por João Wanderley Geraldi | out 20, 2018 | Blog
Tem razão Silviano Santiago ao usar, na orelha do livro, a imagem das ondas do mar para descrever os capítulos que vão compondo este livro e sua história: ao chegar o fim de um capítulo, seria como se uma onda se desfizesse na areia para que o seguinte recomeçasse onde a onda se forma, se avoluma e volta a acalmar-se em espumas minuciosamente examinadas por um narrador onisciente, que nos vai apresentando as personagens desta aldeia à beira mar, onde as diferenças e as imposições do meio ambiente assemelham e diferenciam cada um.
Há uma personagem, o pescador Crisóstomo, o primeiro a ser apresentado ao leitor, que condensa o inverso do que se poderia chamar da ideologia do cotidiano compartilhada na aldeia, batendo-se contra a hipocrisia com que esconde, no entorno do que é o núcleo deste romance, a família e todas as limitações ao amor. Crisóstomo defenderá e ensinará a seu filho uma participação honesta, ainda que ínfima para o tempo de cada um, na honestidade na natureza do mundo em sua variedade e constância. Há no modo de ser, de agir e de se relacionar, e nos conselhos do pescador a seu filho, um mundo por viver diferente daquele definido como a estabilidade e fixidez deste núcleo familiar em que, por relações sanguíneas (e patriarcais), se reúnem sob o mesmo teto tão distintas pessoas.
Para alinhavar a história de um enredo complexo, tomemos o ponto de partida que nos dá o narrador: “Um homem chegou aos quarenta anos e assumiu a tristeza de não ter um filho. Chamava-se Crisóstomo.” Desde então, abrem-se as possibilidades de um roteiro que poderia ser simples, repetindo o caminho já mil vezes trilhado: Crisóstomo tomar para si uma mulher e com ela fabricar um filho… mas aí se confirmaria a família tradicional, com as pessoas que se suportam em função do laço da consanguinidade. Camilo, o filho, será já um adolescente que ele encontra à beira mar e que o procurara em busca de trabalho. Repetidas vezes, ao longo do romance, repetirá “Amo-te, meu filho”.
O segundo capítulo nos apresenta uma anã, tratada por todas as mulheres de sua aldeia, em outra aldeia, como se fora alguém que por não ter crescido em tamanho, continuava sempre uma criança a brincar de viver. Todas lhe traziam presentes, o sustento diário além das preocupações e cuidados com sua saúde. Sua eterna infância era atribuída ao fato de que não poderia receber homem que a penetrasse porque lhe rebentaria internamente. Sempre amáveis e recebidas com amabilidades, as mulheres, no entanto, sempre viram o quarto da anã fechado. Em uma oportunidade em que esta buscou fora de casa algo para as visitas, a indiscrição levou a abrir a porta e descobrem uma grande cama de casal! Esta aberta a porta para o que virá: a anã aparece grávida e, por falsamente não quererem atribuir vida sexual à anã, as mulheres inventam histórias de possíveis paternidades. Ela, no entanto, dirige-se à polícia e apresenta uma lista de quinze nomes: um destes homens seria o pai de seu filho e deveria assumir a paternidade e a consequente responsabilidade. O delegado a convence: impossível saber quem o pai de sua gravidez. E a balbúrdia da desconfiança da traição torna as mulheres silenciosas e os homens cabisbaixos. A gravidez progride e muito antes de chegar a termo, sentido dores, a anã procura o médico da aldeia e este a acolhe:
Guardava-se no quarto dos doentes, metida numa cama lavada a descansar de ter engravidado. Não era que estivesse cansada ainda do ato, que esse teria sido já há um tempo e ninguém se lembrava de ela se ter queixado de nada. Estava cansada, subitamente, como se a ideia só por si já lhe pesasse e lhe começasse a mexer nos ossos. O seu corpo dilatava todo. As mulheres perguntavam isso ao doutor: foi violadinha, está com os ossinhos todos a abrir. O doutor ria-se e dizia que ela estava bem. As mulheres perguntavam: foi algum cão, algum bezerro já grandito, um bicho desconhecido. O doutor ria-se e dizia que ela estava bem. As mulheres perguntavam: podemos ver. O doutor respondia: hoje não, hoje não. As mulheres saíam, o doutor era malcriado e a anã uma ordinária. Rezavam depois o terço para pedirem que deus explicasse a situação e condenasse os pecadores. Rezavam preocupadamente pedindo uma justiça impiedosa contra os pecadores. Diziam: aquela sonsa há-de arder no inferno, e ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco. Depois, já dormiam melhor, embora sempre na expectativa das notícias do dia seguinte.
Nascido o filho com a morte da mãe, o leitor esperaria, na continuidade, que a história de Camilo, nome que lhe foi dado, aparecesse. Mas novamente a onda morre na praia, retornamos à aldeia de Crisóstomo e somos apresentados à família de Isaura, a mulher enjeitada. A jovem fora preparada para o filho do vizinho. Sabia dos “segredos todos”. Feliz, ela pensava que o rapaz poderia amá-la, mas depois reconsiderava: “a eternidade da vida era demasiado para qualquer fantasia, pensava nos pais e sonhava que o rapaz a amaria ao menos mais tempo do que os seus pais se haviam amado”.
Namoro vai, namoro vem, Isaura, depois de muita resistência, acabou deitando com o rapaz. E descobre: “afinal, o amor era ensanguentado e difícil. Focara no chão, suja pelas porcarias que as rodas das carroças traziam, e doíam-lhe as constas e mais os arranhões nas coxas. […] O rapaz tinha desaparecido, rapidamente do barracão. Ia feliz de alguma coisa que não acudia à rapariga.”
A mãe, a mal humorada Maria, descobre o acontecido, conta ao pai e este vai ao vizinho pedindo reparação: que casassem logo. Evidentemente nem os pais nem o rapaz não aceitaram. Diziam ao desconsolado pai que hoje em dia isso de virgindade não tem mais sentido. Isaura se torna a “mulher enjeitada” ainda que, tentando sempre salvar algo, deitava-se com o rapaz nas vezes em este desejasse.
Para a solidão de Isaura, aparece rondando sua casa um homem maricas: Antonino, filho de Matilde. É com ele que Isaura se casa… e na noite de núpcias, acorda percebendo que o marido lá não estava: “O silêncio não continha marido algum.” Isaura volta à solidão e começa a frequentar a praia, não como banhista, mas para olhar o mar e pensar.
Amanhecera vazia, sem ninguém dentro de si mesma, e foi como se encheu com a ideia de afinal ser impossível esquecer o amor. Porque o amor era espera e ela, sem mais nada, apenas esperava. A Isaura sabia que amava alguém por vir, amava uma abstração de alguém no futuro. Ela esperava o futuro, e esperar era já um modo de amar. Esperar é amar.
Nesta tarde de vazios preenchidos pela espera, Crisóstomo a vê e outra relação começa agora com mais amor e possibilidades. Mas o marido maricas reaparece. Embora o casamento tenha sido anulado pelo padre, Antonino era ainda vivo e seu marido. Então se inicia uma relação triádica, em que a Antonino caberá tornar Isaura bonita, penteada, maquiada para Crisóstomo, mas isso será depois. Por enquanto, mais um corte, e avoluma-se outra onda: Camilo.
Mal fechara os olhos a anã, e o filho tendo chorado – iria viver ainda que um ser diminuto, mas como “crianças são para depois, nunca apenas para agora” – havia que pensar quem o tomaria. Então aparece o velho Alfredo, viúvo e solitário que se candidata:
Hei-de fazer dele um homem antes que o tempo me venha morrer. Não importaria que tivesse um passado triste. O passado não corre. O doutor pensava o contrário. Pensava que o passado tinha pernas longas e corria, sim, e muito, como um obstinado a marcar a sua presença, a sua herança. O passado é uma herança de que não se pode abdicar, disse o doutor. O velho Alfredo encolhia os ombros. Não podia desfazer a história do menino, não podia suprimir a desgraça da anã ou a sua atabalhoada forma de se compensar do amor. Ninguém poderia biografar o Camilo novamente. Novo era só o presente e o que se pensasse do futuro. […] Fizeram-se os papeis. Engaram-se os papeis. Os adultos sorriram. O menino, quando amadurecido pela incubadora lenta, como um iogurte caseiro que fermentava, seria entregue. Haveria de ser colocado entre o amor de dois velhos, ela já morta e ele ainda vivo, apressado.
Camilo cresce entre livros e ensinamentos extremamente conservadores do velho Alfredo, que veio a falecer. O menino já adolescente fica dez dias em casa, comendo restos e sem saber o que fazer. Uma vizinha se apieda, vai à casa, arruma tudo, traz o garoto para dentro de sua própria casa e lhe diz que é hora de ele buscar meios de sobrevivência. Sai em busca de emprego, e encontra Crisóstomo. Torna-se não empregado, mas filho.
E eis que o homem que chegara aos quarenta anos e assumira sua tristeza de não ter um filho, agora constituía uma família: ele, o filho Camilo, sua namorada Isaura e o ex-marido maricas, Antonino.
Eis aí um jogo de destruição da hipocrisia que fazia da aldeia uma aldeia: a falta de amor (todas as mulheres personagens são tristes, viúvas e solitárias ou prestes a se tornarem viúvas, como era o caso da mal humorada Maria, mãe de Isaura. As outras, são figurantes que supostamente viviam junto a seus maridos, mas desaparecidos, apenas sugeridos que, afinal, uma aldeia não se povoa sem homens e mulheres).
Crisóstomo formara a nova família, tolerante, que aceita todo o tipo de amor e que areja com seu presente um futuro distinto. E este futuro será Camilo, que percorrerá seu tempo de formação com duplo trabalho: esquecer os ensinamentos do velho Alfredo (o da repetição do mesmo) e aprender a viver dentro dos novos ensinamentos do homem agora seu pai (as novas estruturas familiares). Este futuro de um amor ilimitado aparece no conselho do pai: o filho Camilo surpreendera o casal Crisóstomo e Isaura na cama.
O Crisóstomo então levantou-se, atravessou o quarto, saiu, foi ver o Camilo deitado e beijá-lo para dormir e disse-lhe: nunca limites o amor, filho, nunca por preconceito algum limites o amor. O miúdo perguntou: porque dizes isso, pai. O pescador respondeu: porque é o único modo de também tu, um dia, te sentires o dobro do que és. (grifos meus)
Para ensinamentos tais, a personagem central deste romance não poderia ser outra coisa que não pescador. Pescador que prega o amor. Pescador que não quer limites ao amor, ao amor entre os homens e entre as mulheres, apontado por outro pescador como caminho. Não como salvação em outro lugar, mas como possibilidade de salvação aqui e agora num futuro que mais de dois mil anos não conseguiu construir. Conseguirá?
Referência. Valter Hugo Mãe. O filho de mil homens. São Paulo : Cosac Naify, 2012.
por João Wanderley Geraldi | out 19, 2018 | Blog
Professora Sinclair Pozza Casemiro – Em nome da direção desta Faculdade, em nome do corpo docente e da ADESCAM que constituem esse processo de estudos e em meu nome próprio quero deixar registrado que é uma satisfação muito grande, este é um dia muito especial… o Professor Wanderley Geraldi é nosso convidado para incrementar os estudos. Ele dispensa apresentações, sua inserção em processos de pesquisa e reflexão com docentes vem de longa data. Em tempos mais recentes nós o contactamos – no Paraná – quando ele contribuiu com trabalhos organizados a partir da proposta da APPSindicato, juntamente com o grupo do Núcleo NIMEC/Unicamp, parceria que nos tem sido importante.
Neste momento do nosso processo, a participação dele vem articulada a uma determinada sequência temática. Eu pediria ao pesquisador Adriano , do Núcleo NIMEC que nos situasse um pouco mais tendo em vista a sequência por nós planejada.
Professor Adriano Nogueira – Conforme conversado com o grupo interdepartamentos que vem coordenando nosso processo de estudos – é especialmente importante – neste momento – a qualidade de reflexão do mestre Wanderley. Além das características de uma trajetória pessoal (que a professora Sinclair bem situou), o professor Geraldi estudou e estuda a linguagem na sua expressividade de fenômeno social-cultural, a linguagem (tal como ele tem estudado) é criação da cidadania. A ciência disso (a Linguística), sob o enfoque dele, é relevante para implementar nosso processo de formação. Quero, entretanto, falar o menos possível. Iremos ouvi-lo, e na medida em que suas contribuições surgirem, pedimos permissão e iremos pausando, pontuando aspectos…
Prof. João Wanderley Geraldi – Para iniciar esta prosa-reflexão, que iremos construindo no coletivo, quero trazer os anos “50”, final daquela década e início dos anos “70”. Vou referir-me a experiências vividas em grupo no interior do Rio Grande do Sul, na região de Ijuí. Nessa época e naquela região, tentávamos criar uma universidade, a partir da FIDENE, erigida com o propósito de vincular trabalho da universidade e desenvolvimento regional. Éramos um grupo de professores em tempo integral… houve no grupo gente evadida de São Paulo e Rio, fugindo da repressão, havia na época gente sendo demitida das universidades públicas e que buscavam espaços mais oxigenados ideologicamente; havia gente sendo expulsa de suas instituições por motivos ideológicos. Nós arquitetávamos uma proposta bastante sonhadora. Havia um certo tipo de utopia em nossas ações e reflexões… penso comentar criticamente aquelas ações/reflexões para que vocês, hoje, em Campo Mourão, norte-noroeste do Paraná, possam usufruir da experiência.
Um dos motivos pelo qual desejávamos constituir uma universidade era obter maior grau de liberdade na ação, ou seja, transformando-nos em universidade nós poderíamos agir/criar um pouco mais livres das “picuinhas” através de que o sistema federal de educação entrava na ação acadêmico-institucional. Funcionávamos em regime de fundação particular, a FIDENE, criada inicialmente pelos frades capuchinhos… a grande maioria dos professores saíra do seminário, mas tínhamos ampla cooperação da Ordem Religiosa e isso, como vocês podem imaginar, resulta em certas vantagens, além do patrimônio considerável que legou: biblioteca excelente, acima de 40 mil volumes, com inúmeras raridades… (incluindo manuscritos de missionários).
Vivíamos naquela região aquilo que era denominado movimento comunitário através do qual tínhamos ações de extensão. Vale dizer, aquele grupo veio se consolidando sob variados tipos de ação compartilhada. Ao longo do tempo nós nos tornamos uma Congregação, tanto no sentido religioso deste termo quanto no sentido universitário. Claro… vocês facilmente poderão imaginar isso… na medida em que um grupo construía universidade, surgiam (ou acirravam-se) bairrismos ou rivalidades regionais. Vejam, posta aí e assim, aquela que poderia se ruma primeira questão para nós e que colocávamos da seguinte forma: nós somos universidade para/do desenvolvimento de uma região que inexiste, na medida em que ela se caracteriza como um conjunto de rivalidades bairristas [de cada cidade].
Um segundo tipo de questão importante dizia respeito ao orçamento. A pergunta era mais ou menos assim: de onde tirar dinheiro para investir num projeto de universidade regional? Como vocês sabem, é um investimento caro.
Nossa base inicial ou… nossa motivação-base seria aquela do movimento comunitário que já mencionei. Nele e a partir dele refletíamos sobre quatro pontos de partida para nossa futura universidade: 1) éramos um grupo sonhador, existia entre nós um projeto utópico (utilizo aqui o termo utopia de forma positiva e não no sentido idealista, como distanciado); 2) percebíamos claramente algumas amarras colocadas pelo sistema federal de educação que cerceava nossa ação criadora; 3) víamos e vivíamos certas rivalidades bairristas entre pessoas e grupos na região em que atuávamos e 4) tínhamos consciência do problema orçamentário.
Nosso projeto pressupunha a concepção já clássica do tripé ensino, pesquisa, extensão. Na época, pesquisa que se fazia era praticamente de levantamento de dados, particularmente com questionários aplicados através da extensão. Cito um exemplo: sabíamos com certa precisão dados sobre a prestação de serviços de saúde na região; sabíamos quantos doentes crônicos, sabíamos a proporção entre faixa etária e endemias mais comuns, sabíamos quantos quartos e leitos havia na rede hospitalar, sabíamos a média de partos, sabíamos o tanto de parteiras… E este exemplo, na saúde, poderia ser estendido a outros campos. Vale dizer: tínhamos e fazíamos pesquisa a partir da extensão, confundindo-a com levantamento de dados… ainda que com certa precisão nos dados.
Queria discutir/refletir com vocês uma primeira questão, problematizando (no que fazíamos) um ponto fundamental. Houve algo sobre que não refletíamos. Fazíamos, sim, levantamentos com precisão [muitas vezes eles servirão para Planos Diretores de pequenos municípios da região]. Fazíamos também cruzamento de dados levantados, mas não houve um avanço qualitativo, no sentido de fomentar a reflexão crítica sobre este tipo de pesquisa. Refiro-me a algo importante, embutido na correlação pesquisa-extensão e que fertiliza na docência a reflexão. Comento isso ainda no campo da saúde, com base em dados precisos que tínhamos, poderíamos ter questionado (e não o fizemos) sobre o que ocorreu entre as décadas de 40, 50 e 60 naquela região, particularmente nos partos ocorridos: poderíamos ter questionado o porquê de mais e mais mulheres terem dado à luz em hospital e menos mulheres confiaram em parteiras e no parto domiciliar, que lhes era mais econômico, que lhes era psicologicamente mais confiável, porque familiar à cultura da região. Percebíamos uma transformação ocorrendo, sabíamos quantificar em dado esta transformação, mas não fazíamos questionamentos de fundo sobre esses dados. Lembro-me que houve, de parte da instituição, interesse em fazer projetos de pesquisa e, enviando tais projetos para organismos financiadores (do tipo Fundação Ford), obtinha-se algum recurso, o recurso era bem recebido e bem empregado… ampliava-se nossa consciência de dados relevantes sobre a realidade regional. Tínhamos numericamente um saber sobre a realidade mas não elaborávamos com os números (superando os dados) um saber crítico sobre a transformação.
Adriano Nogueira – Por favor, Wanderley, peço uma interrupção. Penso que esta sua introdução é “demais de relevante”, tendo em vista a abrangência do momento deste grupo de docentes (da FECILCAM). Quero realçar a natureza dessa criticidade: hoje em dia, década de 90. É comum que nosso conhecimento sobre a realidade seja estatístico-numérico. E nem sempre, segundo me parece, o conhecimento numérico-estatístico (manipulando dados sobre a realidade) se explicita de forma a “puxar” reflexividade. Voltaremos a conversar sobre isso…
Wanderley Geraldi – Retomando aquele momento dos nãos 60 e 70, Adriano, estou supondo uma criticidade que nós não exercíamos. Faço-o para que refletindo juntos alcancemos mais postura crítica. Vejam… nós tínhamos os dados de uma transformação: a instituição “parteira” estava desaparecendo na cultura regional. Não fazíamos questionamento crítico em torno àquilo que “tava na cara”, pois não nos aparecia como um problema. Nunca nos perguntávamos algo assim: por que desaparecem as parteiras, sendo elas tão familiares? O que significa na cultura regional este desaparecimento? Que tipo de “pedagogia cultural” formadora de parteiras está desaparecendo? Qual padrão e quais valores no campo da saúde (ginecologia-obstetrícia) estão substituindo o valor das parteiras?
Alcançávamos um certo nível de criticidade, é claro. Nós propusemos e conseguimos que a COOTRIJUÍ, a cooperativa dos agricultores que o movimento comunitário ajudou a fundar, construísse um hospital-maternidade acessível ao trabalhador… mas esta criticidade não era extensiva às transformações culturais que o fato estava revelando. Era uma criticidade alheia e externa aos processos culturais em movimento. Penso, com os olhos de hoje, que aquela nossa criticidade e aquela nossa concepção de pesquisa e extensão não problematiza certas transformações fundamentais da cultura. Esta seria uma primeira abordagem crítica que proponho… Percebam, estou problematizando a relação (que deve ser profunda) entre ciência e vida.
Adriano Nogueira – Peço-lhe, Prof. Wanderley, um aparte… uma chamada para posterior aprofundamento. Este primeiro momento de sua fala nos permite ver/perceber uma questão: a natureza da imbricação entre ensino-pesquisa-extensão. Penso que isso é importante, considerando que esse gruo de docentes está vivendo um processo de proposição de parâmetros, visando estrutura uma futura universidade regional. O ensino… a docência propriamente dita … é enfocada com fecunda propriedade e abrangência.
Wanderley Geraldi – Adriano… vocês conduzirão a reflexão realçando temas conforme a direção e prioridades do grupo. Retomo minha linha de propor questões que surgem das experiências naquelas circunstâncias… Como dizia, nós tínhamos uma longa tradição de extensão, consolidada através daquele movimento comunitário. Com base nisso, nós definíamos que a extensão deveria alimentar tanto a pesquisa quanto o ensino. Por quê? Porque nossa tradição em extensão nos punha em contato com a região como um todo. Por essa via nós definíamos rumos tanto para constituir a universidade quanto para metas de desenvolvimento regional. A instituição (FIDENE) como um todo era caracterizada a partir da extensão (2).
Um passo importante na constituição da universidade é titular as pessoas, professores. Muitos de nós nos espalhamos pelo país, buscando pós-graduação. Vejam… chamo atenção para a mentalidade franciscana deste momento daquele processo: minha esposa e saímos, fomos para a Unicamp, financiados com uma só bolsa pelo cristianismo alemão… as bolsas eram angariadas e administradas pela Congregação. Não sei fazer a correta tradução entre aquele valor [da bolsa] e o dinheiro válido hoje… sei que eram 1.500 unidades de dinheiro… talvez equivalessem a 1.500 dólares, mas duvido muito. Nunca nos preocupávamos, Corinta e eu, com fazer as conversões, pois a bolsa era paga em marcos para a instituição, e nós recebíamos em cruzeiros. O que nos interessava é que estávamos sendo formados dentro e para um projeto de universidade. Para que vocês possam fazer uma ideia… com aquela remuneração, um casal de colegas nosso alugou uma casa que era a terceira, fundos dos fundos(3). Unimo-nos e formamos uma república de fundos… Uma casa com pouquíssimos móveis (tábuas e tijolos eram as estantes dos livros), colchões no chão faziam as vezes de sofás… Sem cortinas, pintamos com tinta guache os vidros para garantir intimidade já que as janelas davam para lugares de passagem (3). Tínhamos em mente que vivíamos um luxo: o privilégio de apenas estudar, sendo financiados para tal. Fiz meu mestrado em dois anos e meio, incluindo a defesa. Por necessidade de, pensando no retorno, quando assumiria várias responsabilidades acadêmicas no ensino, eu cursei 40 créditos (a exigência era de 24 créditos); ou seja, cursei disciplinas em todas as ramificações da Linguística, alto até de teoria literária… passei por quase todas as disciplinas ofertadas (e não era pouca coisa), pensando que deveria levar o máximo em função do retorno…
Permitam-me sublinhar alguns aspectos. Eu estava estudando, tinha clara consciência de que a geração de meus pais era de agricultores, no interior do meu estado natal. Lembro-me de uma sensação que me acompanhava quase sempre: eu estava parando de trabalhar para estudar. Até então meus estudos tinham sido noturnos, trabalhando durante o dia. Um filho de colonos italianos agricultores semi-alfabetizados… sim, poder estudar (eu imaginava) desde que não pare para pensar. E notem, vários de nós, daquele grupo reunido pela FIDENE, pensava mais ou menos a partir dessas premissas de responsabilidade, de fazer nascer algo. Saindo da região e vindo pra a pós-graduação, “banhar-se” em questões ideológicas em que estava mergulhado o Brasil dos anos 1970… É preciso, portanto, extrair daí algumas questões importantes.
O projeto educacional do governo militar se propunha fomentar ‘centros de excelência’ em alguns pontos estratégicos do país. As instituições não priorizadas (como ‘centros de excelência’) foram, de certa forma, pouco contempladas no que se refere a recursos e investimentos. Posteriormente, os organismos de fomento – CAPES, CNPq, FINEP – orientaram suas aplicações para estes ‘centros’(4). Foi criado o PICD – um programa de capacitação docente – e as bolsas forma distribuídas por regiões e para instituições, e estas enviavam pessoas para a pós-graduação nestes ‘centros’. Pessoas como nós, oriundas de estado ‘fora do centro’ vínhamos aos montes para a pós-graduação. Quando os recém-formados mestres e doutores retornavam à instituição de origem encontravam dificuldades sérias. Talvez a primeira dificuldade fosse aquela que já mencionei: inexistia uma visão crítica em ralação às perspectivas com que as pessoas saíam de sua unidade regional… em busca de formação…
Adriano Nogueira – Se posso dizer desta maneira e navegando no que o professor Wanderley comenta, inexistia uma perspectiva crítica e ampla sobre “o que é formação”, ou então? “que formação queremos”. Se posso expressar-me desta maneira, professor… a formação de quadros foi tentada, muitas pessoas foram mestradas e doutoradas sem a reflexão crítica suficiente pra correlacionar a saída e o retorno. O projeto local/regional com que essas instituições (longo dos ‘centros’) formavam quadro era crítico, sim, mas era crítico em relação à sua carência de quadros; tal criticidade, porém, era insuficiente para delimitar ou reorganizar o aperfeiçoamento científico a partir da problematização do entorno local. A influência do centro sobre o periférico impedia maior criticidade em relação aos dados… ou seja – a mera estatística não é suficiente. Houve crítica e crescimento, eu creio, mas era crítica e crescimentos apenas na ‘qualificação temática’ da realidade. Quando a insuficiente criticidade veio à tona quem sofreu isso foram os que ‘emergiam” do particular para o global…
Wanderley Geraldi – Quando voltávamos logo percebíamos que nossa formação e nosso progresso profissional era compatível apenas com grandes universidades… compatível com os tais “centros de excelência”. Voltávamos mestres e doutores, claro, mas nossa perspectiva profissional não cabia mais … ou nunca tinha cogitado isso… como correlacionar formação de quadros e desenvolvimento regional dentro de perspectivas e críticas conjunturais amplas.
Adriano Nogueira – Um breve aparte. Aliás, outro breve aparte. Tenho ouvido de vários docentes desta casa esta sua reflexão exposta em outros termos. Quero realçar isso: o que é globalizar? Eles se põem essa questão dentro do empenho de buscar formação. Globalizar não se restringe a abrir-se do geral para o geral. A globalização é formadora quando há movimentos que vão do particular par ao geral e vice-versa…(5)
Wanderley Geraldi – A realidade interiorana para a qual todos retornávamos não alimentava nossa concepção de avançar e progredir como cientista-professor. Cada um dos retornados se sentia “muito dentro”, quase prisioneiro de seu assunto de dissertação ou tese. Era comum ouvirmos algo assim: puxa vida! Tudo aquilo que estudei lá… tudo aquilo pelo que me sacrifiquei simplesmente não é possível aqui. Ou então, dizia-se algo como a situação da minha instituição de origem estacionou naquele ponto de onde eu parti… faltam condições, falta estrutura mínima. Alguns, mais radicais ou menos tolerantes, passam a descaracterizar sua presença e contribuição em seus lugares de origem… falta biblioteca com x características, falta laboratório com x instrumento… Evidentemente que tais universidades regionais não tinham condições de preencher características dos ‘centros de excelência’.
Foi uma maratona, vocês imaginem. Muitas pessoas debandaram logo de início. Desde vários locais do Brasil do interior houve migração, evasão de cérebros. E foi uma grande desilusão, abalando projetos de vida. A experiência da grande universidade isolou-nos uns dos outros e, creio, isolou-nos de um possível projeto de universidade e desenvolvimento regional.
Vou extraindo aspectos de reflexão no decorrer desse fio da meada. Gostaria que eles pudessem alimentar a caminhada de vocês… é com esse intuito que vou puxando fios da década de 70. Aquela nossa formação de mestrado e doutorado nos surpreendeu: formados acriticamente em relação à visão de mundo anterior. Com surpresa, descobríamos que o desenvolvimento regional é determinado de fora para dentro… do macro para o microcosmo. Havíamos elaborado projetos de vida profissional supondo que o desenvolvimento regional ocorresse dinamizando de dentro para fora, como se da microrregião se projetassem transformações com peso hegemônico. A microrregião de Campo Mourão foi, ontem, café e será, amanhã, soja, algodão ou gado … conforme decisões tomadas fora da microrregião. Há uma correlação entre a monocultura da produção regional (café, soja, cana ou carne) e as necessidades comerciais maiores ditadas dos centros impõe… nossa formação acadêmica demorou um pouco para descobrir a força desse mecanismo… talvez até devido à força de nosso idealismo de então.
Adriano Nogueira – Este grupo, Wanderley, docentes da FECILCAM e do centro CEFET está projetando sua formação, através de futuras dissertações vai ampliando a própria formação. Ao mesmo tempo, concomitante com uma mais ampla formação, eles irão reestruturando uma futura univrsidade… a partir da faculdade isolada que é hoje. É um processo assumido coletivamente que, a meu ver, mantém uma certa qualidade – fruto de esforço, sempre – que se traduz em maior nível de autodeterminação. É tudo “muito suado”, tenho dito e repetido a eles. Mas vale a pena.
Segundo vários desses projetos (futuras monografias, teses) essa autodeterminação se concretiza através do fornecimento de mais subsídios científicos ao trabalho e produção. Há chance e há, também, conhecimento disponível para orientar o desempenho científico tendo como critério a auto-sustentabilidade biossitêmica-ambiental. Não quero dizer, claro… e Wanderley também o expôs, que a auto-sustentabilidade ignore as determinações externas. Mas estou salientando … e os trabalhos dos professores assim o explicitam… que tais estudos (futuras monografias,) buscam embasamento técnico-teórico para subsidiar, na região, diversificação e rotatividade produtiva. Através disso ela terá maior possibilidade de incrementar o consumo local, aumentando a circulação de riqueza em nível local: passa por aí a produtividade aliada à resistência, passa por aí a capacidade de uma certa autodeterminação no que se refere à produtividade ecológicaauto-sustentável e não apenas predadora. Claro… para o projeto global, para o tal “consenso de Washington” essas resistências regionais são irrelevantes.
Dentre os tópicos que Wanderley considerou, eu realço um que é especialmente interessante. Ele mencionou os levantamentos (pesquisa) quantitativos. Quantificar dados para transformá-los em referência estatística é uma leitura parcial da realidade. Este procedimento (parcial, no meu modo de ver) permite que se leia a realidade ignorando mecanismos de fundo na transformação da sociedade. Parece-me que, em geral, as tentativas de explicar a realidade com base em métodos quantificadores decidem o futuro a partir de uma “matemática do presente”. Parece-me que fica faltando a leitura da realidade a partir da abordagem qualitativa. Ou seja, aquela abordagem que tece explicações buscando um quadro geral… acentuando tendências, insinuando projeções e arriscando hipóteses. O que seria o avanço?
Raciocínio estatístico e postura crítica.
Facilitar ao sujeito uma macrovisão, permitir a perspectiva de totalidade, a partir da compreensão das interações entre as múltiplas variáveis. O que é que estou realçando? Chamo nossa atenção sobre o seguinte: as explicações apenas quantitativas ou apenas estatísticas (a partir de dados exatos, embora) dificultam que o sujeito social compreenda que a determinação é histórica… e não apenas prévia. Ela se dá no processo, a determinação influencia a partir da correlação entre variáveis. Ou seja, uma metodologia de pesquisa e compreensão qualitativa tem, a seu favor, a compreensão sistêmica: ela facilita um tipo de compreensão que agrupa e reagrupa fatos, dados, fenômenos conhecidos e, fazendo isso, permite que fatos, dados e fenômenos se expressem sem previsibilidade absoluta… contando, então, com a interação do sujeito para exprimir significados. A realidade não surge apenas como conjunto de dados. A realidade resultante de dados (determinantes) e também resulta de interações que sujeitos vivem. Não é, portanto, apenas uma explicação descritiva segundo uma lógica interna aos dados, fatos e fenômenos. Mas… eu tô falando demais, Wanderley. Apaixonei-me por aquele “tema” de seus considerandos…
Wanderley Geraldi – Retomo, então, Adriano, com a seguinte direção… a partir de nossa crise e desilusão (sofridas profundamente) percebíamos que era bastante criticável aquele modelo de universidade e desenvolvimento regional. Poderíamos ter nos formado com mais criticidade em relação (e a partir) ao nosso projeto de origem… e nesse sentido, nosso retorno às unidades locais teria sido menos chocante, teria sido menos incompatível. E mais. Teríamos vivido com mais criticidade o período de formação (mestrado, doutorado). Teríamos sido mais exigentes em relação ao processo formador nos “centros de excelência”. Calor, penso que é consenso entre nós a relevância da formação ampla, penso que é fundamental esse “não fechamento” na pós-graduação na especialidade. No que é que estou insistindo? Estou realçando um tipo de criticidade que não perde de vista a complementaridade entre o particular e o geral. É um tipo de criticidade em que a abertura da formação ampla não desentranha (e não desenraiza) mas pelo contrário potencializa a relação do sujeito pensante com suas matrizes regionais. Às vezes faço uma certa comparação, buscando entender melhor esse conjunto de processos, a comparação é a seguinte: muitos de nós de nossa região e muitos outros de outras regiões com que convivemos nos ‘centros de excelênica’ vivíamos nossa formação um tanto deslumbrados. Com o quê? Deslumbrados com o brilho da USP, ou da Unicamp, ou da Fundação Getúlio Vargas… enfim, deslumbrados face ao universalismo que é possível nos centros de excelência mas que não é próprio deles. Imaginemos, todos aqui, que enorme tem sido o deslumbramento de um sujeito vivendo sua formação na Sorbonne… ou em Manchester. Pois bem, chamo nossa atenção para uma certa criticidade que pode (deve) acompanhar a abertura típica do processo formador.
Adriano Nogueira – Saliento certas semelhanças, professor Wanderley. Este grupo de docentes aqui, Campo Mourão, no norte-noroeste do Paraná, certamente tem percebido esta problemática. Eles estão refletindo um projeto de universidade regional. Eles foram faculdade municipal. Depois se tornaram faculdade estadual… no futuro pretendem constituir-se como universidade regional…
Universidade, região e desenvolvimento
Wanderley Geraldi – Confesso que esta iniciativa, neste momento histórico, me motivou bastante para estar aqui e tentar contribuir. Até mais, muito mais eu diria, do que como mestre e doutor em linguística… como me apresentou o Adriano. Estou prazerosamente com vocês por causa deste seu momento de tentar fundar uma universidade… demandando, claro, formação de quadros. Vocês são faculdade pública. De certa forma vejo uma vantagem sobre nossas tentativas… Éramos uma faculdade que dependia do pagamento dos alunos. Vocês são faculdade pública… o compromisso econômico com os alunos é de uma outra natureza. Os projetos e pesquisas irão fazer leituras de transformação da realidade, por um lado, com o apoio do olhar científico; por outro lado, com aquela qualidade de atenção política que considera que o desenvolvimento regional tem sido fortemente marcado de fora pra dentro da região.
Pude ler… o Adriano me passou… pude ler algumas das elaborações de vocês dando corpo ao futuro projeto de tese (monografia ou dissertação). Notei que vocês têm refletido a relação entre ethos e ciência, tendo em mente um quadro geral para que os projetos e pesquisas de vocês correlacionem profundamente produzir conhecimento e inserir tal produção no dinamismo com que um ethos local e regional vai sendo transformado. Nesses tempos, em especial vocês perceberão a influência do Mercosul.
O discurso e o olhar científico se politizam através dessa correlação entre ciência e vida. A ciência via sendo, então, uma certa qualidade de conhecimento que se produz mediante certo conjunto de postura que são, ao mesmo tempo, metodológicas no que se refere à dimensão científica e éticas no que se refere á qualidade das transformações propostas pela explicação.
É por aí que eu vinha fazendo paralelos, vinha trazendo algumas reflexões sobre aqueles anos de 60 e 70. Vinha oferecendo reflexões à reflexão de vocês. Certa autocrítica que venho tecendo aqui tem u corrimão no qual vocês perceberão a pergunta de fundo: qual ethos vai orientando a criação coletiva de conhecimento científico E qual ética vai conformar o embasamento científico suficiente para uma universidade comprometida com o desenvolvimento em Campo Mourão e região?
Quando citei o tripé clássico, ensino-pesquisa-extensão, eu mencionava a forte tradição, entre nós, da extensão. Fazendo um início de autocrítica, vocês notaram que eu realçava a politização de nosso projeto de universidade: era bastante crítica mas não era suficientemente ampla, a ponto de incorporar e trabalhar dados de realidade como sendo, também, modos de transformação qualitativa… faltava à análise o prisma cultural.
Na amplitude de suas perguntas atuais, a pesquisa e a extensão têm esse compromisso de tecer correlações. São práticas que se politizam através dessa pergunta de fundo: que ethos nos orienta? Qual a postura ética que orienta a metodologia de inserção e produção de conhecimento científico? Percebam, estou enfatizando uma certa qualidade de respostas. Mesmo quando formos pensar/investigar e criar conhecimento específico (por força da demanda desse conhecimento específico) a qualidade de nossa resposta é dada por esta orientação…
Adriano Nogueira – Que nos permite e facilita ver certas questões, que nos dificulta ver outras questões… naquele sentido em que o Prof. Wanderley mencionava de “colocar-nos como problema” um conjunto de fatores que nos são caracterizados através de dados e estatísticas, mas que – quando devidamente problematizados – são a evidência de fenômenos transformadores. Cumpre-nos, aí, correlacionar dados locais com fenômenos amplos e a partir de ambos entendermos a dinâmica de transformações sócio-culturais…
Wanderley Geraldi – Sim, Adriano e, eticamente/metodologicamente pesquisados, os fenômenos constituem e organizam conhecimentos. Apresentam-se como conhecimento. Comento exemplos que me parecem regionais: o fato de maior ou menor produção de café ou soja, o fato de que terra ‘rossa’ é muito fértil (como é essa terra paranaense), venha sendo engolida pela cana-de-açúcar não é apenas um dado regional… Muitas vezes tomamos contato com esse fato impactados pelos dados estatísticos. Mas além do dado numérico, há um fluxo de transformações, fruto de várias interferências. Mediante uma abordagem ampla é que eles serão percebidos na cultura cotidiana local e os compreendermos pela inter-relação do local com o regional, com o estadual etc.
Vivemos em fins da década de 90. Esse momento reduz a soja, estimula cana-de-açúcar e isso faz com que uma região fértil e rica passe a ser produtora mas dinheiro… Quero dizer… e tento pensar segundo uma lógica do produtor agrícola: se não há colheita local diversificada, não existe produção do regional para o local, inexiste dinheiro circulando na região. Se inexiste dinheiro circulando no âmbito das relações produtivas locais não há condições de estímulo do desenvolvimento regional. O local ne a região está sendo saqueada e enriquecendo outras empresas de longe daqui. Esse conjunto de fatores é relevante, sem dúvida, para o trabalho científico. Mas é relevante não apenas como conjunto de dados ou como percentuais estatísticos. Percebam, estou levantando questões locais que não podem ser respondidas apenas localmente. O ethos local… dessa gente produtiva segundo uma visão de mundo localizada… isto me permite levantar perguntas/questões que não podem ser respondidas localmente.
Tentando ainda pensar segundo a lógica do produtor local: um dos primeiros pensamentos desse produtor é reduzir sua área de plantio e assim correr menos riscos. Plantar apenas para o gasto é uma forma de reduzir os riscos e garantir um mínimo para a sobrevivência. Os hábitos de consumo local… a produtividade do solo sem cansá-lo e sem erosão… a economia local para criar filhos, educa-los e vê-los crescidos e produtivos… percebam: são questões éticas, elas são formuladas através de um saber cultural, são como um pano de fundo sobre que as transformações ocorrem. No entanto, como eu dizia, as transformações estruturais ocorrem movidas de fora para dentro. E elas ocorrem baseadas num saber que “escapa” ao nosso ethos regional. É com base nessa espécie de desajuste entre o local/regional e o estrutural/amplo que está o trabalho científico.
Ethos, ética e produtividade
Penso que o enfoque científico exige a complementariedade ética. Por quê? Exatamente porque o enforque científico, se for pensado isoladamente… será apenas “pura aplicação” tecnológica. Assim reduzido, a pura técnica, o enfoque científico não é o responsável pelas transformações… mas será o lugar de compreensão destes fenômenos.
Estou me lembrando, agora, da lógica cientifica dos agrotóxicos e de sua química eficaz a curto prazo. Certamente se produzirá muito, nesta e em outras regiões, com base na opção pela monocultura e uso de agrotóxicos; é uma opção com base na rentabilidade de curto prazo. Dão a ilusão de fomentar a vida da produção. Mas, nós já temos comprovação disso, a lógica científica dos agrotóxicos que caminha junto com a opção pela monocultura não vitaliza a vida ecossistêmica. É importante que haja ética, ela vai dosar as prioridades da sobrevivência local com a necessária contribuição da ciência.
As pesquisas em seus projetos irão abrir-se certamente para visões de mundo e de ciência mais abrangentes do que o mero localismo. E serão pesquisas e projetos em que o ethos, a ética, manterá, eu espero, peso e densidade epistemológica na busca de respostas.
Professora Loli – Wanderely… a mim me parece muito relevante esse “até aí” em que sua reflexão vai se constituindo. E nisso quero comentar ou realçar um aspecto. Depois, calor, você reconsidera esse realce dentro de sua linha-eixo de reflexões… Essa busca de respostas provoca um amadurecimento importante. A que me refiro? Refiro-me aos desafios, refiro-me às pessoas buscando responder e enfrentá-los com ciência e ethos e assim vai-se formando uma certa maturidade metodológica. Esse amadurecimento faz com que a produção e o pensamento produtivo regional não fiquem apenas à mercê das tecnologias. Pois vai havendo amadurecimento através de respostas encontradas…
Quero comentar, em rápidas pinceladas, aspectos de minha atuação. Além da presença na Câmara, pois sou vereadora, tenho mantido contato frequente com várias professoras aqui da FECILCAM. Percebo algo importante. Está-se tratando de correlacionar ensino e situação de vida de produtores camponeses. Com base em etnografia da sala de aula (etnografia dos estudantes) vai-se tentando correlacionar: organização curricular, avaliação e produtividade local. Penso que a formação dos alunos seja localmente importante… que se lhes facilite emprego… e seja também formação não bitolada, abrindo-lhes horizontes mais além do mero “conseguir um cartucho”. A princípio eu imaginava que eram duas instâncias muito separadas e, poranto, muito dificilmente correlacionáveis num projeto de pesquisa. Percebo, pela sua fala, que a correlação entre ensino, pesquisa e produtividade…
Wanderley Geraldi – Permite-me, professora, utilizar uma imagem. Se a compreendi bem, o seu projeto vai desenvolvendo-se na medida em que configura um espaço regional e que se forma gente. Mas não forma apenas segundo conteúdos locais, considerando-se que há problemas e transformações que surgem de fora da região… de fora do estado do Paraná. Mas também não basta formar gente apenas conforme parâmetros muito amplos… pois essa graduação serviria apenas pra que os formados se sentissem expulsos da região, buscando os grandes centros. Portanto, na medida em que seu projeto delimitar um espaço regional formador, ele irá delimitando, também, o entorno… ou as circunstâncias em que esse espaço existe. Minha imagem é esta: eu tomo uma folha de papel sulfite e faço nela um buraco; posso perceber muito melhor o espaço do buraco se considerar a área de papel não furada. Vale dizer, o espaço localizado (do buraco) ao configurar-se traça seus limites. Que é externo define o interno e suas dimensões.
Um outro comentário, de natura mais metodológica. Na bibliografia que sugeri a vocês [prévia a minha visita, aqui] constava o livro do Boaventura de Sousa Santos: Pela mão de Alice (Edições Afrontamento, Portugal). Vocês terão reconhecido em minha exposição certo delineamento que busquei ali. Notem que estou me dirigindo para o meu campo de especialidade, a linguística, a linguagem através de um roteiro que foi previamente explicitado. Além do livro de Boaventura, fiz opções de aminho, passando por problematizações que li nos atuais projetos e intenções de pesquisas de vocês.
Continuando, quero comentar e aprofundar as reflexões de vocês dois, Adriano e da vereadora Loli. Retomando aquilo em que vínhamos refletindo… pensar , pesquisar e produzir conhecimento cientifico a partir do estreito contato com a realidade, tanto local quanto mais ampla… creio que é fundamental conversarmos sobre aspectos da pós-modernidade. Nesses anos de final de século vivemos uma determinada forma de globalização. É globalização informatizada. E ela tem produzido um fenômeno correlato: a produção e circulação de significados viaja globalmente e instantaneamente criando aqui e ali espaços locais. Cito um exemplo, no conteto europeu: estamos tomando contato com o fenômeno de sérvios e macedônios se expressando, com base em suas razões locais. Se bem me recordo… povos macedônios e povos sérvios era leitura de história antiga no meu temo de ginásio e se reportava aos tempos gregos e romanos, inícios da era cristã. Como eu dizia, a globalização tem produzido localismos: povos locais, populações reivindicando identidade localizada… estive recentemente em um congresso na Universidade de Barcelona e ali me diziam que hoje, mais do que ontem, o regionalismo em Barcelona se se esqueceu do idioma espanhol e se comunica pela língua local [catalão]. Assim, duas direções convivem no fenômeno da globalização: por um lado a extrema impessoalidade na internet e computação, você pessoa desaparece como identidade histórica na medida em que se desenraiza acessando sites, home pages, etc de qualquer parte do mundo… por outro lado, ressurgem as reivindicações muito localizadas, ressurgem os corpos e as cores de pele… muitas vezes ressuscitados sob a forma do preconceito.
Consumir não é exercer a subjetividade
Outra característica acentuada pela globalização é o consumo. Consumir é uma característica da produção. Esta é feita pra consumo rápido. Tudo que é produzido “caduca” logo e precisa ser reposto logo, havendo então mais consumo. Antigamente havia gente que consertava, entendia de fazer reparos; havia pessoas e com elas um knou-how de consertos: consertava-se relógio, consertava-se chuveiro elétrico, reparavam-se sapatos… havia uma cultura mecânica-oficinal que fazia reparos. Hoje isso vai desaparecendo. Parece mais fácil trocar. Consumir mais é trocar muito, consumindo mais. Meu computador foi recentemente comprado e, se fosse 286 ou 386, era adequado para minhas necessidades. O consumo vem até meu cotidiano e diz: tá tudo superado, compre um Pentium. E já vou sendo avisado que o Pentium é de curta duração… logo, logo, deverei consumir outra versão. Precisamos pensar sobre isso. E não basta crítica moralista em cima do consumismo alucinado, pois essa é a face explícita, o consumo é demanda do modo de produção, invisibilizado na expressão “sociedade de consumo”. Pensar sobre o desenvolvimento regional requer pensarmos estas duas características da globalização.
Um outro aspecto ou, conforme Boaventura, uma outra perplexidade para nós, em nosso cotidiano, seria pensarmos a região sem localismo, sem bairrismo que provoque fechamento. Esse outro aspecto que me ajuda a pensar a região. Isso qualifica o trabalho de criação de conhecimento… aprimora uma determinada concepção de subjetividade.
Adriano Nogueira – Eu dirá, Wanderley, avançando em tuas pegadas, que nosso compromisso com uma concepção de subjetividade é coerente com a “definição” de espaço regional não-alienante, não bairrista. Essa reflexão poderia começar, penso eu, com a questão: e quem é que, constituindo conhecimento científico, delimita espaço regional não alienante? Estou me baseando em alguns dos projetos de pesquisa/trabalho de professores da FECILCAM. Nestes surge, como perspectiva, uma retomada de subjetividade: isso tem a importância de contribuir qualitativamente com as propostas de formação…
Wanderley Geraldi – No livro-texto que recomendei, Adriano, do Boaventura, há alguma contribuição que nos dá uma mão nisso aí. E Paulo Freire também, tomando “definições” universais do ser humano: que é que o caracteriza? O que é inescapável para o ser humano? Qual seria um ponto de partida amplo sobre o ser humano?
O ser humano é inacabado. Faz coisas, trabalha e faz opções, porque está buscando completar sua humanidade. Tomo algumas categorias psicanalíticas, nesse momento da reflexão: o que fundamenta o ser humano é o desejo de complementariedade… é o desejo de saciar-se. O que move o ser humano é esse desejo. Perceber tla incompletude é definir rumos e mover-se, buscando mudanças. Buscar e tramar mudanças é um “saber sobre si” que nós, humanos, exercemos. E é exatamente aqui que o sistema interfere… buscando controle sobre a opção que o movimento de busca. O sistema interfere fortemente sobre os saberes, de modo que a mudança não explicite uma outra opção, fruto de um “saber de si” típico de gente-humana inacabada. Mas ele interfere de modo tal que a opção (e a mudança) seja confundida com mais consumo, outro consumo… cuja razão de ser não é um saber sobre si mesmo, sobre o ser humano.
Adiano Nogueira – Saber que relativiza… permite-me, mestre Wanderley? Sua reflexão se aproxima de anteriores reflexões (e posturas) que aqui neste grupo já se caminhou. Relativizar quer dizer: tornar relativo à, fazer referência à… fazendo transparecer explícitas as relações entre ser humano e objetos, entre ser humano e fenômenos… entre ser humano e outros seres humanos. Eis que estamos falando sobre aquela tal abordagem qualitativa antes mencionada. Paulo Freire gostava de nomear isso como tornar visível, tornar ciente a razão de ser (raizon d’etre) de fenômenos, de coisas e de todos os aspectos objetivos da cultura. O que aparece à primeira vista como um dado vai sendo compreendido como “dando-se” às interações através de que o ser humano busca completude…
Wanderley Geraldi – Não vejo problema, já disse, em que vocês me interrompam. Vou retomando uma e outra vez com mais noção de que minha linha de reflexão contribui, “acertando no alvo” em que vocês trabalharam/trabalham… Mas, enfim, é sse tipo de saber – o saber-se incompleto – que permite ao ser humano apreender-se em movimentos, buscando aperfeiçoamento. Em fazendo isso, faz história. Faz-se a si mesmo histórico. É único, portanto. História é o nome social e coletivo do processo de tentar mudanças. Cada ser humano, como espécie, é incompleto e se move socialmente desejando complementariedade. Cada ser humano, como indivíduo, é único, caso único e individual. É essa correlação entre, por um lado individualidade única e, por outro lado, sociabilidade histórica e mutante que faz o ser humano optante e determinado … desejante e limita.
E aqui eu me valho de uma categoria marxista para ser mais preciso sobre… movimento desejante, optante. A categoria: utopia é que move, é o que “puxa” os seres humanos. Utopia é uma construção socialmente validada, não é algo etéreo, no ar. Marx valeu-se dela para criticar um certo idealismo nos socialistas utópicos de seu tempo. Cito um deles: Saint Simon. Este pensador supunha utopia territorializada. Que é isso? Ele supunha que a utopia da igualdade… a utopia da distribuição equitativa das riquezas poderia ser conseguida em um determinado território, em algum lugar construído fora da sociedade cotidiana. Fazer o socialismo, para estes idealistas, era buscar e construir esse lugar ideal, uma espécie de paraíso na terra…
… os homens buscariam construir vários “alfaville”, buscando formar vários “condomínios fechados” isolando gentes nesses paraísos e buscando esquecer (ali dentro) os problemas da sociedade humana. Permitam-se uma comparação com nosso percurso? Esse tipo de idealismo (criticado por Marx) fazia considerações bairristas de espaço regional…
Dentre a bibliografia que lhe sindiquei previamente a este bate-papo-relfexão, recomendo um dos capítulos do livro Rumo à Estação Finlândia (edição da Cia. das Letras). Exercendo na leitura a criação de parâmetros de crítica, ali vocês encontrarão elementos sobre que estou construindo minha fala. Nesse momento, estou utilizando a noção de utopia como uma conquista socialmente válida, validada. Não suponho utopia naquele sentido criticado por Marx, aquela utopia territorializada de idealistas.
Linguagem: um lugar específico?
Um próximo passo, percebam… um próximo passo através de que vou indo par ameu campo específico, a linguagem e a ciência da linguagem. Meu próximo passo requer aprofundarmos a noção de sujeito. Um tanto mais profundo, além do que já foi dito auqi. A noção de sujeito é uma dimensão existencial que reúne individualidade e sociabilidade. Concomitante com essa dupla dimensão, a noção de construção de sujeito se faz com história. Sujeito é histórico, sendo história nas suas múltiplas interações. É através dessa noção de sujeito que, como eu dizia, se concretiza o ato de perceber/descortinar horizontes de possibilidades. Percebendo horizontes possíveis, o sujeito vai-se construindo como história de vida (individual) em histórias de vidas (coletivo). Daí podermos afirmar que sujeito é único enquanto indivíduo e só existe sendo coletivo (sendo social).
Na medida em que descortina/percebe possibilidades, tal sujeito também percebe (visualiza) limites. A cada vez que eu, sujeito, percebo possibilidades o que eu que eu vejo? Vejo limites. Percebo circunstâncias… semelhante àquele exemplo que citei sobre o buraco feito no papel sulfite… percebo melhor as possibilidades quando vejo os limites que circunscrevem tais possibilidades. Isso provoca meu deslocamento, movo-me buscando possíveis horizontes. O que “nutre” tal movimento é o desejo…. o que atrofia tal movimento é a alienação, a rotina. Onde é que a rotina faz sucesso? Onde é que, como eu dizia, o sistema interfere no “saber de si”? A rotina me impede de calcular os horizontes de possibilidades tanto mais minha atuação enxerga opções concomitantes com os limites. A rotina é o inverso disso. Não percebendo possibilidades e não descortinando alternativas, eu não sinto os limites e aí me acomodo. Não alimento com utopia o meu desejo… Aqui, valho-me desta categoria: o desejo representa aquilo que faz falta… por exemplo, a completude que o outro me pode dar, ainda que provisória.
Para agir, o sujeito (individual ou coletivo) faz representações de seu horizonte possível, elabora representações. Para compreender e, em seguida, tentar transformar com base em opções, que o sujeito vislumbra como possíveis no contexto. Procede hermeneuticamente, portanto. O sujeito utiliza representações. Por isso a linguagem com que as constrói é constitutiva. Ela é constituinte dos sujeitos porque ele pensa com ela e a recebe nas interações sociais. No campo das interações. Se não dispusesse de representações, o ser humano não compreenderia nem seus horizontes, nem seus limites. A linguagem, percebam minha caminhada, é uma das práticas sociais importantes. Sendo linguista, priorizo a prática linguística. Sendo cientista, observo que há práticas sociais várias… uma das quais é a linguagem.
Bem, era esse meu percurso para esta aula. Agradeço que vocês vieram costurando esta minha fala com suas intervenções, realçando tópicos durante a reflexão. Peço-lhes que explicitem outros aspectos do processo. Eu já falei bastante… muito me agradaria escutar como vocês se apropriam desta reflexão…
Professor Carlos – Dentre os vários tópicos sobre que o professor refletiu, fica até difícil escolher uma primeira colocação. Wanderley… quero tomar e realçar parâmetros para a continuidade de nosso processo de estudos. Sou professor do Departamento de Letras, aqui na FECILCAM. Estou, ainda, bem impressionado pelas ótimas reuniões de estudos que viemos fazendo, em dias anteriores, precedendo a preparando a chegado do mestre. Esse, exatamente, tem sido um dos parâmetros pelo qual aproveitamos e incorporamos a visita-contribuição do Geraldi: estamos conseguindo leituras e reuniões de estudo para coletivizar as leituras. E isso, eu percebo, vem criando (ou vem reforçando) um coletivo entre nós, da faculdade. A cada uma destas oportunidades eu sinto que mais gente se aproxima mais ainda da proposta por nós planejada… costumo dizer, lá na APPSindicato que basta contaminarmos mais uma pessoa pra avaliar que nossas reuniões estão fertilizando. Nesse sentido, eu diria que estamos constituindo uma oportunidade histórica.
Um segundo aspecto que eu realço a partir das colocações do professor Geraldi é a formação propriamente dita. A formação profissional de professores não pode descuidar do aprofundamento científico; considero excelente quando este aprofundamento toma a ciência sob o enfoque que aqui observamos. Ou seja, como ele sublinhou quase no início de sua fala, ciência combina paradigmas metodologicamente estruturados com dinamismos da cultura em transformação. Embora a luta sindical não fosse, diretamente, o tema anteriormente sugerido a ele, pareceu-me que a luta sindical está subjacente no percurso da reflexão do professor. Comento aspectos de minha própria trajetória: sendo professor do departamento de Letras, faz tempo venho me encontrando com professores de português, gente da rede. Penso que minha vontade antiga se ajeita mais através desse teor de reflexão e, nesse avanço, toma corpo um projeto de pesquisa. Isso exige que tenhamos mais contatos, nós, os docentes do Departamento de Letras; sim, há reivindicações que vão surgindo nas reuniões (com professores) e sei que colegas meu têm, já, bom caminho andado em algumas das reivindicações temáticas. Esse conjunto de fatores vai estreitando a convivência e daí surgem fatores de crescimento profissional.
Como eu dizia, uma certa perspectiva de ciência e de investigação teórica facilita que nós, professores da faculdade, nos aproximemos ainda mais de profissionais (da região) incentivando neles a preocupação com a educação. Estamos criando e vivendo uma oportunidade histórica: nós nos aperfeiçoamos lendo, discutindo, ouvindo e redigindo projetos; concomitantemente, pessoas e profissionais educadores da nossa região podem ser envolvidos nesse aperfeiçoamento.
Professora Sinclair – Como representante da Direção da FECILCAM realço nossa satisfação profissional: esse aperfeiçoamento é fruto de um processo de estudos coletivamente planejado; fazemos com que o aperfeiçoamento frutifique também no sentido acadêmico. Começamos devagarinho… em doses homeopáticas, como Adriano gosta de definir… e estamos constituindo nossa futura universidade. Costumo dizer: “é um processo sem volta”. Nunca mais seremos como antes, é caminho sem retorno. Percebo que mais e mais pessoas se contaminam com base no esforço deliberado, cada um segundo o alcance de suas pernas. Penso que isso ocorre na medida em que temos sido um processo contínuo. Valorizamos a riqueza de ser público o espaço e a motivação de crescimento… no sentido, creio, sublinhado pelo Geraldi. Com tais elementos nós somos, já, o embrião de uma futura universidade com qu estamos sonhando. E isso é muito satisfatório.
As dificuldades surgirão, vocês bem sabem disso. Gostei do que refletiu o mestre… ele dizia que vislumbrar novas possibilidades é, ao mesmo tempo, perceber limites. Temos e teremos novas dificuldades pela frente e isso se dá proporcionalmente ao avanço pretendido. Parece até, eu diria, que quando percebemos novas dificuldades é porque ficou mais claro nosso potencial; quando enfrentamos as limitações é proque ficaou mais nítido o valor de nossa pretensão de crescer.
O Prof. Carlos mencionou um aspecto que eu quero enfatizar mais. São passos importantes que anunciam o rumo de nossas futuras realidades:
- Há mais sinceridade entre os docentes deste grupo. No sentido profissional, estou dizendo. As pessoas se abrem mais, eu noto isso. As realizações criadoras de docente não ficam apenas restritas dentro da aula lecionada… as pessoas se abrem, comentam, compartilham.
- Torna-se mais fácil coletivizar os avanços. Assim, o progresso é coletivo e tem repercussão no espaço público da faculdade. Fica marcado e explícito que a linha desta atual direção colabora, valoriza e não faz imposições. Vocês já sabiam disso, foi dito desde antes. O que é bom é comprovar, na prática, aquilo que vocês ouviram, antes.
- O que é público e visível ganha expressão, transparece aos olhos de todos. Parece que antes, quando planejávamos algumas realizações, tínhamos vontade de avançar rumo a objetivos meio claros, apenas. A coisa se esclarece bem mais é quando “arregaçamos as mangas”. Percebo professores e funcionários buscando um FECILCAM menos burocratizada em sua vida interna cotidiana.
- E é como uma bola de neve. O dinamismo requer revisão… exige mais dinamismo. Quem está aceitando repensar e se abre para as consequências de crescer… parece que fica incomodado com a mera rotina. Creio que o Geraldi caracterizou muito bem o perigo da rotina… tanto ele quanto os outros parceiros nossos, no Núcleo NIMEC/Unicamp, têm sido importantes na nossa caminhada.
- Acho importante sublinhar algo: não apenas os professores estão inquietos, tramando mudanças. Noto entre os funcionários uma vontade de melhora. Não sei se por setores administrativos… não se se por funções… mas sei e percebo que entre os funcion´rios existe uma certa vontade de melhoria.
Professora Leila – Sou da comissão que, depois, irá redigir uma síntese (uma carta síntese deste seminário). Como vocês sabem, essa carta síntese será redigida registrando a opinião de cada departamento e de cada setor funcional da FECILCAM. Acho importante comentar algo que Lourdinha, Diva e eu estamos cochichando. No que se refere aos professores, há um repensamento que vai revendo projetos… pesquisa… tipo de metodologia… atuação intra e extradeparmaneto… atuação na comunidade… etc. No que se refere aos funcionários, seria importante obermos deles algumas posições ou proposições. Que é que eles têm refletido? Talvez por setor, não sei, talvez por função exercida, os funcionários vão se acostumando a “refletir universidade”. Após cada seminário (que, é claro, está aberto à participação deles) que é que eles refletem?
Coloco um tópico em que eles, funcionários, muitas vezes nos auxiliam a progredir. É sobre o andamento acadêmico. Como evoluir? Noto que os funcionários percebem maneiras de agilizar. Quais mudanças? Talvez uma futura tese (dissertação) surja nesse assunto: diria respeito à evolução que vivem os funcionários, quando uma faculdade planeja transformar-se em futura universidade…
Professora Sinclair – Se não há mais pessoas inscritas, se ninguém mais levantou a mão para comentários… é assim gente? Vou então colocando uma pausa. Não digo que vou finalizar. A cada vez eu noto que esse processo não se fecha. A participação do Geraldi não termina aqui, nesse final de seminário. O que eu, sim, quero comentar é nossa feliz gratidão pela presença dele. Futuramente quando houver frutos dessa visita dele, nós o convidaremos de novo. Com satisfação.
Notas
- Este é mais um daqueles textos que até hoje ainda me colocam a questão: deveria ser publicado? Merece páginas de livros? Como se poderá notar, trata-se de transcrição de uma aula para professores, ocorrida em Campo Mourão, no Paraná, numa promoção da então FECILCAM (hoje Uninorte – Universidade Estadual do Centro do Paraná) com a participação da APP/Sindicato. O coordenador geral das atividades foi o Prof. Dr. Adriano Nogueira. Mais uma vez este texto tem existência graças a ele, que gravou a aula, transcreveu e editou o texto. Havia, na época, um movimento da região Centro do Paraná lutando pela criação de uma universidade estadual (a Faculdade isolada era estadual). O tema mais específico da minha fala era este: a questão da universidade e sua inserção regional, ainda que sendo Universidade, isto é, aspirando ao universal. Certamente a participação neste processo de formação com este tema se deve ao fato de eu ter sido pró-reitor da Unicamp e ter tido a experiência de trabalhar no processo de criação de uma universidade no interior. O texto resultante está aí. Transcrito. Diria que a autoria acabou sendo conjunta com os professores e com o Adriano que editou a fala. Os subtítulos são claramente intervenções da transcrição. Apenas me coube autorizar que o incluísse no livro Ciência para quem? Formação científica para quê? (Editora Vozes/Fecilcam, 1999, p. 75-102). Nem li a transcrição. Recebi o livro de presente, do Adriano, em janeiro de 2000. Digitá-lo agora será também minha primeira leitura. Tenho minhas dúvidas se deveria considerar que este é um texto meu… O leitor perceberá as constantes interrupções feitas pelo Prof. Adriano Nogueira. Lendo com distância esta transcrição da aula, de uma coisa tenho certeza: toda vez que aparece “vosso/vossa”, não fui eu quem usou este pronome, ele jamais aparece na minha escrita, muito menos apareceria na fala… e a certeza de que o Adriano tentava trazer minha fala para os objetivos dos estudos que o grupo vinha fazendo, já que eu narrava uma experiência de ideologia do desenvolvimento regional distante no tempo e no espaço. E seguramente eu não conseguia entender o subtexto das intervenções e continuava insistindo, mas como quem pisa em ovos, na tecla de que o conhecimento não é resultado da acumulação de dados, que a explicação deles está bem distante da região e que universidade alguma pode se fundar no desenvolvimento regional, ainda que se queira inserida na realidade circundante (o que é diferente do conceito de desenvolvimento que a elite pensa para sua cidade e para os seus membros). Ressalto também: como aparece na transcrição, eu havia lido as propostas de pesquisas do grupo de professores. Estes projetos tinham sido elaborados com a orientação do próprio curso dentro do qual estava eu dando uma aula… Há, portanto todo um subtexto – o dos projetos e da vinculação destes à região, contra o qual pretendia me bater, sem contudo transformar a crítica em desencorajamento à pesquisa. Enfim… como a aula está publicada em meu nome, como capítulo do livro, e como estou digitalizando todos os textos publicados por mim, nestes “textos de arquivo”, fato que me liberará de manter todas as publicações comprobatórias de curriculum, de que já não preciso, incluo também estes textos orais. Aliás, são poucos os meus textos que são transcrições e neles teve presença o Prof. Adriano! Lendo a transcrição, fico me perguntando como podem as pessoas ter ficado na sala, ouvindo… Nada me parece claro! Peço a compreensão compassiva dos leitores: repetições, retomadas, avanços e recuos tanto no conteúdo da fala quanto no estilo oral aqui transcrito talvez façam o leitor abandonar o texto. Porque uma coisa é ouvir uma exposição, outra coisa é lê-la, perdidas as entonações e o contexto que levaram a retomadas e reenquadramentos do mesmo assunto.
- Acrescento agora uma nota: antes mesmo das comunidades eclesiais de base, que se tornaram importantes em São Paulo, havia o movimento comunitário conduzido pelos frades capuchinhos. Estávamos em plena ditadura militar. Ter um trabalho com as pessoas das periferias, com os pequenos agricultores, com os trabalhadores rurais e urbanos mostrava a fisionomia da instituição, fisionomia que tinha suas consequências inclusive no controle das atividades, tanto político quanto burocrático (das instâncias de controle do ensino superior).
- Faço aqui uma correção da transcrição da fala, tal como aparece no livro e que não corresponde ao que narrei então. O colega que tinha a casa de fundos se juntou a nós e criamos uma república com dois casais e um colega solteiro, todos mestrandos da Unicamp e todos procedentes da FIDENE.
- Note-se: primeiro houve investimento nestas universidades, depois os órgãos de fomento, alegando meritocracia, continuaram a investir nestes mesmos centros… produzindo concentração de recursos, agora em nome de um mérito que resulta na verdade do investimento feito e que continua a ser feito! Quando será possível quebrar esta corrente que hipocritamente julga que está beneficiando quem tem mérito? (nota acrescentada)
- Acrescento hoje: obviamente o termo globalização está sendo usado no sentido de universalização do conhecimento, não no sentido que ganhou definitivamente na ideologia neoliberal que recém engatinhava no país.
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