por João Wanderley Geraldi | nov 19, 2018 | Blog
Tomo emprestado um enunciado do poeta paraibano Políbio Alves em entrevista ao jornal QO Questão de Ordem (Jornal Laboratório da UFPB, João Pessoa, Julho de 2018), para título desta crônica em que preciso, para não morrer de silêncio, dizer algo sobre o depoimento do Presidente Lula à juíza substituta da 13ª. Vara, aquela que foi e continuava sendo do Sr. Sérgio Moro, que somente se exonerou do cargo depois que o depoimento foi tomado por sua arrogante súdita (ops! Substituta). Acontece que a sentença já está escrita em suas linhas mestras. E o processo não poderia cair nas mãos de um juiz daquela Vara, para qual qualquer juiz federal pode se candidatar. Assim, convidado e tendo aceito ser ministro, o Sr. Sérgio Moro, então o Torquemada de Curitiba e futuro carrasco-geral do país, em vez de seguir os comezinhos mínimos da ética, entrou em férias até que o depoimento de Lula fosse tomado. Depois disso, apresentou sua exoneração! Agora está garantida sua sentença, que juíza Dra. Gabriela Hardt terá o trabalho de autografar.
Reconheço: não tive estômago para acompanhar todo o depoimento. Foi me dando uma tristeza tão grande, mas tão grande que precisei desligar, ir mexer com as flores do meu jardim, tentar esquecer que vivo num país em que a arrogância tenha atingido tais limites de desproporcionalidade entre as exigências da liturgia do cargo e os compromissos ideológicos de condenação explicitamente assumidos e desvelados para qualquer um que conheça minimante o funcionamento da linguagem… Por várias vezes a defesa teve que tomar a palavra para corrigir a juíza que tomava como “fato” o que lhe tinha sido tido por qualquer dos delatores…
A cada vez eu me perguntava: será mesmo que juízes federais, formados em direito, advogados aprovados em exames da OAB, concursados e assumidos como juízes têm este “preparo” todo para tomar por fato uma denúncia que repita o script que lhe é passado pela procuradoria “investigatória” que ameaça ao desequilibrado que não lhe obedecer de suspender os “prêmios” da delação?
Poucos sabem, mas fiz um curso de direito… tenho um diploma de “Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais”. Naquele meu tempo, tive juízes e desembargadores como professores, além de advogados. Havia gincana, mas havia um pouco de vergonha na cara. E cada parte no processo tomava partido, mas ambas exigiam e supunham no julgador que mantivesse um mínimo de neutralidade. No depoimento de Lula, além de não ser apresentada pela denúncia qualquer prova de sua acusação, a juíza tomava por fato verdadeiro, por verdade insofismável, qualquer afirmação que fora feita antes, em outros depoimentos, por delatores ou até por testemunhas não tão premiadas, desde que seus enunciados correspondessem a santa verdade que o juiz-chefe a juiza-substituta erigiram como FATO.
Ouvi o maior líder popular do país, um ex-presidente respeitado no mundo inteiro, ser tratado com arrogância por uma juíza sem compostura. Vi um homem dilacerado porque sabe que morrerá na cadeia, que jamais será julgado segundo a lei e com base em provas. Chorei ao me deparar com a desesperança de Lula.
Já não há mais palavra de esperança de vida para um ex-presidente que a elite brasileira e os interesses econômicos da matriz querem sacrificar. Quando apareceram cartazes de que “Se Lula for preso, o morro desce”, imaginei que existia uma cidadania enfim revoltada. Mas o morro só desceu para votar a favor do fascismo.
Apunhalado pela desesperança, Lula definha nas mãos da polícia federal, de juízes sem toga e de juízes togados. O serviço será completo: não bastou afastá-lo da candidatura à presidência; é preciso destruí-lo, destroçá-lo: somente com seus restos ficará satisfeita a sanha do falso moralismo de uma elite e uma classe média que se vangloriam de não cumprir as leis, porque as leis são o que querem que sejam.
Dra. Gabriela Hardt arrotou poder e garantiu que autografará a sentença condenatória que está na gaveta há muito pronta para a assinatura: faz meses que Sérgio Moro sabe que será ministro primeiro da Injustiça e da Polícia e depois da Casa da Intolerância atualmente presidida pelo subcomandante Dias Toffoli.
Desculpem os leitores, mas tinha que “escrever para não morrer de silêncio”.
por João Wanderley Geraldi | nov 16, 2018 | Blog
Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações que conquistaram novos domínios, introduzir logo nos povos conquistados o seu próprio idioma, por ser indispensável, que este é um meio dos mais eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes e ter mostrado a experiência que, ao mesmo passo que se introduz neles o uso da língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração e a obediência ao mesmo Príncipe. (Diretório de 3 demaio de 1757, com medida aplicadas ao Pará e Maranhã e estendidas em 16 de agosto de 1658 a todo o Brasil)
- Olhar maravilhado
A compreensão do processo histórico de implantação da língua portuguesa no Brasil não pode ser dispensada de uma incursão pelos processos vividos pela Europa nos fins da alta idade Média e os começos da nova era, pois a expansão do espanhol e do português, mais tarde do inglês e francês é parte do projeto empreendedor do homem europeu que, recém saído da Idade Média, debatia-se alternadamente entre o pensamento moderno, empirista, observador e atento aos fenômenos da natureza e “o jugo eclesiástico” presente em todas as esferas da vida cotidiana.
Em Colombo, que pode ser tomado como nosso melhor exemplo, realizam-se estes dois momentos:
… duas personagens coexistem em Colombo, e quando o ofício de navegador não está em jogo, a estratégia finalista torna-se preponderante em sue sistema de interpretação: não se trata mais de procurar a verdade, e sim de procurar confirmações para uma verdade conhecida de antemão […]. A observação atenta da natureza conduz a três direções diferentes: à interpretação puramente pragmática e eficaz, quando se trata de assuntos de navegação; à interpretação finalista, onde os sinais confirmam as crenças e esperanças que se tem; e, finalmente, a esta recusa de interpretação que a admiração intransitiva da natureza, a submissão absoluta à beleza, onde gosta-se de uma árvore porque é bela, porque é, e não porque poderia ser utilizada como mastro de um navio, ou porque sua presença promete riquezas. (Todorov, 1993, p. 20 e p. 25)
Obviamente, este olhar maravilhado para a natureza que aqui os europeus encontram tem sentidos diferentes ao longo do período. Os relatos de viagem, por exemplo, não somente descrevem o que o observador vai encontrando, mas também buscam atingir três objetivos fundamentais do ponto de vista de suas enunciações:
- Relatar àqueles que comandavam o trabalho de seu súdigos nomes para descobrir e conquistar novos espaços:
… começaram essa viagem com muito orgulho, e nela passaram por tantas desventuras e perigos que seria demorado narrá-los… (Diogo de Aguilar y Córdoba, relato da jornada pelo grande e famoso rio do Marañón, 1578, apud. Bentes, 2000).
- Convencer a seus soberanos que as riquezas existentes no novo mundo compensariam os investimentos de exploração:
… então mandou 25 homens de (a) cavalo nos quais fui eu por mandado do dito capitão e chegamos a uma província ao cabo de 25 dias (onde) achamos boa terra e bem povoada de índios e rica de outro segundo o que vi e no que os índios traziam, que bem parecia a terra abundosa de ouro, porque os índios traziam armas de ouro e braceletes nos braços. (Carta de Diogo Nunes a D. João III, 1538, relato da primeira expedição ao rio Amazonas, apud Bentes, 2000).
- “Maravilhar” os europeus com o que aqui iam encontrando:
Num povoado que estava num alto, onde quisemos pegar comida para a páscoa do Espírito Santo, encontramos muita louça muito bem trabalhada com diversas pinturas e vidrada, (constituída) tanto de tinas (‘tijanas’) como de muitas outras vasilhas. Este povoado o chamamos de Louça, porque em verdade havida dela muita e mui formosa. (Gaspar de Carvajal, A relação do Descobrimento do Rio Amazonas – 1542, apud. Bentes, 2000)
Relativamente aos habitantes da terra, há uma ambiguidade constante dos europeus. Ora os índios são tratados como outros, amigáveis ou adversários; ora são tratados como não humanos e integrados à natureza como fauna e flora. Segundo Todorov,
A atitude de Colombo para com os índios decorre da percepção que tem deles. Podemos distinguir nesta última duas componentes, que continuarão presentes até o século seguinte e, praticamente, até nossos dias, em todo o colonizador diante do colonizado. Essas duas atitudes já tinham sido observadas na relação de Colombo com a língua do outro. Ou ele pensa que os índios (apesar de não utilizar estes termos) são seres completamente humanos, com os mesmos direitos que ele, e aí considera-os não somente iguais, mas idênticos, e este comportamento desemboca no assimilacionismo, na projeção de seus próprios valores sobre os outros. Ou então parte da diferença que é imediatamente traduzida, em termos de superioridade e inferioridade (no caso, obviamente, são os índios os inferiores): recusa a existência de uma substância humana realmente outra, que possa não ser meramente um estado imperfeito de si mesmo. Estas duas figuras básicas da experiência da alteridade baseiam-se no egocentrismo, na identificação de seus próprios valores com os valores em geral, de seu eu com o universo; na convicção de que o mundo é um. (1993, p. 41)
Para um europeu, que estava vivendo à época uma transição entre uma Idade Média dominada pela religião e uma época moderna em que os valores se alteravam para “incluir” de forma privilegiada os bens materiais, era impossível estar diante de um outro que não poderia ser tomado como igual – e, portanto, como possível adversário com o qual havia que “guerrear” para conquistar o espaço, como aliás fizera com os mouros na península ibérica – mas que deveria ser tomado como um diferente por ter percepções de mundo distintas, outra cultura e outra relação com a natureza. Um outro, diferente, que não sendo espelho, o fizesse compreender-se mirando-se na imagem que não reflete a si próprio.
Do outro lado, os modos distintos como os indígenas reagiram à “descoberta” revelam, antes de mais nada, o logro que é tratá-los pura e simplesmente como “os habitantes” da terra, como se fossem um único grupo, uma única cultura. Colombo, por exemplo, registrou em seu diário que eles “são crédulos, sabem que há um Deus no céu e estão convencidos que viemos de lá” (apud Todorov, op. Cit., p. 40), descrição seguramente adequada ao comportamento de alguns dos povos indígenas. Mais tarde Carvajal também relatará as diferentes formas com que foram recebidos em sua expedição pelo rio Amazonas:
Aqui (nos) esperava a gente da terra, tanto as mulheres como os filhos, que não fugiram nem defenderam o porto como haviam feito os do povoado da louça; neste sítio, tomaram-se algumas índias para que fizessem pão para os companheiros, e alguns rapazes para as línguas; e por ser a gente desse povoado tão doméstica, chamou-se-lhes o povoado dos Bobos. (Gaspar de Carvajal, apud. Bentes, op. cit.)
Nesta mesma passagem, duas diferentes reações são relatadas. Provavelmente hoje diríamos que dois povos distintos habitavam aqueles diferentes sítios: uma nação no “povoado das louças”, outra nação no “povoado dos bobos”. Sabemos que os europeus, depois de exploradores, tornados colonizadores, souberam explorar muito bem as diferenças culturais a seu favor para impor à nova terra o seu modo de conceber o mundo, “evangelizando” os povos para submetê-los e domesticá-los.
Os diferentes, que se encontraram frente à superfície lisa do espelho, enxergaram no outro o mesmo a ser necessariamente construído. Sabemos quem modificou e vem modificando suas fisionomias para enquadrar-se nos moldes da imagem desejada, domesticada e evangelizada.
- Construir a linguagem
Como se sabe, somente nos fins do Século XV e na primeira metade do Século XVI, as variedades linguísticas já escritas e associadas ao poder central dos estados passam a ter suas gramáticas escritas, num estudo que toma as línguas vernaculares – os vulgares – como objeto de descrição obviamente sob os moldes das gramáticas das línguas clássicas, o grego e o latim. A tradição que se segue é aquela sistematizada por Dionísio de Trácia.
Não é por acaso: a corrida para as conquistas coloniais e a concorrência entre Espanha e Portugal justificavam o investimento. Já na Gramática de Antonio de Nebrija (1492) encontra-se como justificativa da existência da primeira gramática da língua espanhola – e a primeira de uma língua que não fosse o latim ou o grego – a utilidade da sistematização gramatical para a difusão da língua entre os povos “bárbaros”:
A língua sempre acompanhou a dominação e a seguiu, de tal modo que juntas começaram, juntas cresceram, juntas floresceram e, afinal, sua queda foi comum. (Nebrija, apud Gnerre, 1986, p. 13)
Também Fernão de Oliveira menciona na introdução de sua Gramática de 1536 a expansão colonial portuguesa como justificativa de existência. E João de Barros, cuja gramática é de 1539, escreveu em seu Diálogo em Louvor de nossa Linguagem que
A língua é pra ele […] um instrumento para a difusão da “doutrina” e dos “costumes”, mas não é somente instrumento de difusão, pois “as armas e padrões portugueses […] materiais são e pode-os o tempo gastar, pero não gastará a doutrina, costumes e a linguagem que os Portugueses nestas terras deixaram”. Quer dizer, a língua será o instrumento para perpetuar a presença portuguesa, também quando a dominação acabe. (Gnerre, op. cit. p. 14)
Embora os primeiros gramáticos, tanto espanhóis quanto portugueses, tivessem consciência do significado da aquisição da língua da metrópole pelos novos povos das novas terras, o que de fato aconteceu, especificamente em “terras portuguesas”, não correspondeu à implantação da língua portuguesa entre os nativos. As necessidades de contato e mesmo de exploração, porque sem que haja comunicação é impossível a dominação – e as variadas línguas aqui faladas, muitas delas do mesmo tronco Tupi possibilitaram o surgimento de uma língua de contato, sistematizada especialmente pelos jesuítas, particularmente José de Anchieta em sua Arte da Gramática da língua mais falada na costa do Brasil. Trata-se da língua geral, que prevaleceria entre os moradores da terra – os nativos, os provenientes do continente europeu (colonizadores) ou os escravos provenientes da África.
O predomínio da língua geral pode ser comprovado em inúmeras passagens, entre outras aquela relativamente a sua proibição em instrução emanada do gabinete do Marquês de Pombal, em que se diz que os primeiros conquistadores só cuidaram de aqui estabelecer o que chamamos língua geral, invenção verdadeiramente abominável e diabólica. Citando Daphne C. Carvalho, escreve Magda Soares:
Em meados do século XVII, o padre Antônio Vieira […] afirmava, com relação à população de São Paulo: “as famílias dos portugueses e índios de São Paulo estão tão ligadas hoje humas às outras que as mulheres e os filhos se criam mystica e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala he a dos índios, e a portuguesa a vão os meninos aprender à escola. (1996, p. 11)
A expulsão dos jesuítas e as reformas pombalinas no ensino da metrópole e das colônias constituem-se em passos essenciais para o “apagamento” da experiência primeira de constituição de uma língua – ainda que esta língua viesse marcada pelo processo de exclusão daquelas línguas indígenas que não eram “boa língua” – NHEENGATU – disciplinadas pelos jesuítas. Certamente com um olhar contemporâneo, considerando a importância da linguagem na constituição das subjetividades, tema de que nos ocuparemos mais tarde, pode-se aquilatar a importância tanto do empreendimento de construção da língua geral, quanto da magnitude da empresa portuguesa de bani-la da vida cotidiana da colônia.
Preocupação com este “banimento” já aparece no início do Século XVI (1701), pois El-Rei recomenda ao governador geral do Brasil a obrigação de os missionários ensinarem o português aos índios. Mas é somente cinquenta anos depois, com as determinações de Marquês de Pombal que a língua geral começa a perder terreno.
Como constata Silva Neto (apud Fonseca, 1997), a realidade linguística até o Século XVIII era a seguinte:
- A língua geral, além de falada pelos índios, era falada por grande parte da população;
- O português, falado pelos brancos e seus descendentes;
- C) o crioulo ou semicrioulo, adaptação do português no uso de mestiços, aborígenes e negros;
- As línguas africanas, fala nos quilombos ou por negros ainda não aportuguesados.
A segunda metade do Século XVIII, com a proibição do uso da língua geral, com a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa no ensino das demais disciplinas (lembremos que o ensino jesuítico era em latim) e com a expansão do domínio português aparelhando-se paulatinamente o sistema estatal – especialmente para o controle e coleta dos pesados impostos que levam à revolta mineira do final do século – o português vai-se tornando a língua predominante na Colônia, de modo que a vinda da Família Real nos início do século seguinte vai consolidar a reafirmação da língua portuguesa e a implantação da cultura europeia entre nós.
A questão da “língua brasileira” – note-se que a língua geral não é tratada como “língua brasileira” – surge como polêmica em meados do Século XIX, mas o que predominou durante o período foi muito mais um purismo linguístico, com polêmicas constantes sobre como deveria ser a língua. As questões de correção gramatical dominaram mesmo quando os intelectuais debatiam a existência ou não de uma língua brasileira. Ensinava-se gramática e foram numerosas as gramáticas brasileiras que sempre tiveram – e continuam tendo – como objetivo corrigir o português que se fala para aproximá-lo do que supostamente se deveria falar. Citando Houaiss, escreve Magda Soares:
Um traço equívoco da política linguística adotada no Brasil e em Portugal durante um grande lapso de tempo (de 1820 [digamos] a 1920 [digamos] foi um ensino da língua que postulava uma modalidade única do português – com uma gramática única e uma ‘luta’ acirrada contra as variações até de pronúncia. (op. cit. p. 15)
É traço cultural, português e brasileiro, a importância dada aos estudos gramaticais. Note-se, por exemplo, a notícia que nos dá, não sem uma ponta de ‘orgulho’, Jeronymo Soares Barbosa, na Introdução de 1803 a sua Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza (1801):
Portugal conheceu grammaticas portuguezas ainda antes que outras nações civilisadas tivessem uma na sua língua. Quando Ramos em 1572 publicou a primeira grammatica da língua franceza, já Portugal tinha a de Fernão d’Oliveira dada á luz em 1536, e a de João de Barros em 1539. Estas foram seguidas do Methodo Grammatical de Amaro de Roboredo, impresso em Lisboa em 1619, da Grammatica do P. Bento Pereira, em Lyão, no de 1672, da de D. Jeronymo Contador d”Argote, em Lisboa 1721, e finalmente da de Antonio José dos Reis Lobato, em 1771 (Jeronymo Soares Barbosa. Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, 5ª. ed., 1876, p. XII)
Acompanhemos com alguns poucos exemplos, o quanto é persistente esta nossa preocupação com a correção de linguagem, confirmando no Século XIX o traço apontado por Houaiss de unicidade gramatical e de “luta” contra desvios como uma política do ensino de linguagem.
Exemplo 1
Nos primeiros anos do Século XX, o jornalista e escritor Paulino de Brito sustentou polêmica com o gramático português Cândido de Figueiredo. O primeiro escreveu crônicas no Jornal da Província do Pará criticando regras de colocação de pronomes expressas nas Lições Práticas (1901) do segundo. As respostas de Cândido de Figueiredo, publicadas no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, foram organizadas na obra O problema da colocação de pronomes (suplemento às Gramáticas Portuguesas), cuja 5ª. edição é de 1928., sob o selo da Livraria Clássica Editora, de A. M. Teixeira & Ca. Filho, Praça dos Restauradores, 17 – Lisboa, com uma introdução de Gonçalves Viana, “Juízo Crítico”, extraído do Diário de Notícias de Lisboa, de 11 de abril de 1909.
Defendia o português a próclise do pronome; Brito defendia a ênclise. O enunciado estopim foi
“Um soneto pediste-me, criança.”
que segundo o português, somente poderia ser, em bom português,
“Um soneto me pediste” ou “Pediste-me um soneto, criança.
Em uma das crônicas, reproduzidas na obra acompanhando-se a discussão com vasto material comprobatório da prática de bons escritores portugueses e brasileiros, poetas e prosadores, escreve
Assegura o Sr. Paulino de Brito que as regras por mim preconizadas “perturbaram profundamente a posse mansa, pacífica e imemorial de colocar os pronomes…” na sua nação; e que pus em debandada os que usavam dos pronomes à maneira dos bons escritores brasileiros, como Gonçalves Dias, etc. Sucede, porém, o contrário, exatamente. […]
Na demonstração desta segunda parte da minha tese, poderia eu recorrer aos primeiros escritores brasileiros do século findo, e citar, por exemplo, Tomás Antônio Gonzaga, que, na sua Marília, usa destas maneiras:
– De que te queixas?
E não: de que queixas-te?
– Mal se move e mal se arrasta.
E não: mal move-se…
– Enceu-se de gosto o peito.
E não: se encheu de gosto o peito.
[…]
Deste primeiro exemplo, uma lição a extrair quase cem anos depois: o uso – e neste uso incluam-se bons escritores – consagrou a próclise, cada vez mais comum inclusive no início de enunciados, donde se pode concluir que apesar dos esforços normativos, em matéria de linguagem o que vem a acontecer independe da vontade legisferante de gramáticos e professores.
Exemplo 2
Herculano de Carvalho, em conferências proferidas em Sá Bandeira, em 5 a 8 de abril de 1969, afirma:
Nação multirracial, espalhada por vários continentes, sob vários climas, seremos uma Nação imperfeita, não cumprida, senão quando todos os seu filhos possuírem como sua a língua portuguesa […] quero concluir com uma afirmação de confiança que traduz o que mais intimamente sinto: a de que estou absolutamente seguro de que, fazendo cada um de nós aquilo que está ao seu alcance e conjugados todos os nossos esforços, dentro de poucas décadas não haverá um Português que não saiba falar a língua da sua Pátria – a língua comum de todos os portugueses. É claro que não nos contentaremos com isso, porque não nos basta ensinar a falar português mas a pensar em português e como português. (J. G. Herculando de Carvalho. A difusão da lín gua portuguesa na África, Luanda, Universidade de Luanda, 1971, p. 12-19)
Um pouco mais de duzentos anos separam as conferências em Sá Bandeira das determinações do Marquês de Pombal que junto às providências de reformas do ensino, proibiu o uso da invenção diabólica da língua geral. E mais de quatrocentos anos separam as declarações de política linguística de Herculano de Carvalho daquela feita por João de Barros: “as armas e padrões portugueses […] materiais são e pode-os o tempo gastar, pero não gastará a doutrina, costumes e a linguagem que os Portugueses nestas terras deixaram”. Se os modos de implantação não são mais os mesmos, as políticas linguísticas permanecem surpreendentemente “inalteradas”.
Exemplo 3
Durante muitos anos o Correio do Povo, de Porto Alegre, publicou crônica assinada pelo saudoso gramático Celso Pedro Luft, e muitas destas crônicas respondiam dúvidas de “consulentes” a propósito de possíveis correções ou incorreções de linguagem. A TV Cultura, do Estado de São Paulo, mantém programa do gramático Pasquale Neto, que responde a dúvidas do mesmo estilo, fornece dicas fragmentárias sobre a estrutura da língua a estudantes e interessados. No XIII Encontro Nacional de Professores de Português, realizado em fins de junho deste ano [2000] na cidade Manaus, Pasquale Neto e o linguista Sírio Possenti debateram sobre as exigências de correção e quais os modelos ideais de correção de linguagem, cada um tomando pontos de vista diferenciados, mas nenhum deles abandonando a necessidade de modelos, de correções, de disciplinarização da linguagem.
Vou tomar aqui uma passagem que encontrei em estudo sobre variação linguística:
No fundo o que nos falta, para encarar e tratar a variação linguística no universo de língua portuguesa, é uma política da língua que defina o que é preciso defender e se estabeleçam metas e nos permita tratar do problema sem complexos de superioridade ou de submissão. Portugueses e brasileiros já tiveram de sobre, ambos, exercícios suficientes de autoridade. (Bezerra, A. P., 1992)
Note-se que mais uma vez se pensa uma política que defina o que há para defender (o certo? O correto?), as metas a serem atingidas e depois disso, a vida em harmonia, sem superioridades ou submissões…
Afinal, por que a linguagem preocupa e ocupa tanto e a tantos ao longo de tantos anos?
- Construir os sujeitos
Sem recorrer a concepções contemporâneas que podem ser fontes de categorias com que podemos nos explicar esta preocupação tão constante ao longo da história, tomemos as palavras de um gramático do Século XIX:
… sendo a grammatica de qualquer lingua a primeira theoria que principia a desenvolver o embrião das ideias confusas da edade pueril; e dependendo da exactidão de seus principios o bom progresso nos mais estudos, ella deve ser uma verdadeira lógica, que ensinando a falar, ensine ao mesmo tempo a discorrer. Que por isso a grammatica foi sempre reputada como uma parte da lógica, pela íntima conexão que as operações do mesmo espírito tem com os signaes que as exprimem. (Jeronymo Soares Barbosa, Introdução – p. IX)
Já aí encontramos imediatamente exposta a relação fundante entre linguagem e pensamento. A este tema retornou a Psicologia Cognitiva ao longo do Século XX, especialmente em sua versão sócio-histórica. Em filosofia, Bakhtin retoma a questão defendendo o ponto de vista de que nossa consciência constitui-se de signos e por isso é nas interações sociais, dentre as quais destacam-se as interações verbais, que nos constituímos como sujeitos.
Neste século, enquanto linguistas, herdamos do estruturalismo francês uma concepção de linguagem como capacidade de construção de sistemas semiológicos e, emaranhados na discussão sobre o objeto da ciência linguística, acabamos nos debruçando sobre a língua, entendida como um sistema de signos utilizados por uma comunidade para a troca comunicativa. A descrição do sistema ocupando o nosso tempo acabou fazendo com que relegássemos a segundo plano a discussão desta capacidade de linguagem que caracterizaria o ser humano. Filósofos, semioticistas, psicólogos, etc assumiram, na verdade, a questão como tema de suas áreas e raramente os linguistas discutem a concepção de linguagem que subjaz às análises que acabam produzindo. Delimitados os terrenos, a descrição e a análise dos elementos e suas relações no interior do sistema construíram uma exterioridade com a qual, no final do século, voltamos a dialogar em função das necessidades de construção de explicações para os fenômenos linguísticos internos ao sistema e aos fenômenos discursivos responsáveis pela construção das representações que fazemos de nós mesmos, dos outros e do mundo.
Certamente a convicção hoje generalizada de que a linguagem é uma atividade constitutiva das consciências humanas e a certeza de que os sistemas linguísticos nunca estão prontos e acabados, mas se vão construindo na história, levam hoje a retornarmos à história, mesmo à história da transplantação de uma língua europeia para o novo continente, com um olhar muito mais instruído pela política e pela “seta do tempo” (tal como reintroduzida nos novos paradigmas das ciências da natureza). E, conscientes da irreversibilidade da história, nela reconhecermos que bem serviram a seus reis e a seus tempos mais os gramáticos do que os marqueses, para nos perguntarmos como nos definimos hoje perante o que amanhã será história nos processos tão cotidianos das exclusões sociais – que incluem exclusões linguísticas – globalmente justificadas.
………………………….
Nota
- Este texto foi escrito para minha participação no IV Seminário Nacional do Ensino de Língua Portuguesa e III Seminário Internacional do Ensino de Língua Espanhola, promovido pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e Missões, em Erechim e realizado em julho de 2000. Posteriormente o texto foi publicado no volume organizado por Lionira Giacomuzzi Komosinski e Regina Kohlrausch, A linguagem descobrindo mundos, volume editado pela editora da universidade, em 2001. Naqueles tempos eu andava frequentando muitos sebos, e comprando velhas gramáticas. Dentre os livros conseguidos nestes sebos, descobri uma transcrição de um códice que se encontra da Biblioteca Nacional, contendo a defesa feita por um frade pelo uso da língua geral em sua pregação, razão por que estava sendo processado pelo Santo Ofício. Nesta defesa, diz o frade que até mesmo aqueles que foram às aldeias para avisar que estava proibido o uso da língua geral tiveram que dizer isso em língua geral para poderem ser compreendidos… Infelizmente meu volume deste livro (de que não tenho as referências) foi incluído no acervo vendido a UNIOESTE (Cascavel) e se encontra em alguma das caixas fechadas até hoje, desde 2013… Mas foi a leitura deste texto que me levou a pensar este processo da proibição da língua geral e a implantação da língua portuguesa, que resultou neste texto que seria, se eu tivesse tido na vida alguma persistência, o primeiro de uma série fundada numa pesquisa que jamais realizei. Seguramente os linguistas que hoje escrevem a História da Língua Portuguesa no Brasil, este texto soará primário.
Referências bibliográficas
Bentes, Anna Christina. A descoberta do Brasil pela Amazônia: o relato de viagem de Gaspar de Carjaval. Campinas : trabalho inédito, 2000.
Carvalho, J. G. Herculano. A difusão da língua portuguesa na África. Luanda : Universidade de Luanda, 1971.
Figueiredo, Cândido. Problema da colocação de pronomes (suplemento às gramáticas portuguesas). 5ª, ed, Lisboa : Livraria Clássica Editora, de A. M. Teixeira & Cia. Filho, 1928
Fonseca, Maria Nilma Góis. Ensino de língua portuguesa: Ecos de um discurso. Dissertação de mestrado em Educação, UFSE, 1997.
Gnerre, Maruzzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo : Martins Fontes, 1985.
Soares Barbosa, Jenonymo. Grammatica Philosophica da Língua Portuguesa ou Princípios da Gammatica Geral aplicados á nossa linguagem. 5ª. ed, 1876 (primeira edição em 1801 ou 1803)
Soares, Magda. Português: história de uma disciplina curricular. Revista de Educação AEC, vol. 101, out/dez 1996, p. 9-26
Todorov, T. A conquista da América – A questão do outro. São Paulo : Martins Fontes, 1993
por João Wanderley Geraldi | nov 13, 2018 | Blog
Muitas análises têm somado os percentuais de brancos/nulos, os das abstenções e aqueles para Haddad para dizer que Bolsonaro não foi eleito pela maioria da população brasileira. A análise é equivocada. Considere-se que uma baixa percentagem de votos nulos tenha sido por erros do eleitor – considerando a forma de votação, este percentual é mínimo mesmo; considere-se que os votos brancos são daqueles que não queriam nenhum dos candidatos, e, portanto, não podem ser contados como votos de “oposição” a Bolsonaro; considere-se que entre as abstenções, um bom percentual se deve a pessoas em trânsito, pessoas hospitalizadas e pessoas encarceradas – a população carcerária do Brasil é uma das maiores do mundo, o que não impede do “nosso garoto” achar que se pode prender mais uns 100 mil brasileiros, porque sendo garoto, não sabe lá muito o que diz – sobrará de fato um percentual bem menor de abstenções propositais.
E estas abstenções propositais não podem ser consideradas de lado algum. Trata-se de cidadãos que delegaram o poder de decisão aos demais. Assim, Bolsonaro foi eleito sim pela maioria da população brasileira. Se ele representa um pensamento de que não gostamos, é preciso reconhecer – não adianta tapar o sol com a peneira – que a maioria dos cidadãos brasileiros se filia a este modo de ver a vida, de compreender as relações humanas e de interpretar o mundo. Esta a realidade a ser encarada.
Mas uma coisa foi a campanha em que um membro da ‘anturragem’ próxima ao presidente eleito lançava um balão de ensaio, e logo vinha o candidato a desmentir. Agora, terminadas as eleições, a manutenção desta técnica traz prejuízos incalculáveis para o capital político amealhado pelo antes candidato. Um membro de sua equipe, membros do clã, quando falam agora, falam de outro lugar, do lugar em que pesa a responsabilidade de governo de uma nação.
O presidente está eleito. Diz que não há problema algum em reconhecer que certas propostas devem ser repensadas e voltar atrás no que se pretendia. Disse isso em relação ao Ministério de Meio Ambiente, que quis anexar ao Ministério do Agronegócio (antigamente da Agricultura), mas teve que voltar atrás em função das reações da comunidade internacional. Este vai e volta descapitaliza o ainda nem empossado!
Na política externa, é uma calamidade. Pretendendo torná-la mimética à política de Trump, introduz uma novidade na área. Na história de nossa política externa, os interesses nacionais sempre contaram: nos começos dos anos 1960 defendia a diplomacia brasileira a livre autodeterminação dos povos; depois do golpe de 1964, o nacionalismo impediu uma política externa de submissão ao parceiro do Norte; a partir da nova república, nos governos neoliberais de FHC, costurou-se um alinhamento que foi rompido pela política multilateral dos governos petistas; com o golpe de 2016, José Serra subordinou o país ao parceiro americano; e agora temos uma novidade: já não se trata de alinhamento político, mas de política mimética, cópia do que faz Trump. Foi isso que levou à declaração de que o Brasil transferiria sua embaixada para Jerusalém… e a comunidade islâmica do Oriente Médio começou a responder ameaçando boicote a produtos brasileiros. Neste terreno, não adianta vir o presidente eleito, numa “live” a seus seguidores, dizer que não é para dar importância à reação do Egito… Será que ele pensa que poderá, mudado seu lugar de enunciação, ir lançando a torto e a direito balões de ensaio, num vai que depois não vai, no diz hoje e desmente amanhã.
Nesta ordem em que acontece a transição, nesta política de “vai e não vai, diz aqui e desmente acolá”, até mesmo um futuro ministro dos mais garantidos, dos mais certos, dos primeiros a serem indicados, junto com o todo poderoso Ministro da Economia, o futuro Ministro da Defesa, Gen. da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira, também dançou! E por acaso ficamos sabendo que o presidente eleito o quer mais próximo de si, no Palácio do Planalto, casualmente no mesmo dia em que ele visitou o Comandante das Forças Armadas e o Comandante da Marinha! Seria mais um “vai que não foi”? E se achou uma queda para o alto para um general?
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