Palavras escritas, indícios de palavras ditas

Palavras escritas, indícios de palavras ditas

A elevação das práticas discursivas a lugar privilegiado de investigação científica ocorre num contexto de no mínimo duas enormes insatisfações: de um lado a insatisfação com os resultados da cientificidade galileana, cujos alicerces vão sendo postos em questão não mais pelas “instáveis” ciências humanas, mas pelas ciências da natureza; de outro lado, a insatisfação com a teoria do sujeito centrado, unificado, homogêneo e racional, que iluminou o fazer científico ou, mais adequadamente, a construção de nossas compreensões, quer porque admitia um sujeito emocionalmente distanciado, objetivo e impessoal diante de seus próprios enunciados científicos, como se estes derivassem das próprias coisas, quer porque, na e da outra margem, destacava apenas as singularidades, as individualidades, as casualidades que conferiam aos enunciados a autoridade de seus autores.

As insatisfações não paralisaram os investimentos, ao contrário, redobraram esforços tanto para formular novos paradigmas do fazer científico, quanto para ultrapassar as dicotomias subjetivo/objetivo; singular/geral; qualitativo/quantitativo. A atenção às práticas discursivas talvez encontre aí suas raízes, porque nos discursos encontram-se simultaneamente os pares que os esforços do passado tentaram separar.

Antes de iniciar as análises de alguns textos produzidos por crianças em seus primeiros anos de escolaridade, inclusive para justificar porque nos textos podemos ler a articulação singular e única de outros textos, vou perseguir a intuição de que nos discursos se encontram o que costumamos dicotomizar, explicitando a concepção de linguagem que sustenta intuições e análises.

  1. A linguagem como atividade

Herdamos do estruturalismo francês uma concepção de linguagem como capacidade humana de construção de sistemas semiológicos e, emaranhados na discussão sobre o objeto da ciência linguística, acabamos nos debruçando sobre a língua, entendida como um sistema de signos utilizados por uma comunidade para a troca comunicativa.  A descrição do sistema ocupando o tempo do linguista deste século acabou por relegar a segundo plano a discussão desta capacidade de linguagem que caracterizaria o ser humano. Filósofos, semioticistas, psicólogos, etc. assumiram, na verdade, a questão como tema de suas áreas, e raramente os linguistas, enquanto tias, discutem a concepção de linguagem que subjaz às análises que acabam produzindo. Delimitados os terrenos, a descrição e a análise dos elementos e suas relações no interior do sistema construíram um exterior com o qual, no final deste século, retornamos a dialogar em função das necessidades de construção de explicações pra fenômenos internos ao sistema e que nele próprio não encontram seu fundamento.

Historicamente, como sintomas da emergência da necessidade de considerar o exterior como interno, redesenhando os limites e objetivos da Linguística, podem ser considerados:

  1. os fenômenos da dêixis: pessoa, tempo e espaço expressam-se nas línguas conhecidas através de signos referencialmente vazios, demandando a remessa às instâncias discursivas para preencher seus sentidos efetivos. Para Benveniste marcam a expressão da subjetividade. A partir desta constatação, já não se pode pensar o enunciado sem remeter ao enunciador e pensar o enunciador significa abrir espaços de reflexão antes excluídos da preocupação descritiva da Linguística;
  2. os fenômenos das modalidades: o esforço teórico para definir as condições de verdade das proposições acabou por elevar os enunciados afirmativos à categoria de modelares já que neles era possível distinguir uma proposição cujo valor de verdade poderia ser calculado. Obviamente, tal redução produziu resultados científicos interessantes e serviu aos programas de pesquisa que aproximaram a linguagem natural à lógica e às linguagens matemáticas, tanto assim que lógicas modais puderam ser construídas a partir do modelo da lógica bivalente. No entanto, uma aproximação intuitiva e pré-teórica às modalizações, a partir de um ponto de vista que não conceitua o significado como resultado de um cálculo matemático, permite, mais uma vez, encontrar nos enunciados as posições do sujeito que os enuncia. Reaparece, pois, o enunciador e sua relação com os fatos que enuncia. Para explicar tais marcas linguísticas é necessário abandonar a análise formal para poder compreender como estas relações se constituem;
  3. os fenômenos da performatividade: o pensamento clássico já criticara a concepção da linguagem como representação, em que um recurso expressivo se presentifica pra ausentar-se representando outra coisa [x -> y], a partir da noção de reflexividade da linguagem [x’ ->y] onde x’ = x reflete a si mesmo. A esta crítica, juntam-se hoje duas outras noções que acabam por exigir a construção de uma concepção não representacional da linguagem. Trata-se da não-transparência do signo linguístico (ou sua opacidade) e do fato de que ao falarmos, não só representamos estados de coisas no mundo, mas pela fala criamos no mundo estados de coisas novos. Fenômenos como o uso, na primeira pessoa do singular e no presente do indicativo, de verbos como prometer, jurar, declarar, etc. criam no mundo uma promessa, um juramento, uma declaração, etc. Ora, é impossível representar por x um estado de mundo que inexistia. E não se trata aqui de um uso ficcional e estético da linguagem, mas de um uso comum. Benveniste, Austin e Searle acabam por conduzir os estudos da significação para a teoria da ação e, mais uma vez, o externo se internaliza, revolucionando os estudos linguísticos e definindo novos objetos: as regras constitutivas (eminentemente sociais) dos atos que se praticam ao falar;
  4. os fenômenos da polissemia e do duplo sentido: higienizando o sistema, para definir um valor a cada um de seus elementos no contraponto com os demais, a linguística acabou por reduzir a polissemia à ambiguidade (e resolveu esta construindo o número de entradas diacríticas necessárias no estudo do léxico ou multiplicou as estruturas sintáticas de base) e o duplo sentido a usos desviantes da linguagem, de interesse apenas para a escuta psicanalítica. No entanto, no uso corrente da linguagem, as metáforas que vivemos, os processos de implicitação, os eufemismos e hipérboles etc. não podem ser jogados, por uma decisão teórica, ao cesto de lixo das questões da linguagem. O custo teórico da redução acaba por desfigurar o objeto que se quer compreender. As análises pragmáticas, os estudos da conversação, as contribuições da análise do discurso etc. acabam por desvendar um mundo da linguagem que não se deixa atravessar inocentemente. Falar é bem mais do que representar o mundo e construir sobre o mundo uma representação. E oferece-la ou impô-la ao outro.
  5. Os fenômenos da polifonia e da heterogeneidade: se a discussão do exemplo clássico “Todos os filósofos dizem que a terra é redonda” permitiu perguntas a propósito do comprometimento do falante com o conteúdo da proposição a terra é redonda – afinal, num sentido de dizer, o falante disse a terra-é-redonda – levou a cunhar os conceitos de uso e menção, as reflexões de Bakhtin, quer a respeito do processo sígnico de constituição da consciência enquanto internalização da palavra alheia, quer a respeito do jogo de vozes que na minha palavra revela a palavra do outro, levaram à redefinição do sujeito discursivo como o lugar de uma constante dispersão e aglutinação de vozes, socialmente situadas e ideologicamente marcadas.

Qual o custo de um tal conjunto de questões para a Linguística? Externo ou internos aos diferentes programas de pesquisa, este conjunto fez a linguística reaproximar-se da filosofia da linguagem; da psicologia [social, especialmente], da sociologia e da psicanálise, deslocando suas preocupações descritivas para a compreensão do próprio fenômeno da linguagem e de seu funcionamento. A suposição estruturalista da existência de uma língua pronta e acabada, objeto de apreensão do falante, submissa à descrição objetiva, foi substituída pela compreensão de que antes de qualquer outro componente, a linguagem fulcra-se como evento (Osakabe, 1988), faz-se na linha do tempo e só tem consistência enquanto real na singularidade do momento em que se enuncia. A relação com a singularidade é da natureza do processo constitutivo da linguagem e dos sujeitos de discurso. Evidentemente, os acontecimentos discursivos precários, singulares e densos de sua própria condições de produção fazem-se no tempo e constroem história. É nesta história que se constituem estruturas linguísticas que inevitavelmente se reiteram, mas também se alteram, a cada passo, em suas consistência significativa. Passado no presente que se faz passado: trabalho de constituição de sujeitos e de linguagem (Geraldi, 1991:5).

O deslocamento da noção de representação para a noção de trabalho linguístico exige incorporar o processo de produção de discursos como essencial, de modo que não se trata mais de apreender uma língua para dela se apropriar, mas trata-se de usá-la e, em usando-a, apreendê-la. Em segundo lugar, a eleição do acontecimento enunciativo como lugar de produção da língua faz intervir a noção de movimento, de modo que processos como a metáfora, a metonímia e a paráfrase se tornam lugares de ação com e sobre a língua dos sujeitos discursivos.

O trabalho linguístico, ininterrupto, está sempre a produzir uma sistematização aberta, consequência do equilíbrio entre duas exigências opostas: uma tendência à diferenciação, observável a cada uso das expressões, e uma tendência à repetição, pelo retorno das mesmas expressões com os mesmos significados presentes em situações anteriores. Trata-se, portanto, de conceber a linguagem como uma atividade constitutiva, de que as línguas seriam produtos. A reintrodução da “seta do tempo” (Prigogine, 1996), através do trabalho, obriga a compreender a língua como um sistema indeterminado, sujeito tanto a acasos quanto a regulamentações normativas. Por isso, nas práticas discursivas, reencontram-se subjetividade e objetividade; singularidade e generalizações; qualidades específicas face aos “tons apreciativos” de cada enunciação (Bakhtin, 1982) e informações quantificáveis e passíveis de avaliação objetiva.

 

  1. As insatisfações com a “teoria do sujeito”

Segundo Edgar Morin (1996), hoje é possível abandonar a “estranha disjunção esquizofrênica” que vivemos desde o século XVII, disjunção que se revela pelo fato de no cotidiano nos sentirmos sujeitos e vermos aos outros como sujeitos, mas nos examinando a nós e aos outros pelo ponto de vista do determinismo, os sujeitos se dissolvem, desaparecem. Ou negamos a existência do sujeito, ou o transformamos em fundamento de toda verdade possível. A possibilidade de ultrapassar este estágio de uma disjunção exclusiva começa a desenhar-se, pra o autor, a partir do fato de podermos. Hoje, conceber a autonomia. Citando Heinz von Foerster, afirma:

A auto-organização significa obviamente autonomia, mas um sistema auto-organizador é um sistema que deve trabalhar para construir e reconstruir sua autonomia e que, portanto, dilapida energia. Em virtude do segundo princípio da termodinâmica, é necessário que este sistema extraia energia do exterior, isto é, para ser autônomo, é necessário depender do mundo externo. E sabemos, pelo que podemos observar, que esta dependência não é só energética, mas também informativa, pois o ser vivo extrai informação do mundo exterior a fim de organizar seu comportamento. (…) Nós, por exemplo, levamos, inscrita em nosso organismo, a organização cronológica da Terra, a rotação da Terra ao redor do sol. Como muitos animais e plantas, também nós temos um ritmo inato, de aproximadamente 24 horas; é o que chamamos ritmo circadiano. O que significa dizer que temos um relógio interno, que registra o processo de alternância do dia e da noite. Por outro lado, nossas sociedades regem-se por um calendário estabelecido em função da lua e do sol, de maneira a organizar nossa vida coletiva. Na autonomia (…) há uma profunda dependência energética, informativa e organizativa a respeito do mundo exterior (Morin, 1996:36).

Tomando da biologia a descrição do modo de vida da bactéria, “um ser computante” que se ocupa de signos, índices, dados e através deles trata com seu mundo interno assim como com o mundo exterior; tomando da imunologia os modos de funcionamento do sistema imunológico, “que nos protege das agressões externas” pelo reconhecimento de um “si mesmo mediante uma espécie de carteira de identidade molecular própria do organismo particular”; e tomando da botânica a descoberta de que existe comunicação entre árvores de uma mesma espécie, entre outros exemplos e argumentos, o autor explicita um conjunto de processos autoconstitutivos da identidade e extrai um conjunto de princípio (princípio da diferença e da equivalência; princípio da identidade, princípio da exclusão e inclusão, e princípio da intercomunicação com o semelhante, que inclui a possibilidade de comunicação de nossa incomunicabilidade) com os quais pode definir o sujeito como um organismo auto-eco-organizador (com dependência externa), auto-exo-referente (para referir-se a si é preciso referir-se ao mundo externo), entrelaçamento de múltiplos componentes, que vive num universo onde existe o acaso e a incerteza, que “pode tomar consciência de si mesmo através do instrumento de objetivação que é a linguagem”, que é capaz de escolha entre alternativas e tem o sentimento de sua própria insuficiência.

Interessa aqui correr o risco de associar a um aspecto desta reflexão, aquele relativo ao princípio da intercomunicação com o semelhante, e portanto aos aspectos próprios do sujeito, ligados à linguagem e à cultura, reflexão procedente de outros lugares, a fim de ressaltar os aspectos fragmentários, instáveis e mutantes da subjetividade. Trata-se de tentar “compreender que os seres humanos são instáveis, nos quais existe a possibilidade do melhor e do pior, alguns tendo melhores possibilidades potenciais e que tudo depende dos acontecimentos, dos acidentes que lhes sucedem e que podem liberar algumas delas” (Morin, 1997:64).

Para esta aproximação, recorreremos a alguns conceitos formulados por Bakhtin em seu estudo da relação entre autor e herói. Nesta obra, Bakhtin se move entre mundos ético e estético e elabora um conjunto de categorias com que os aproxima, diferenciando-os. Na arquitetura do pensamento bakhtiniano, a relação com a alteridade é fundamental e é a partir desta relação, em que o herói é o outro do autor, e o autor o outro do heroi, que o pensador russa estatui o princípio básico que diferencia a relação estética da relação ética.

Um autor modifica todas as particularidades de um herói, seus traços característicos, os episódios de sua vida, seus atos, pensamentos, sentimentos, do mesmo modo que, na vida, reagimos com um juízo de valor a todas as manifestações daqueles que nos rodeiam: na vida, todavia, nossas reações são díspares, são reações a manifestações isoladas e não ao todo do homem, e mesmo quando o determinamos enquanto todo, definindo-o como bom, mau, egoísta, etc. expressamos unicamente a posição que adotamos a respeito dele na prática cotidiana, e este juízo o determina menos do que traduz o que esperamos dele. (Bakhtin, 1992:25)

É esta reação ao todo, segundo o autor, específica da reação estética, porque baseada na suposição de acabamento do objeto – herói ou obra – que fundamentará a diferença entre os dois mundos postos em paralelo neste seu estudo. Derivam desse princípio os conceitos formulados por Bakhtin com os quais distingue os mundos ético e estético. Aceitando que nossas compreensões são sempre limitadas, acompanhemos mais uma vez Bakhtin:

A consciência do autor é a consciência de uma consciência, ou seja, é uma consciência que engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo, que engloba e acaba a consciência do herói por intermédio do que, por princípio, é transcendente a essa consciência e que, imanente, a falsearia. O autor não só vê e sabe tudo quanto vê e sabe o herói em particular e todos os heróis em conjunto, mas também vê e sabe mais do que eles, vendo e sabendo até o que é por princípio inacessível aos heróis; é precisamente esse excedente sempre determinado e constante de que se beneficia a visão e o saber do autor, em comparação com cada um dos heróis, que fornecve o princípio de acabamento de um todo – o dos heróis e o do acontecimento da existência deles, isto é, o todo da obra. (Bakhtin, 1992:32)

Tansposto o conceito de “excedente de visão” par ao mundo da vida: da vida não há um autor e se estou vivendo, tenho um por-vir e, portanto, sou inacabado. O todo acabado de minha vida, eu não o domino. Por isso, o mundo da vida é um mundo ético, embora a vida possa ser vivida esteticamente. Consideremo-nos dentro desse mundo: estou exposto e quem me vê me vê com o fundo da paisagem em que estou. A visão do outro me vê como um todo com um fundo que não dominamos. Ele tem, relativamente a mim, um excedente de visão. Ele tem, portanto, uma experiência de mim que eu próprio não tenho, mas que posso, por meu turno, ter a respeito dele. Este acontecimento mostra nossa incompletude e constitui o outro como o único lugar possível de uma completude impossível. Olhamo-nos com os olhos do outro, mas regressamos sempre a nós mesmos e a nossa incompletude, pois “tudo quanto pode nos assegurar um acabamento na consciência de outrem, logo presumido na nossa auto consciência, perde a faculdade de efetuar nosso acabamento, porque a experiência do outro, mesmo sendo de mim, me é inacessível.

Se a experiência de mim vivida pelo outro me é inacessível, esta inacessibilidade, a mostrar sempre a incompletude fundante do homem, mobiliza o desejo de completude. Aproximo-me do outro, também incompletude por definição, com esperança de encontrar a fonte restauradora da totalidade perdida. É na tensão do encontro/desencontro do eu e do tu que ambos se constituem. E, nesta atividade, constrói-se a linguagem enquanto mediação sígnica necessária. Por isso a linguagem é trabalho e produto do trabalho. Enquanto tal, cada expressão carrega a história de sua construção e de seus usos. Nascidos nos universos de discursos que nos precederam, internalizamos dos discursos de que participamos expressões/compreensões pré-construídas , num processo contínuo de tornar intraindividual o que extraindividual. E, a cada nova expressão/compreensão pré-consruída, fazemos corresponder nossa contrapalavra, articulando e rearticulando dialogicamente o que agora se apreende com as mediações do que antes já fora apreendido.

As influências extratextuais têm uma importância muito especial nas primeiras etapas do desenvolvimento do homem. Estas influências estão revestidas de palavras (ou outros signos), e estas palavras pertencem a outras pessoas; antes de mais nada, trata-se das palavras da mãe. Depois, estas “palavras alheias” se reelaboram dialogicamente em “palavras próprias-alheias” com a ajuda de outras palavras alheias (escutadas anteriormente) e logo se tornam palavras próprias (com a perda das aspas, falando metaforicamente) que já possuem um caráter criativo. (Bakhtin, 1992:185)

Está na incompletude a energia geradora da busca da completude eternamente inconclusa. E como incompletude e inconclusão andam juntas, as mediações sígnicas, ou as linguagens, construídas neste trabalho contínuo de constituição não podem ser compreendidas como um sistema fechado e acabado de signos para sempre disponíveis, prontos e reconhecíveis. Enquanto instrumentos próprios construídos neste processo contínuo de interlocução com o outro, carregam consigo as precariedades do singular, do irrepetível, do insolúvel, mostrando sua vocação estrutural para a mudança.

Na síntese de Kramer (1994:107), “a linguagem regula a atividade psíquica, constituindo a consciência, porque é expressão de signos que encarnam o sentido como elemento da cultura. Sentido que exprime a experiência vivida nas relações sociais, entendidas estas como espaço de imposições, confrontos, desejos, paixões, retornos, imaginação e construções”. Se é neste movimento que se constitui a consciência, também esta não pode ser considerada senão em sua constante mutação.

Elege-se como território, portanto, o fluxo do movimento. Lugar de passagem e na passagem a interação do homem com os outros homens no desafio de construir compreensões do mundo vivido. Das histórias contidas e não contadas. Dos interesses contraditórios, das incoerências. De um presente que, em se fazendo, nos escapa porque sua materialidade inefável contém no aqui e agora as memórias do passado e os horizontes de possibilidades, calculados com base numa memória do futuro.

Do ponto de vista bakhtiniano, no mundo da vida calculamos a todo instante, com base na memória do futuro desejado, as possibilidades de ação no presente. Não se trata de reintroduzir, a partir da ideia de memória do futuro, a ideia de salvação terrestre. O “devir está problematizado e assim ficará para sempre” pois vivemos um “contexto no qual as metanarrativas de qualquer gênero são olhadas com profunda desconfiança (Silva, 2000:14). Trata-se de pensar que a todo momento , a todo acontecimento, o futuro é repensado, refeito e neste lugar desterritorializado, sempre mutável, o sujeito se situa para analisar o presente vivido e, no limite das condições dos instrumentos disponíveis, construídos pela herança cultural e reconstruídos, modificados, abandonados ou recriados pelo presente, selecionar uma das possibilidades de ação. Somos movidos pelas utopias, pelos sonhos, pois “nada é mais pobre que uma verdade sem o sentimento de verdade”. (Morin, 1996:33)

Assumindo que a relação com a singularidade é da natureza do processo constitutivo dos sujeitos e da linguagem, com a precariedade própria da temporalidade que o específico do momento implica, a instabilidade dos sujeitos – e da história – não é um problema a ser afastado, mas ao contrário é inspiração para recompreender a vida assumindo a irreversibilidade de sues processos. Como temos distintas histórias de relações com os outros – cujos excedentes de visão buscamos em nossos processos de constituição – vamos construindo nossas consciências em diferentes palavras que internalizamos e que funcionam como contrapalavras na construção dos sentidos do que vivemos, vemos, ouvimos, lemos. S]ão estas histórias que nos fazem únicos e irrepetívies. Unicidade incerta, pois se compreendo com palavra que antes de serem minhas, foram e são também do outro, nunca terei certeza se estou falando ou se algo fala por mim.

 

  1. A repetição que singulariza

As análises pós-foucaultinanos têm mostrado que a escolarização pode ser vista como exemplo paradigmático das modernas técnicas de governo, cujas estratégias mais do que silenciar e constranger, agem através da liberdade sintonizando desejos e capacidades aos objetivos políticos da organização e construindo o autogoverno como forma de realiação da liberdade. Certamente algumas destas análises transformam a subjetividade num “efeito embutido da programação governamental”.

Se os sistemas educativos têm um papel fundamental na formação normativa dos sujeitos, isto não assegura que suas normas venham a figurar no âmago de cada sujeito assim como nada pode assegurar que as identidades atribuídas sejam efetivamente a identidades experienciadas.

Aceitando, de um lado, a educação como uma das forças de constituição de identidades pré-definidas, por isso mesmo com práticas discursivas de sala de aula marcadas por valores, saberes e conhecimentos selecionados, ordenados e distribuídos segundo a lógica de programação de governo, e, por outro lado, que estas mesmas práticas discursivas, face à natureza da linguagem e das formas discursivas de constituição das singularidades – e portanto dos sujeitos discursivos – são um lugar de deslizamentos e de emergências de transgressão, meu objetivo é trazer à reflexão, como exemplos, alguns textos escolares, produzidos pro crianças em seus primeiros anos de escolaridade.

Consideremos as seguintes afirmações de Bakhtin:

  • A palavra existe para o locutor sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que não pertence a ninguém; como palavra do outro pertencente aos outros e que preenche o eco dos enunciados alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na medida em que uso essa palavra num determinada situação, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de minha expressividade;
  • A palavra do outro se transforma, dialogicamente, para tornar-se “palavra pessoal-alheia” com a ajuda de outras “palavras do outro”, e depois, palavra pessoal (com, poder-se-ia dizer, a perda das aspas);
  • Toda palavra (todo signo) de um texto conduz para fora dos limites desse texto. A compreensão é o cotejo de um texto com os outros textos.

Tomamos estes textos como elos da “corrente de comunicação verbal ininterrupta” e procuraremos detectar indícios de outros textos, produtos de práticas discursivas escolares cujas palavras, retomadas pelos aprendizes da escrita, adquirem novos tons apreciativos e podem revelar suas compreensões das práticas dos discursos, das atitudes e das relações que se instituem no ambiente escolar.

 

  • A escola é uma instituição normativa, mas…

A escola

A secola é bonita e lipa e não pede trazechiclete e não pe de traze ovo naora do lache tem mutascoza no lache e não po de repiti e ten mutajeteque repétenoloche e trazemateriau na secola e senão aprofesora da chigo.

 

O texto é constituído por sete enunciados, nos quais se expressam:

  1. Elogio um: a escola é bonita e limpa;
  2. Regra um: não pode trazer chiclete;
  3. Regra dois: não pode trazer ovo;
  4. Elogio dois: na hora do lanche tem muitas coisas no lanche;
  5. Regra três: não pode repetir o lanche;
  6. Denúncia: tem muita gente que repete no lanche;
  7. Regra quatro: trazer material, se não a professora dá xingo.

 

Quantitativamente, estes enunciados revelam desde logo que a escola é uma instituição extremamente regrada, pois em apenas sete enunciados, quatro expressam diretamente regras de convívio. O enunciado seis, sendo uma denúncia, por seu turno remete ou decorre de violação de uma regra, de modo que cinco de sete enunciados remetem a regras; dois enunciados são destinados a elogios à escola. Estes dados indiciam que a criança compreendeu o funcionamento normativo da instituição, mas ao mesmo tempo ela ainda se revela contra o não funcionamento conforme, pois há quem não cumpre regras e não leva xingamento. Ou seja, há regras, mas nem todas são cumpridas e nem sempre ao não cumprimento corresponde qualquer punição (a violência simbólica é indiciada pela expressão “a professora dá xingo”).

Para além do que parece, o repetir de um discurso corrente nas salas de aula, nos pátios e em todos os ambientes escolares – regras, regras, regras – este texto se singulariza na sequência em ocorre a maior juntura vocabular: ten mutajeteque repétenoloche. Justamente o enunciado seis, em que o enunciador faz uma denúncia, há a maior sequência de junturas. No processo de aquisição da língua escrita, em que idiossincraticamente cada aprendiz recorre a um conjunto complexo de estratégias, uma das mais presentes nas práticas discursivas de sala de aula são aquelas que associam sons a símbolos gráficos (letras). Aqui pode estar presente esta associação: uma das características entonacionais da denúncia é precisamente a mudança de tom, acompanhada frequentemente da mudança de velocidade. A juntura vocabular está marcando precisamente esta mudança (note-se que as demais junturas vocabulares remetem a vocábulos fonológicos, o que não acontece neste enunciado).

Há ainda uma segunda singularidade: este texto está estruturado numa sequência específica: elogio, regra, regra, elogio, regra, denúncia, regra. Do ponto de vista retórico, o texto está organizado de modo a obter de seu auditório adesão ao que se expõe e somente depois da denúncia, a regra se faz acompanhar de uma possível punição como se o autor dissesse: se para o não cumprimento desta regra há uma punição, deve haver uma punição para o não cumprimento da outra regra! Note-se que a denúncia é, também, o reconhecimento de que o funcionamento da escola não obedece a uma lógica coerente e é talvez esta coerência o que o autor do texto está cobrando da escola, como esta lhe cobra coerência quando interessa.

 

  • Quando normas se explicam como histórias

Era uma vez umpionho queroia ocabelo daí um emninopinheto dapasou um umenino lipo enei pionho aí pasou um emnino pionheto daí omenino pegoupionho da amunhér pegoupionho da todomundosaigritãdo todomundo pegou pionho di até sofinho begoupionho.

(aluno de 1ª. série, reprovado)

 

Uma das características dos processos escolares é a construção de hábitos de higiene, de controles do corpo. E uma das formas mais eficazes utilizadas pelos professores para este processo de inculcação d enorme é a narrativa. Uma campanha de saúde escolar não se faz sem que se contem histórias… E é contando uma história que este aluno revela ter apreendido que piolho pula de cabeça em cabeça e que se você não se cuida, você estará prejudicando todos os outros. O um como o mal dos outros. Ou o um que se cuida, cuida de todos…

Mas há uma singularidade: o princípio era para ser aprendido, a narrativa era a estratégia de sua transmissão, mas a narrativa na modalidade escrita não era para ser exercida pela criança. Ela acabou pagando preço alto pela transgressão, isto é, pela tentativa de escrever um texto com sentido, utilizando palavras que ainda não aprendera escolarmente a usar: foi reprovada em 1983 e repetiu a primeira série no ano seguinte. Eis uma aprendizagem dolorosa: na escola escreve-se o que se sabe, para nunca mostrar o que não se sabe.

 

  • A emergência de contrapalavras

BALA PERDIDA MATA MULHER NA TIJUCA

Uma mule mou com ma bala pdida num diroto c adi caviuome taro tova um ca fote não cocsq i fugiro

(Bala perdida mata mulher na Tijuca/ Uma mulher morreu com uma/bala perdida num tiroteio/Cerca de [cerca] [quase] 20 homens tentaram roubar/carro forte não conseguiram/e fugiram)

 

Considerando que o processo de compreensão, no sentido bakhtiniano, ocorre por uma atitude responsiva do interlocutor, e considerando que este texto foi escrito em sala de aula do programa de ensino que operava com notícias de jornais (Pacheco, 1997), o que singulariza este texto é o que a pesquisadora considerou como replanejamento no processo de escrita: a repetição ca di ca (cerca de/cerca) também poderia ter uma segunda leitura.

Como o recurso expressivo cerca de não é corrente na modalidade oral, especialmente de alunos desta faixa e deste grupo social, em sala de aula circulou a expressão quase, uma contrapalavra conhecida e utilizada para processar a compreensão de sua ‘sinônima’. No processo de escrita, a repetição indicia que o aluno escreveu cerca de e explicitou sua compreensão desta expressão, escrevendo quase, como poderia ser lida a segunda ocorrência de ca.

 

Conclusões

Certamente as análises dos três exemplos poderiam continuar e a estes indícios outros poderiam ser associados. Que as palavras escritas em sala de aula recuperam os discursos em circulação na escola, muitos exemplos podem ser adicionados, desde certas metodologias do ensino da modalidade escrita que partem da leitura de textos para a produção de texto, quando em geral os alunos perguntam: posso dizer / escrever com minhas próprias palavras?

Importa extrair deste fato algumas consequências no que diz respeito à constituição dos sujeitos escolarizados: ao mesmo tempo os dados confirmam que a educação é um paradigma do programa de governo, também confirmam que os sujeitos transgridem não repetindo as fórmulas pré-determinadas.

Certamente porque tanto sujeitos quanto as artes de governo não sejam tão determinados como as análises genéricas e abstratas nos fizeram crer. E talvez porque ambos – sujeitos e educação – são resultantes de práticas discursivas que operam com um instrumento em si autoconstitutivo e indeterminado.

Para concluir, uma passagem de Donald (2000: 63) que retoma Freud e Kant a respeito destes temas cuja pesquisa talvez dependa mais do “faro, golpe de vista, intuição” (Ginzburg, 1989):

No último texto que escreveu, Freud pesarosamente reconheceu, como tinha feito em várias ocasiões anteriores, os limites e as frustrações de seu trabalho? “É quase como se a análise fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ nas quais se pode estar antecipadamente certo de que se vai obter resultados pouco satisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são a educação e o governo” (…) Talvez ele estivesse pensando na perplexidade de um filósofo mais antigo: “Existem duas invenções humanas que podem ser consideradas mais difíceis que quaisquer outras”, havia advertido Kant, “a arte do governo e a arte da educação; e as pessoas continuam a discutir inclusive o seu significado”.

Não por acaso, as três artes – governo, educação, psicanálise – operam com a linguagem e as três têm como seu lugar de existência o sujeito que através da linguagem se constitui e constitui governo, educação e subjetividade e por estar neste universo discursivo, é por ele constituído.

 

Referências

Bakhtin, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo : Hucitec, 1982.

_________  Estética da criação verbal. São Pualo : Martins Fontes, 1992.

Donald, J. Liberdade bem regulada. in. Silva, T.T. (org) Pedagogia dos monstros. Belo Horizonte : Autêntica, 2000.

________ Cheios de si, cheios de medo: os cidadãos como ciborgues. In. Silva, T.T. Pedagogia dos monstros. Belo Horizonte : Autêntica, 2000.

Geraldi, J. W. Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação. Campinas : ALB/Mercado de Letras, 1996.

____________ Portos de passagem. São Paulo : Martins Fontes, 1991.

Ginzburg, C. Sinais. In. _____ Mitos, emblemas, sinais. São Paulo : Cia das Letras, 1989.

Kramer, S. A. A formação do professor como leitor e construtor do saber. In. Moreira, A. C. Conhecimento educacional e formação do professor. Campinas : Papirus, 1994.

Morin, E. A noção de sujeito. In. Schnitman, D. F. (org) Novos paradigmas, cutlura e subjetividade. Porto Alegre : Artes Médicas, 1996.

________ Amor, poesia, sabedoria. Lisboa : Instituto Piaget, s.d. (original de 1997).

Prigogine, I. O fim da ciência? In. Schnitman, D. F. (org) Novos paradigmas, cutlura e subjetividade. Porto Alegre : Artes Médicas, 1996.

Nota

* A questão que levou a este texto ficou por muito tempo rodando por minha cabeça. Em 13 de março de 1997, participei da banca de defesa de tese de doutoramento da Profa. Cecília Maria Goulart Pacheco (“Era uma vez os sete cabritinhos: a gênese do processo de produção de textos”), na PUC-RJ. Foi o começo de uma amizade que perdura e espero que perdurará sempre.

No trabalho de tese, a Cecília usou o paradigma indiciário na análise de textos de crianças em processo de aquisição da língua escrita. Um trabalho notável. Em um de seus exemplos, o trabalho de escrita das crianças tinha por base uma notícia de jornal sobre uma bala perdida que mata uma mulher na Tijuca (este texto será meu terceiro exemplo neste artigo). Enquanto a Cecilia tratou uma repetição de sílaba como um replanejamento de escrita, fiz outra interpretação no momento da defesa: de que se tratava, muito provavelmente, de uma “contrapalavra”, no sentido de Bakhtin, no caso, a palavra “quase” que, supunha, havia sido usada em sala de aula pela professora. O emprego da expressão “cerca de 20 homens“ que aparece na notícia de jornal, expressão tipicamente de língua escrita e de dialeto formal, fora ‘traduzido’ como “quase”, uma expressão de uso mais comum, ainda que não sinônima (“cerca de” pode ser mais ou menos do que 20/ “quase” sempre será menos do que o que se lhe segue, “quase 20” é sempre menos do que 20). Este seria um bom exemplo, em que a contrapalavra de compreensão apareceria ao lado da palavra que está sendo compreendida. Esta a hipótese que este texto contempla.

Escrito quase três anos depois da defesa de tese da Profa. Cecília, foi publicado em Quaestio – Revista de estudos de educação (2000), publicação da Universidade de Sorocaba. Mais ou menos no mesmo período em que o Prof. Percival Leme Brito me pedira o artigo, recebo do amigo Ingo Voese também o pedido de um artigo. Por isso o mesmo texto foi também publicado em Linguagem em Discurso (Unisul – Tubarão-SC), num volume especial que acabou aparecendo somente em 2003. Posteriormente, inclui o texto na minha coletânea A aula como acontecimento (Pedro & João Editores, 2010).  Como o leitor notará, retomo temas que me são caros como uma espécie de quadro de fundo dentro do qual as análises dos textos de crianças fazem, para mim, sentido. 

 

 

 

Todos por um e um por todos? (Por Hélio Lemos Solha)

Todos por um e um por todos? (Por Hélio Lemos Solha)

O capitão Bolsonaro, em discurso de vitória na campanha eleitoral para presidente, declarou ter sido eleito pelos brasileiros.

Nada mais equivocado!

É certo que o capitão foi eleito POR brasileiros, mas não pode dizer que foi eleito PELOS brasileiros. O capitão foi eleito pela maioria dos votos válidos, mas o montante conquistado está muito longe de permitir que busque se legitimar na ideia de que seu futuro mandato represente a vontade da maioria dos brasileiros. Vejamos os números:

– Total de eleitores aptos a votar: 147,3 milhões (100%)
– Total de votantes nesta eleição: 115,9 milhões (78,7%)
– Votos válidos: 104,8 milhões (71,1%)
– Votos em F. Haddad: 47 milhões (31,9%)
– Votos em J. Bolsonaro: 57,8 milhões (39,2%)

O presidente eleito tem a legitimidade garantida pelas leis em vigor, isto é inquestionável, pois obteve mais de 50% dos votos válidos. Mas o capitão Bolsonaro não deve ceder à tentação de se deixar levar (nem de tentar levar a outros) pela ilusão de ter sido eleito pelos brasileiros. Foi eleito por pouco mais de um terço dos eleitores aptos a votar.

Se quiser manter a legitimidade de Presidente de todos os brasileiros, deve sempre ter em conta que cerca de 60% dos brasileiros não depositou sua confiança na campanha do capitão candidato. Essa confiança ele terá que conquistar trabalhando para unir a população em torno dos trabalhos de seu mandato.

No mesmo discurso de posse em que se disse eleito pelos brasileiros, o capitão foi, entretanto, demarcando uma lista de exclusões, nomeando aqueles que, em sua ilusão recorrente, não preencheriam os requisitos para ser incluídos naquilo que ele chamou de brasileiros. Poucas coisas podem ser mais perigosas para o seu mandato e para a estabilidade do país do que isso.

Esse conjunto de coisas levantam algumas incertezas políticas importantes, que poderiam ser resumidas na resposta à seguinte pergunta: Capitão, no momento de sua posse o senhor pretende assumir como o presidente de todos ou como o inimigo de até 60% dos brasileiros?

CELEBRAÇÃO DA PERSISTÊNCIA NA LUTA CONTRA A ALIENAÇÃO ESPETACULARIZADA

CELEBRAÇÃO DA PERSISTÊNCIA NA LUTA CONTRA A ALIENAÇÃO ESPETACULARIZADA

Agora, um convite solidário e amoroso à persistência na luta. O ato público de votar acabou. Fica uma homenagem àquelas e àqueles que lutaram e continuam lutando por um Brasil melhor para todos, por um governo honesto, respeitoso, leal e justo, por uma sociedade igualitária, livre, responsável, solidária, sem preconceitos e discriminações, sem ódio, acima de tudo, por uma democracia participativa, viva. Proponho que a celebração desse ato político consciente aconteça com um brinde e com a degustação de um poema de Bertold Brecht, com o título: Os que lutam.

“Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons;

Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;

Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;

Porém há aqueles que lutam toda vida; esses são os imprescindíveis”.

Sim, e aqueles que não lutam nem um dia? Não lutam nenhum instante, sequer? Pior, alienam-se a quem promete mais. Muitos sequer votam, ou votam em branco, anulam o voto, há até os que nem votam.  E a culpa, de quem é? Dos alienados ou dos alienadores? Dois dos, o mais correto. Quer dizer, a culpa é dos que alienam para subjugar e dominar e dos que se deixam alienar por ignorância.

As múltiplas e as mais sagazes formas de alienação vem do passado bem distante, sempre atualizadas de formas e maneiras de acordo com os meios tecnológicos de comunicação de cada época, até o presente. Até o agora e o aqui, no Brasil.

Quem não conhece e não se lembra da expressão “Pão e Circo” – [Panem et circenses]? Uma política inventada pelos imperadores e pela aristocracia romana para exercer o domínio e a manipulação das massas trabalhadoras e suas famílias, agradando com comida – trigo, farinha, pão – e com divertimento – circo e teatro de arenas, nos finais de semanas. Assim, a plebe romana seria desinteressada em política e não teria tempo livre para pensar e se organizar em manifestações e revoltas contra os imperadores e contra a aristocracia escravizadora romana. Alienar a vontade dos súditos – oferecendo e concedendo pequenos agrados por conta do Estado – aos imperadores e dominadores para não precisar usar a violência e a força das armas, das prisões, das torturas, das execuções, sempre foi a estratégia dos políticos dominadores. Os pobres se gladiavam nas arenas, espetacularizando em luta mortal para entreter e divertir a população de trabalhadores, a plebe romana. Assistidos, em pompas e circunstâncias, pelo imperador e pela aristocracia.

Daqueles tempo – Império Romano – até hoje, muitas políticas de alienação foram inventadas e praticadas.

No Brasil, até o futebol com seus estádios pomposos e as festas de carnaval – com suas maravilhosas e luxuosas alegorias – já foram e continuam sendo uma maneira divertida, artística, cultural…para se divertir, alegrar e também para alienar multidões de brasileiras e de brasileiros. Hoje, a espetacularização ao vivo das tragédias naturais e humanas, a culpabilização pelas crises econômicas, sociais, políticas e as promessas de liquidar os criminosos, bandidos, vadios… nas redes midiáticas, fatos que se constituem na grande arma para a alienação das massas populares. Pasmem, aliena-se como nunca com a fé, a crença, o sagrado das religiões. Uma lavagem cerebral nada santa, nem divina, em nome do Senhor Deus. Voto e dinheiro acaba sendo o ato mais sagrado dos fiéis.

Bem, a história é longa e complexa. Não cabe aqui, neste espaço e neste tempo, escrevê-la. E, para regar com força e energia, vamos brindar a persistência na luta com mais um poema de Bertold Brecht – um espumante bruit – O Analfabeto Político.

“O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio depende das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo”.

O analfabeto político é tão antigo, velho como a própria história dos seres humanos. Ao longo da história, sempre houve estratégias de dominação e subordinação das massas populares, das plebes, dos trabalhadores braçais… pelos políticos das classes dominantes.

Há um provérbio muito antigo, de crença e uso das elites dominantes, de modo especial pelos políticos brasileiros de extrema direita, segundo o qual “quanto mais instruído o povo, tanto mais difícil de o governar”. Aí, Brecht explica no poema  Privatizado.

“Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar.

É da empresa privada o seu passo em frente, seu pão e seu salário.

E agora não contentes querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence”.

Só não poderão privatizar a nossa luta.

Mon Dieu, donnez moi la médiocrité!

Mon Dieu, donnez moi la médiocrité!

Nada melhor do que o enunciado de Mirabeau para invocar a Deus que me conceda a mediocridade necessária para viver os próximos poucos anos que me serão dados viver. Depois dos setenta anos, para a nossa geração que nasceu quando a previsão de vida no país era de 64 anos, cada ano é um lucro. Estou no lucro.

Mas mesmo assim, maduro, não aprendi a aquietar-me. Sempre pensei que manteria meu lema até o final: a capacidade de me indignar.

Agora peço outra graça, que esta com que convivi a vida toda precisa ser suplantada, represada, até desaparecer. Preciso da graça da mediocridade!

Uma mediocridade ao estilo Dias Toffoli, Rosa Weber, por Deus… mas se não sou digno de tanto, que seja a mediocridade de um Gabeira. Se ainda assim, senhor Deus, achais que peço muito, me serve a mediocridade ignorante do eleitor de Jair Bolsonaro, aquele que sendo mestre de obras e aceitando serviços esporádicos de uma reforma aqui, outra acolá, pensa que é empresário!

Ainda assim é muito? Então que seja a mediocridade do ajudante de pedreiro que trabalha para o mestre de obras, que trabalha para o pequeno empresário, que trabalha para o grande empresário que trabalha para o banqueiro que paga a todos os medíocres o mínimo para que sobrevivam para o adorar, venerar e votar como os banqueiros querem, como os grandes empresários querem, como os pequenos empresários querem, como o mestre de obras quer, como o ajudante de pedreiro não quer, mas que obedece.

Dai-me, pois, também a obediência do ajudante de pedreiro. Mas me deixai, senhor, continuar a ver meus filmes, escutar minhas músicas, ler meus livros. E continuar a escrever aqui mesmo que seja para apenas eu mesmo me ler.

Relato da primeira hora! (Por Hélio Solha)

Relato da primeira hora! (Por Hélio Solha)

Não resisti e saí às ruas. Tinha que ver de perto a festa de vitória dos bolsonaristas. Tinha que ouvir as palavras de sua comemoração.

Levava, principalmente, a esperança de que os meus críticos estivessem certos e eu errado. Levava a esperança de ver uma grande festejo da democracia: ruas cheias de gente alegre com a vitória e cheias de fé em um futuro melhor.

A decepção veio quase imediatamente. Decepção porque minhas avaliações anteriores foram reforçadas.

As ruas estavam cheias, sim, mas não de uma festa democrática. As pessoas gritavam e soltavam fogos, mas suas palavras não soavam a um festejo promissor. As palavras, proferidas aos gritos, soavam ódio, ressentimento e discriminação. Os rostos sorriam. Mas sorriam sorrisos de vingança. “Morte aos petralhas!” e “Vamos colocar esses vagabundos pra correr do nosso (sic) país!” eram algumas das bombas verbais que ecoavam pelas praças.

As cenas que acompanhavam esses sorrisos e gritos, não eram mais alvissareiros: bandeiras do PT em chamas, bonecos de petistas pendurados em forcas, pessoas exibindo ostensivamente armas de fogo.

Não nos enganemos, estamos, sim, sob uma ameaça fascista!

Pouco mais de um terço dos eleitores brasileiros deram vitória a um aventureiro! Mas ainda temos tempo de impedir a tragédia. Dois terços do eleitorado brasileiro não assinou um cheque em branco em favor da barbárie. Dois terços do eleitorado brasileiro quer que o próximo governo atue dentro das regras e com absoluto respeito à Constituição, às diferenças e às opiniões diferentes.

Ainda somos maioria, aqueles que não apoiam o autoritarismo sob qualquer insígnia!

Somos maioria e podemos fazer barrar as tentativas do impor um jogo fora das regras democráticas e constitucionais. Somos uma frágil maioria, que só se fortalecerá e poderá defender a democracia, se nossas instituições republicanas, como o judiciário, o legislativo, os governos estaduais, etc., deixarem o conforto dos atos preguiçosos e lentos da burocracia, passando a atuar e fiscalizar com o rigor da lei.

Só poderemos defender a civilidade, se nossas autoridades republicanas saírem da proteção do manto da covardia, tomarem chá de coragem e passarem a cumprir os seus deveres.

28.10.2018

Hélio Solha é professor do Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp. Passará a integrar a equipe de escritores. Agradeço por ter aceitado participar deste blog e usar este veículo para fazer circularem seus textos.

Enfim, completa-se a urdidura do golpe. E pelo voto.

Enfim, completa-se a urdidura do golpe. E pelo voto.

Como venho apontando aqui, desde a derrota de 2002, o centro, a direita e a extrema direita brasileiros não se conformam por terem perdido o poder da caneta presidencial. De fato, jamais perderam o poder. Perderam apenas o governo. E perderam porque o modelo neoliberal foi um remédio que deixou o Brasil exangue.

A estes grupos políticos, pouco importa que a hemorragia destrua o país, desde que lhe sobrem as gordas migalhas a que estão acostumados desde as Capitanias Hereditárias. O povinho teve a audácia de levantar a cabeça e eleger um trabalhador. Um acinte!

Mas ter o governo não é ter o poder. E para governar, o operário teve que tecer alianças, expelir de seus ministérios companheiros antigos, dar conta do toma lá, dá cá da política parlamentar brasileira. Graças a este jogo, conseguiu manter o governo e não ser engolido pelo primeiro golpe armado: o processo do mensalão que se sabe. Como sabia o relator do processo, então, na verdade não houve dinheiro público envolvido: a invenção de recursos desviados do BB através da campanha do cartão Visa foi o que foi: invenção. Tanto que o segundo diretor do BB que assinou o contrato teve seu processo desmembrado e corre em segredo de justiça, porque nele estão as provas não aceitas no mensalão: não houve desvio aí. Mas pode e é provável tenha havido desvios em outros lugares. Não estou inocentando quem errou.

Lula se recuperou, não houve um voto ao estilo Rosa Weber, do não há provas, mas a literatura me permite condenar! E realizou grandes feitos nas três áreas que lhe interessavam: reduzir a miséria; colocar o país no concerto das nações de forma independente; e criar empresas brasileiras capazes de concorrência internacional.

O golpe foi para os porões dos conspiradores de sempre. Chegou Dilma que opta por outro caminho no desenvolvimento da sociedade brasileira, com um projeto que não deu certo. Assim mesmo, é reeleita ainda na memória dos bons tempos do governo Lula. Ganha, mas não leva. Desde que foram anunciados os resultados das eleições de 2014, Dilma deixou de governar o país. Os golpistas estavam assanhadíssimos.

E tiveram sucesso: conseguiram afastar uma presidente honesta, e nas articulações políticas conduziram um grande malandro e ladrão para a presidência, para este período de governo-tampão.

No processo de construção do impeachment, o centro, a direita e a extrema direita perceberam que tinham nas mãos o apoio da maioria da população, graças à narrativa que impuseram à nação os meios massivos de comunicação. Os políticos do centro-direita imaginavam que conseguiriam trazer para seu reduto, mais uma vez, a extrema direita. Não conseguiram. Na verdade, a voragem de extrema direita os engoliu a todos. E surge a figura sinistra do Jair Bolsonaro. De extrema direita, fascista de pensamento, sem qualquer conhecimento sobre o país e seus problemas. Com uma só frase respondia a qualquer pergunta ou colocação: “vamos mudar isso daí, ok?!”

O golpe, perceberam os golpistas, poderia ser dado pelo voto! E não por acaso um general da reserva se torna o candidato a vice-presidente de Jair Bolsonaro. Estava dado o aval da força. Uma campanha cheia de ilegalidades não reconhecidas como tais pelo golpismo do Judiciário abria o caminho para o “tudo vale”. Houve até juiz que autorizou a calúnia nas redes sociais porque os outros poderiam se contrapor nos espaços para os comentários!

Os votos no primeiro turno ofereceram o prato principal: jogaram para fora do campo o setor de centro-direita, invertendo a submissão histórica. Agora quem passaria a dar as cartas seria a extrema direita. O Centrão e os sociais democratas se tornaram apenas parceiros da mesa do jogo, sem direito a distribuir as cartas. Não se trata de uma criatura que engoliu o criador. Trata-se da emergência fustigada do que há de pior no ser humano, trazido para a luz do dia – ódio, violência, preconceitos – que a educação e a civilização mantêm represados. O líder Jair Bolsonaro pregou o ódio, a violência e os preconceitos. Se o líder pode abrir o represado, os seguidores também podem…

Os resultados das eleições mostram um país geograficamente dividido; são dois países diametralmente opostos em seus votos, até com semelhanças nos percentuais das diferenças entre os dois candidatos, em torno de 70% a 30%; no Nordeste e dois estados do norte, este percentual foi favorável a Haddad, o candidato com compromisso com a democracia; praticamente os mesmos percentuais, agora a favor de Jair Bolsonaro, no Norte, no Centro-Oeste, no Sudeste e no Sul. Aos primeiros: capim porque há que acabar com o “coitadismo” na expressão do presidente eleito; aos segundos, arrocho salarial e concentração de renda.

O golpe tão arduamente tecido no período Lula; costurado com facilidade no período Dilma; chega ao seu final VITORIOSO. As urdiduras do golpe completaram-se. O serviço que virá, agora, será apenas o serviço sujo que se deixará a cargo dos porões onde lágrimas, dor e sangue serão derramados, lá pela “ponta da praia” como já apontou o presidente do país, mas não de todos nós, o Sr. Jair Bolsonaro.

Alguém disse que perder eleições na democracia faz parte do jogo; mas perder a democracia nas eleições é outra coisa, espanta, assusta, e fará doer. Foi isso que a maioria do povo brasileiro quis. É isso que terá a população inteira.