romance! A linguagem de Assis Brasil, como sempre, direta e aqui carregada de citações litúrgicas em latim, com o que cria o ambiente também linguístico em que circulam as personagens masculinas da tragédia. O romance merece leitura e releitura de estudos.

 

Referência. Luiz Antonio de Assis Brasil. Manhã transfigurada. Porto Alegre : L&PM Pocket, 2010, 1ª. Reimpressão, 2015. (original publicado pela mesma editora em 1982)

UMA HISTÓRIA DE MUITAS: A verdadeira face do desprezo

UMA HISTÓRIA DE MUITAS: A verdadeira face do desprezo

Na semana passada, em meu último texto, toquei em um assunto bastante inquietante: a prisão da advogada Valéria Lúcia dos Santos no exercício de suas atividades profissionais. Retorno ao caso apenas de passagem para ativar os conhecimentos adquiridos previamente, ele será meu álibi contra vocês que me leem. É assim que quero elucidar minhas impressões.

Antes falarei sobre desprezo.

A maioria de nós conhece o desprezo, o que não significa que por conhecer, tendo sido em experiências como autor, vítima ou os dois, que sejamos empáticos aos desprezados, ou mesmo humanamente solidários aos que são assim tratados. Exemplos vários permeiam a nossa literatura, medicina, história, artes, e enfim todos campos de existência, conhecimento e manifestações das pessoas.

Todas as pessoas que leram o texto a qual me refiro, e segundo as estatísticas do site foram muitas, nenhuma se mostrou em choque com o ocorrido. Percebem? Engana-se quem pensa que o choro é livre, nem o Lula é. Esse não é ainda o ponto que falo sobre desprezo, e tampouco hoje será necessário falar sobre a etimologia da palavra em questão.

Nessa semana duas falas de extremado desprezo pela sociedade brasileira circularam os noticiários, e, o pior, oriundas de uma boca que postula ocupar o cargo de líder, ou vice, que em tempos de golpe e autogolpe significam a mesma coisa para a nação. Vamos a elas: Não é preciso de povo, ou de representantes do povo para fazer uma Constituinte – aqui já estaria de bom tamanho, mas acrescentou-se ao despropósito (com propósito) a assertiva de que mulheres pobres, mães e avós, são fornecedoras de mão de obra – ainda infantil, para o tráfico.

Teminaria o texto aqui.

Para frente seriam muitas exclamações, registrando o tamanho do estupefamento. Não é possível. Eis que me rebelo e escreverei ainda, pois nem só de memes o homem, e no meu caso a mulher, viverá.

Verdade que as expressões de desprezo soam até pequenas se pensarmos que a sociedade tem aceitado coisas muito piores: tatuar na testa de uma pessoa que é ladrão e vacilão, que um torturador que se ocupava da cadeira do dragão(https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-era-uma-sessao-de-tortura-na-cadeira-de-dragao/) seja homenageado, que mulheres morram todos os dias vítimas de violência domestica e sexual, que pessoas que fogem à heteronormatividade sejam tomadas por doentes e que devam ser espancadas até a morte, que a juventude negra seja vítima de extermínio em massa, que uma vereadora do Rio de Janeiro seja assassinada e que nada seja investigado de verdade, que um rapaz negro seja preso por portar um detergente, que um menino, Marcos Vinicius, seja morto trajando uniforme enquanto volta da escola, que 10 crianças infratoras morram em poder do estado,  e poderia elencar vários outros fatos aqui.

Tem um caso especifico que desejo destacar: um jovem negro amarrado ao poste. Barbárie. Linchamento. Imperdoável desumanização.  Ouço ainda a voz de uma porta-voz da mídia: – Tá com pena? Leva para casa.

Chego ao ponto que quero da questão.

Muitos serão os responsáveis pela barbárie que se aproxima: Prisões injustas, condenações sem provas, fissuras e rasgos nas Carta Magna, ou Constituição Cidadã. Todos os feitores dessa nova ordem: o caos. Terão seu lugar ao Sol, e podem bater no peito e rufar os tambores e trombetas anunciando o novo tempo. Ainda é cedo para pularem de galho, os mais afoitos temem por suas próprias feridas: PSDB, Sherazade, FHC após inflarem as pessoas menos afeitas as reflexões, invocando a moral e os bons costumes contra o petismo, o socialismo e a ameaça venezuelana, mesclando questões de ordem individuais e liberdade com opiniões e  fanatismos religiosos, e vendendo demônios vermelhos ao prazer dos mercados internacionais do petróleo.

– Feminazis, abortistas, desgraçadas, putas. Ninguém fez nada. Subiram o tom: – Gayzistas, pornográficos, destruidores da família e do casamento, surra e homofobia. Tom ainda mais alto: – terrorista, comunista, vagabunda, estupro nas bombas de gasolina, só não te estupro, porque você não merece. E absurdamente desumano: vagabundos, sem terras, quilombolas preguiçosos, índios não têm que ter terra, chacinas nas tribos e periferias, esses negros tão de mimimi, cotas não! Meritocracia! E não tem limite.

Até que falam de mim, mas esse mim é diferente. Esse mim é bem-nascido, pensava-se. Um mim que vociferava nas câmeras:

– Tá com dozinha? Leva para casa! Direitos humanos é para humanos direitos!

Bastou! A ela garantimos sororidade. Daremos audiência porque a sua dor, e só a sua, importa. Seu constrangimento é significativo, simbólico. E todos nós embarcamos na indignação da mulher branca que se vê criando seu filho e tendo sido criada sozinha pela mãe, sendo chamada de desajustada. O problema não é de interpretação de texto, certamente. Não me pareceu real, afinal, o destino da ofensa tem endereço certo: pobres que moram em lugares carentes. Pobres, como aquele jovem que fora amarrado ao poste. Não você! Não uma pessoa que sequer já foi barrada na porta giratória do banco. Não! Essa fagulha de bom-senso diante da barbárie.

A questão é que os direitos não são para todos. Em breve serão para poucos. Em meio a um ambiente de carência e abandono, em que sequer mães e avós são respeitadas no exercício de suas atividades e na luta cotidiana de constituir e cuidar de uma família monoparental, desamparadas por leis e justiça alicerçadas em regras e condutas patriarcais, realmente as coisas tendem a barbárie.

Cheguei ao ponto, mas não está posto ainda o que quero dizer. É como a lembrança do sangue da carne do churrasco de outrora, cada tempo um ponto e cada corte um sabor novo. Até que não tem mais sangue e o que resta é sabor amargo.

Basta pensar que vivemos o impensável: um mundo de absurdos em que propostas de assassinatos e extermínios se tornam justificáveis pela simplória manutenção dos bens materiais, e votos.

Ao ouvir a barbaridade saída da boca do político que nega a política, militar – que nega a soberania do país, – ficamos perplexos pela falta de sensibilidade. Uns ficarão estarrecidos apenas aparentemente.

A questão não é o anuncio da tragédia, mas o desprezo pela humanidade. Entendem? Sabedores que são da realidade de meninos e meninas moradoras de periferia, sem a presença paterna, criados por mãe e avó trabalhadoras, quantas mães, quantas tias, quantas avós, quantas amigas, quantas jovens e outras tantas poderiam apresentam esse histórico, e de resultado diverso ao esperado, mas é claro que existem vários casos de tragédias recortadas pelas drogas, muitas vezes pela falta de segurança, oportunidade, profissionalização, identidade, investimento em educação integral, saúde, moradia, dignidade e afeto.  Faltas que um político deve conhecer para intervir. É preciso mesmo sensibilidade.

Quando, seu moço

Nasceu meu rebento

Não era o momento

Dele rebentar

Já foi nascendo

Com cara de fome

E eu não tinha nem nome

Prá lhe dar

Como fui levando

Não sei lhe explicar

Fui assim levando

Ele a me levar

E na sua meninice

Ele um dia me disse

Que chegava lá

Olha aí! Olha aí!

Vou invocar na voz de Elza Soares, a canção de Chico Buarque, Meu Guri para falar do desprezo da fala que é dada por incapacidade das pessoas em enxergar aqueles que pouco ou nada tem(ver nesse link https://www.youtube.com/watch?v=K-sepKbQv_k) Aos desavisados podem achar que a letra cantada aborda a marginalização da favela, e suas crianças, majoritariamente pretas e pobres, na mesma perspectiva: pobreza e meio somados são um gatilho para a criminalidade, acrescenta-se a isso uma ausência paterna e pronto: temos os meninos do tráfico! Acalmem-se e não me deixem a sós, tampouco deite fora o texto ainda, o fundo do poço se aproxima.

Essa música é uma obra-prima, apresenta uma realidade chocante de falta de oportunidades, de igualdade, de identidade, tudo isso escorado num muro alto de invisibilidade por parte da sociedade. O artista tem essa capacidade de denunciar em sua arte, questões que são invisíveis são descortinadas, sensível às dores das mães, negras e pobres, invariavelmente: Eu consolo ele, ele me consola, boto ele no colo pra ele me ninar. É tudo que a mãe trabalhadora tem para oferecer, seu colo, seu consolo. As mães, as vós, e os filhos que me circundam vivem o cotidiano de invisibilidade. Ainda assim escolhemos ouvir a dor falsa de uma mãe branca que sequer foi atingida pela fala muito clara, como a sua pele. As outras continuam silenciadas por trajetórias desumanizadas, suas jornadas esticadas, penduradas em ajudas e jeitinhos, em bicos para complementar a renda, toda a luta para alcançar o melhor. Luta que não precisava ser tão solitária, e chega pelas mãos do desprezo da sociedade que vibra com a barbárie anunciada.

Todos vemos. Uns mais que os outros. Nem sempre é desprezo, mas só sabe medir quem sente.